Costumo dar a mão a mim própria e acalmar o medo à
menina de dois ou três anos que fui. O medo, sempre presente o medo, mas um
medo vago, sem objeto preciso; um medo que pairava como uma ameaça latente e me
fez a infância pejada de seres invisíveis e ameaçadores. Nem sequer era um
monstro com uma figura qualquer que se desenhasse na imaginação, que pelo menos
esse sempre havia a possibilidade da mãe levantar os cobertores e me fazer
espreitar para debaixo da cama e dizer: “Vês? Não há monstro nenhum.” Como não
era um objeto, implantava-se como um sintoma: uma febre sem doença; e que
febre! Sempre a rondar os quarenta, como a madrinha me contava, furibunda por
mais uma vez na sua presença para umas férias de natal, me encher de “frescuras”
e quase cair para o lado de tão quente. Então no natal era fatal. Não havia
festa, não havia teatro, nem bolos ou prendas que me fizessem escapar da tormenta; nem mesmo quando me enfeitei com
umas meias de mousse brancas e cabeça de girassol consegui manter estável a
temperatura, sou de paixões talvez por isso… Mas a criança que fui, com medos
inquietos, apazigua quando lhe dou a mão
e nem me assusta mais a voz raivosa da madrinha constatando pela enésima vez
que vai ter de me levar a casa não ficando para a consoada: “Ai queres ir para
casa? Então deixas ficar tudo aquilo que te comprei”. “ Deixa lá a catraia levar as coisas, para que as queres? Mas nem
a voz conciliadora do padrinho João a fazia mudar de ideias e lá ia eu para
casa de mãos a abanar, mas contente por estar outra vez com a minha mãe,
sacrificando mais um natal sem presentes.
Do medo não escapava. Esse medo insubstancial que é sempre maior por isso
mesmo. Ao dar a mão e dizer : “ tudo irá bem, és uma boa menina”, acalma a voz que , volta não volta, assoma à
mesma janela com que me assombrava os sonhos infantis. É isso! É como uma voz
inquieta que me grita que não terei nenhum brinquedo nesse, como nos outros
natais.
Maria João Varela