Sentavas-te a meu lado e nada dizias, talvez só
por vezes te saíssem as palavras: “Minha carochinha” num amansar da alma
carinhoso enquanto me asseguravas ser a tua neta favorita de entre nove; nada
mau, pensava eu enquanto te olhava a figura pequena onde transparecia uma alma
enorme que abarcava a minha curta vida. Tinhas sido mau, diziam-me, quando te
entregavas à bebida, mas eu que não vi, nunca acreditei nas más línguas, ou
talvez não quisesse acreditar que pudesses ter desvarios e tivesses com eles
maltratado alguém; logo tu, o mais doce que jamais conheci. Coisa engraçada
essa da minha vida, os parentes fingidos são os que mais gosto pois diziam-me
que não eras mesmo meu avô de sangue. Que importa isso? Para sempre recordarei
o teu sorriso, e a tua ternura perdurará nas lembranças de alegrias raras numa
infância maltratada . O homem da casa
era ela, a minha avó, habituada aos rigores dos verões alentejanos, rude e sem carinho
tinha-me chamado “o trambolho” quando a mãe lhe dissera estar grávida de mais
um filho sem pai. Ela dera-me o sangue,
tu a alma. Recordo os risos ao dizeres que tinhas entrado no Portugal
dos Pequenitos sem pagar bilhete porque te confundiram com um garoto, baixaste
a cara e só viam a tua figura de miúdo reguila que libertava depois gargalhadas
quando te punhas a contar essas piadas. E bem lembro que ao longe também eu te
confundia com um que a avó trouxesse pela mão para nos fazer uma visita, numa
das raras ocasiões que se libertava da vergonha de ter uma filha doente e cinco
netos de três pais diferentes e nos entrava porta adentro com o ar de tudo
querer pôr em ordem, e não é que ela fosse maior do que tu avô, mas era a
postura, a força daquela personalidade dura e rude que te fazia parecer ainda
mais criança. Como se deixava ela guiar por ti montada na lambreta na qual passeavam por toda a Espanha
estou eu para saber, só sei que as raras ocasiões das visitas coincidiam muitas
vezes com a chegada de onde era comum trazer sacadas de caramelos para adoçar
os beiços e quando te sentavas e me acompanhavas nas guloseimas com algum
chupa- chupa na boca, nem eras para mim um adulto, quanto mais um avô, eras
simplesmente um amigo, uma outra criança que partilhava um doce às escondidas
enquanto os adultos se entregavam a assuntos mais sérios. Só repetias: “ Minha
carochinha”. E as palavras adoçavam mais do que o caramelo que tinha na boca…
Crónica, Reflexão, Artigos, Olhar o mundo, Experiência, Banalidades do dia-a-dia, Ponto de vista.
sábado, 26 de outubro de 2013
segunda-feira, 21 de outubro de 2013
Saboreia-me
Saboreia-me
como se eu fosse chocolate,
em lentas
lambidelas para me extraíres o sabor;
como faz o colibri nas pétalas da flor
como quem não quer parar
sem todo o doce acabar.
Beija-me, encanta-me,
com lábios
de sofreguidão,
mas sorve-me gota a gota e se o prazer se esgotar,
fecha os
olhos e sente,
que mesmo sem estar presente deixo-me saborear.
Não te apresses,
vai descendo lentamente
e deixa que
o sal da pele tempere o amor crescente,
sente um
pouco de cada vez…
Sente o calor aumentar numa onda,
num suspiro, num vaivém ondulatório
em vibrações
de prazer
que só sente quem espera o momento
em que o arrebatamento se impõe
e deixa de fazer sentido a espera.
Enrola-te a mim devagar,
cura-me a
dor do mundo
para dele me desligar;
sente o pulsar ritmado,
vê-me os passos inseguros vê-te no meu olhar.
Que te
dizem os meus olhos?
Que não te escondem segredos,
que te aguardam em degredos
com medo da
solidão que se instala
sempre que
é longa a espera.
E os
sentidos? Sem o teu aroma, o teu cheiro
que se espalhava pelo quarto
são inúteis, vãos, efémeros,
foram-se, aliás; correm ao teu encalce
deixando-me a mim para trás.
domingo, 13 de outubro de 2013
Onde para o amanhã? ( Contos de luz & trevas)
Pegou-me na mão e com uma voz poderosa
ordenou: “Escreve!”. Olhei em volta, mas não consegui ver a origem do som,
aquele som metálico que com estalidos assustadores me dava tal ordem, nem
tampouco avistei quem me pegava na mão que obedientemente começou a gatafunhar
primeiro a medo, depois com uma fluência de torrentosas palavras que assustava,
uma verborreia assim não era comum, mas assenti ouvir e contar a história que a
voz tanta necessidade tinha de contar, deixei sair pelas pontas dos meus dedos as
palavras que se lhe soltavam como se soltá-las fosse a missão da sua vida.
*
Assomou à janela, mas o cenário
devastador impeliu-a com violência para dentro. O primeiro a ruir tinha sido o
farol, a falta da sua luz orientadora tinha sido a primeira manifestação da
catástrofe iminente e sem que nada pudesse fazer Inês viu-o desmoronar levando
atrás todas as outras coisas até ali importantes, imprescindíveis mesmo, para
continuar a viver. O céu cinzento de inverno e o gelo que lhe ameaçava os ossos
frágeis obrigaram-na a voltar a enrolar-se na cama, os caminhos labirínticos estavam
cada dia mais intrincados e sem o farol jamais conseguiria sair dali. Também já
não tinha importância, sair para onde? Para quê? Sem encontrar sentido nas próprias questões
que ficavam sem resposta e com um cansaço que se origina só no próprio ato de pensar
fixou o olhar sem brilho no teto e assim ficou sem nem mesmo saber as horas ou
os dias que se sucediam numa cadência igual, inúteis e lentos, todos seguidos
uns aos outros como contas de um rosário que alguém manuseasse entre os dedos
num ritual de oração repetitiva. Era
como se o tempo e espaço fossem reticências perenes onde a vida aguardava a
vez…
Ouvia os passos da mãe pela casa e se pudesse sentiria pena dela,
mas já nem isso era capaz. A compaixão já não morava dentro dela, aliás nem
isso nem outra coisa qualquer, estava oca, tão oca quanto o tronco seco e
infértil da velha árvore que jazia agora sem folhas no jardim abandonado que se
podia avistar da janela, oca como todos os que a rodeavam estavam como se o que
os preenchesse fosse o amor que outrora nutrira por eles; talvez que as cores,
sabores e substância das coisas se adquira somente quando lhes dedicamos amor…
Sem o farol andava, andava , mas só em
círculos viciosos e voltava sempre ao ponto de partida sendo que a cada volta
dada era uma profecia autorrealizada do insucesso da viagem: jamais conseguiria
sair dali, não sabia como lá tinha ido parar, mas também não tinha importância,
jamais voltaria a ter amanhã para caminhar… então, sendo o esforço em vão e o
cansaço que acompanhava cada tentativa extremo, a cada viagem que falhava mais desanimada ficava.
A mãe, por estes dias, esforçava-se por
lhe trazer todos os petiscos que sempre lhe tinham agradado, por lhe aromatizar
o quarto, pôr música suave, dava-lhe carícias prolongadas e trazia-lhe livros
que se iam amontoando na mesinha de cabeceira juntamente com a comida que não
comia porque sabia a papel e era áspera arranhando-lhe a garganta. O mundo já
não era mundo, nem havia qualquer substância nele pois o sol tinha morrido e só
o cinzento e o frio se espalhavam sob a pele insensível às carícias e
entranhava-se nos ossos e na própria alma. Porque a acarinhava a mãe, pensava Inês,
não saberia que ela não poderia sentir as carícias pois flutuava agora sem
substância numa contradição aparente onde, aqui, era precisamente a falta de
matéria que lhe pesava como chumbo? Como
poderia o nada pesar desta forma paralisando-lhe os movimentos que se tornavam
trôpegos e inúteis?
Ouvia, por vezes, vozes distorcidas que
lhe chegavam de muito longe como se fossem vozes sem dono, sons insignificantes,
mas que pareciam martelar-lhe o cérebro :
- Ela está muito mal, mal, mal, mal… tem
de a obrigar a comer, é urgente, urgente, urge… que se interesse ou deseje
alguma coisa. É urgente que ame, só o am…or a poderá salv…ar. Não precisa ser
amor romântico, pode ser amor a um projeto, uma paixão, paixão, paixão, …xão
qualquer. Continue a dar-lhe a medicação.
Seguidamente ouvia o choro baixinho da
mãe, os passos arrastados pela casa e uma emoção de desesperança invadia-a.
Porque estava ainda ali? Porque se arrastavam os dias sem esperança?
Tinha sido uma rapariga cheia de vida e
projetos com uma força de vontade incrível.
-
Mamã, vou para a faculdade.
-
Tens média para entrares, filha? Olha que as nossas posses não são muitas não
te conseguiremos pagar as propinas, a privada é impossível só se entrares na
pública.
-
Não te chateies com isso, mãe. Sou eu que quero, tenho de lutar por isso.
Ia e fazia. Era assim, não havia entraves
nem obstáculos capazes de a impedir. Tinha uma luz, um caminho, tinha um
futuro…
A energia que exalava influenciava os
que privavam com ela, sempre disposta a fazê-los acreditar nos sonhos, a nunca
desistir sem tentar.
Saía para grandes caminhadas depois de
vestir a indumentária dos artistas, colocava os olhos de poeta para observar a
própria essência das coisas não sem antes se aperaltar com o espírito de
turista sempre curioso e atento a tudo o que se passa. Voltava tarde depois de
ouvir o marulhar das ondas no seu monólogo perpétuo, de observar o voo picado
das aves, mas voltava sempre rejuvenescida, serena e confiante. Não naquele dia
de finais de Abril, um dia que tinha amanhecido a ameaçar chuva, mas sem que a
mãe a conseguisse demover da caminhada pois como ela própria tinha referido
queria ser castigada pela chuva, cheirar a terra molhada e a hortelã e viver
como se não houvesse amanhã, tal como os insetos que só vivem um dia. Já tinha
anoitecido há muito quando a mãe conseguiu convencer o pai a sair à sua
procura:
-
Ela nunca tarda tanto, vai lá homem e traz-me a pequena.
- Qual pequena qual quê? Já sabe bem o que faz, deixa-a estar e que
venha quando quiser – replicou o pai coçando um bigode de vassoura que parecia
ter sido pintado com uma pincelada distraída de algum artista amador sem
experiência pois a alvura exagerada dava-lhe um ar de caricatura. A mãe não o
deixou descansar os ossos e obrigou-o a sair de lanterna na mão montanha acima
à procura da filha. Só ouviu a ambulância umas horas mais tarde a subir a
ladeira quando a ralação já lhe carcomia as entranhas por tardarem as notícias.
Inês tinha sido encontrada seminua,
encharcada até à medula e semi-inconsciente. Os indícios eram de ter sido
violada e torturada. Estava em estado de choque só tremia muito e agarrava-se ao pescoço do pai com
um grito de desespero travado na garganta.
Nunca falou do sucedido, disse sempre de
nada se lembrar e o médico do hospital tinha dito que muitas vitimas sofriam de
amnésia após um trauma daquela natureza. As palavras que não disse pareciam
querer sair-lhe por todos os lados menos pela boca: pelos olhos que perderam o
brilho, pelos membros que perderam tonicidade e consistência, pelos cabelos
baços e quebradiços e a pele sem viço. A inercia instalou-se e nunca mais teve alegria.
Deixou a faculdade, deixou os amigos que a pouco e pouco iam desistindo de lhe
ligar para saírem; mergulhava cada vez mais fundo nos terrores que trazia
dentro e a cama era o único e último lugar onde permanecia longos dias e noites
sem pedir nem querer nada anunciando um desfecho trágico para tanta juventude
que se tinha perdido há pouco mais de um ano atrás. Nenhuma medicação parecia
surtir efeito, a mãe até desconfiava que não a tomava avessa que sempre tinha
sido a químicos que como sempre dizia nos tornam escravos das indústrias
farmacêuticas que açambarcam chorudas quantias à conta da nossa falta de
ponderação . E não comia. A mãe lá conseguia a custo que bebesse alguns sumos
nutritivos, mas a boca cerrava-se-lhe para tudo o que fosse comida consistente
e o corpo outrora de porte atlético devido ao desporto que sempre teimava em
praticar era agora uma sombra pouco fiel da figura do passado recente.
O pai um dia na brincadeira tinha-lhe
dito que nunca arranjaria namorado pois os homens gostam de mulheres femininas
e frágeis e ela tinha os músculos bem torneados e desenvolvidos pela prática
persistente e consistente de desporto pelo que ela respondia que também não lhe
interessava um cobarde qualquer; tinha de ser bem homem aquele que conquistaria
o seu coração. Seria como ela, amante
dos desportos e de metas, amaria a justiça e honestidade e acima de tudo
amá-la-ia preenchendo-lhe as lacunas e dando-lhe existência como só um grande
amor é capaz.
Todos esses sonhos tinham ficado lá
atrás, perdidos nos labirínticos processos mentais e já não faziam parte nem do
passado nem do presente, enredado que este estava agora e que se desmoronava
trazendo atrás todos os castelos e príncipes e princesas que lá tinham
habitado, desmoronava-se também a esperança de um curso superior em belas artes
onde desenvolveria a sua vocação de artista capaz de ver para além do que os
olhos veem e do que os sorrisos disfarçados encobrem; mesmo o futuro que sendo
impalpável e inexistente é crucial para que exista algo mais que uma verborreia
corporal a indicar que estamos vivos, essencial para que façamos uma pequena
ideia para onde nos encaminharmos e como um clarão nos indica o caminho, tinha
desaparecido. Esse amanhã sempre presente para que possamos viver e sonhar
tinha-se desmoronado em primeiro lugar por não ser possível acreditar num mundo onde as pessoas não são pessoas, mas
monstros à espreita para nos devorar, onde sendo primavera ou verão os invernos
são contínuos e o ar rareia, onde só faz frio, onde o sol se foi deixando um
breu eterno no seu lugar, onde os pássaros não cantam nem têm asas para voar,
num lugar desses não pode haver amanhã porque pensá-lo é já vivê-lo com todos
os seus terrores à espreita, assim onde havia amanhã existe agora um presente perpétuo , horrendo e incompleto para
viver.
Eram esses pensamentos que assombravam a
mente de Inês nesses dias e noites que passava inerte só à espera que o terror
passasse enquanto se adensava, enquanto a mãe se arrastava sombria e angustiada
pela casa e o pai definhava de impotência. Ah, se ele soubesse quem tinham sido
os autores de tamanha barbaridade, encarregar-se-ia ele próprio de os degolar;
mas a sua menina nada dizia apenas morria aos poucos, soçobrava como um navio
naufragado que apenas serve de poiso às gaivotas.
Acordou Inês sobressaltada naquela noite
e uma força que parecia surgir do nada, porque ainda não comera, fê-la
precipitar-se escadas abaixo e sair para o frio da madrugada. Surgia uma luz
muito ténue que parecia emergir dos confins da terra e que a convidavam a sair
do labirinto que tantas e tantas vezes tinha pretendido atravessar sem nunca o
alcançar. Tateou o caminho e tropeçava a cada passo, mas persistia com uma
réstia da determinação de outros tempos, caía e as roupas rasgavam-se nos
galhos secos dos arbustos que circundavam a casa. Os ruídos noturnos
assombravam-lhe as memórias e num relampejo de consciência viu a nuca
aterrorizadora do seu violador. Fraquejou aterrorizada, mas ouvia a voz que
serena, mas firmemente a incitava a continuar o caminho que ia subindo agora
com o algoz ao seu encalce. Corria agora mais depressa e as pedras debaixo dos
pés descalços feriam-lhos enquanto o som longínquo de uma coruja a fazia
tremer. Embrenhava-se mais e mais no ébano bosque com a crescente visão de uma
luz ao fundo e qual inseto que se deixa seduzir, prosseguia com o coração
descompassado pela corrida, os cabelos baços dos meses bolorentos que tinha
passado sem sair agora desgrenhados e emaranhados pelo vento e pela corrida,
tropeçava mais e mais mas mantinha a visão da luz que parecia crescer. Olhava
em volta e os olhos habituados agora à luz noturna vislumbravam perfis de
figuras fantasmagóricas e quando a vontade de voltar para trás, para o porto
seguro dos braços da mãe era maior do que a vontade de chegar ao farol uma voz
calma e quente orientava-a com segurança para a liberdade. Os passos do
perseguidor faziam-se ouvir como se viessem de um tempo já passado que se
tornasse presente num gesto inusitado de prestidigitador, martelavam o chão num
som que ecoava do passado para o presente e à medida que se aproximava um
cheiro intenso ia-lhe ofendendo as narinas, um cheiro acre e nauseabundo
penetrava-lhe as entranhas que se dilaceravam na aproximação do perigo iminente
e somente aquela voz, qual sopro de anjo lhe assegurava que continuar era o
melhor a fazer.
Repentinamente um clarão de luz, intenso
e vibrante que quase a cegava fê-la ver o rosto quase desfigurado da figura
ameaçadora que se tinha aproximado o suficiente para que a visse e que tinha durante tanto tempo perseguido sem se
deixar ver. Era um rosto grotesco, assente num pescoço gordo e seboso de verdugo,
pele castigada por mil sois, um lábio leporino e uns olhinhos de rato de
esgoto; as mãos calejadas das muitas labutas rasgavam-lhe as roupas com
sofreguidão enquanto a figura se ia adensando e
consubstanciando na figura dos terrores noturnos que nunca se deixavam
ver pela luz diurna. Era forte e tinha-a dominado sem dificuldade, deixava sair
pela boca deformada uns grunhidos que nada tinham de palavras.
De repente transformou-se em dois e
depois três, multiplicava-se em visões meio distorcidas e ria
descontroladamente com uns dentes de hipopótamo amarelos e castanhos ponteados numa boca que subitamente se
tornava atraente e a espuma de besta selvagem desaparecia para dar lugar a um
rosto de jovem bem parecido e mais um e outro… As sombras fantasmagóricas
tinham-se tornado nos rostos que eram agora nítidos, todos conhecidos seus. Riam
muito, embriagados, e investiam toda a
sua fúria animal nela enquanto a apalpavam no corpo todo com dedos que a
desvirtuavam invadindo-a sem consentimento.
Inês tentou levantar-se e fugir
novamente mas os ramos secos tinham-se transformado em garras que lhe agarravam
os braços, rasgando-lhe a roupa deixando os seios jovens descobertos que ela
tentava tapar, arrancaram-lhe as calças e
cuecas de uma só vez e sentiu-se penetrada com violência uma, duas, dez vezes, milhões de vezes… O seu corpo agora
era a encarnação de todos os corpos e todas as violações que já tinham
acontecido e que viriam a acontecer consubstanciavam-se nele e já não havia
fronteiras entre ela e todas as violadas, eram uma só, e essa jazia submissa
completamente dominada. (Os médicos que posteriormente a tinham observado no
hospital tinham dito que devido à violência do ato não poderia nunca ter filhos.)
E de repente começaram a surgir mais,
uns velhos outros jovens, alguns bem vestidos, outros esfarrapados; eram todos
bestas do inferno, mas eram todos os violadores que já alguma vez tinham
existido ou que viriam a existir. Por fim, começou a vê-los de lado, por trás,
do avesso e lançavam centelhas vindas do interior e ela conseguiu vislumbrá-los
por dentro e conseguiu enxergar que também eles de alguma forma eram vitimas…
Inês sentia-lhes o arfar, a transpiração deles na pele dela e o nojo fê-la
vomitar e engasgar-se no vómito fazendo-os sair de cima dela não sem antes a deixarem quase inconsciente
de dor ao espancarem-na enquanto gritavam barbaridades: « sua puta, tinhas a
mania que eras boa, não eras para mim, aguenta-te agora», os outros aplaudiam e
numa galhofa pegada entravam e saiam dela deixando-a esventrada, maltratada em
todas as dimensões em que uma mulher o pode ser, de dor e de humilhação, mas
também de vergonha que a partir desse dia a perseguiu e fazia com que sentisse
como se todos os holofotes estivessem focados em si, como se todos a olhassem
julgando os seus movimentos e a desnudassem com um olhar ficando somente a
mácula no lugar de vestido; por isso se escondeu e não mais ergueu os olhos. Ficou
também a culpa como se as vítimas tivessem uma propensão inexplicável para se
culpabilizarem dando um prémio aos criminosos pelo crime cometido, transportam
um fardo que não deveria ser seu carregando, qual canga, o mundo às costas, um
peso que paralisa e torna tudo sórdido e mau.
As capas pretas dos trajes jaziam num chão
molhado da chuva que ia lavando todos os indícios do horrendo crime às quais se
juntavam agora trajes de polícia, bombeiro, advogado, professor, padre e todas
indumentárias possíveis de imaginar… trajes de gente comum como o são quase
todos os violadores.
A luz que a guiara até ao terror de
todos os terrores aumentava e Inês levantou-se agora estranhamente mais calma e
recomeçou a correr enquanto os soluços que tinham ficado presos na garganta
saíam agora livremente sacudindo-a enquanto a libertavam, os olhos deixaram a
primeira lágrima tímida cair abrindo espaço para que agora caíssem grossas umas
por cima das outras inundando-lhe as faces e lavando-lhe a alma torturada;
corria cada vez mais perto da luz que surgia com um brilho intenso e ouvia a
voz , a mesma qua a tinha guiado para os seus pesadelos profundamente enterrados
e recalcados, ouvia-a surgir no meio mesmo da luz para onde se precipitou
caindo num abismo para o qual não hesitou em saltar para ir de encontro a
ela. Sentiu-se mais liberta do que nunca enquanto caía no abismo rodando,
rodando, os soluços ainda desprendendo a dor acompanhados das lágrima e uma voz
que lhe dizia agora com estalidos
metálicos que estava a missão acabada.
- Foi muito bem Inês, muito corajosa.
Agora descanse.
*
O meu rosto iluminou-se um pouco ao
reparar que o meu corpo se encontrava menos oco, assim como o da minha mãe, que
ensaiava um sorriso tímido no canto do quarto:
-
Vais ficar bem meu anjo, agora descansa.
Tinha envelhecido muitos anos num só,
amarrava o cabelo com desmazelo para que lhe desse maior liberdade de
movimento, as rugas que antes apenas se insinuavam eram agora regos profundos
que o sofrimento tinha sulcado nela e os olhos estavam vazios de alma como
estão todos os olhos de quem não espera nada do amanhã. Tinha encurvado e o
corpo franzino parecia querer encontrar-se com a terra numa entrega ou rendição
total como se lutar fosse despropositado.
Levantei-me
um pouco cambaleante e assomei à janela para presenciar um cenário tantas vezes
ignorado: o jardim florescia numa manhã linda de primavera, a árvore, uma velha
nespereira que me parecera morta estava carregada de pequenas flores esbranquiçadas
e o sol tinha voltado dando-me apetite
para lhe beber sofregamente umas quantas gotas.
Aos poucos com a ajuda da terapia fui
reconstruindo o mundo que me tinha sido roubado, voltaram os castelos,
príncipes e princesas que talvez já não tivessem tanta candura, mas sorriam com
sinceridade, as papilas gustativas começaram a dar os primeiros saltos, depois
de muitos meses, pela excitação de voltarem a sentir os sabores que se
intensificaram pelo longo tempo de hibernação, voltei a ver e sentir o sol que
com uma caricia tépida me faz sentir viva, voltaram os sons de sempre, a voz
dos meus pais agora menos angustiadas, e principalmente começaram a desfazer-se
os labirínticos processos mentais que me faziam desejar morrer sem saber porquê
sentindo-me perdida para sempre num caminho que se desenrolava e voltava a
enrolar em sucessivos círculos concêntricos vindo sempre ter ao início sem
levar a lugar algum, onde sentimentos de impotência e desmerecimento embotavam a
viagem.
Depois de muito tempo sentia o peito
respirar sem o chumbo habitual que me acinzentava e pesava o ar que entrava
agora livremente e à medida que me ia
amando de novo e ganhando consistência, largando a forma oca que durante os
últimos meses me tinha caracterizado, tornava-me também mais leve e menos
opaca. Também todos os outros à minha volta, amados que eram agora ficavam preenchidos
pelo amor que recomeçava a surgir. Os monstros que me povoavam os sonhos
desapareciam também tornando o amanhã numa espera aceitável.
O presente já não era apenas construído
pulsação a pulsação em milésimos de segundo separados uns dos outros como se se
unissem sem nenhum propósito além de manter vivo um corpo que não o queria
estar, estava unido por finos fios de seda diáfanos a um passado que se ia curando, um ontem
repleto de sofrimento, mas que à medida que era obrigado a emergir das
profundezas ia perdendo a tonalidade
aterrorizadora, e a um futuro, que se ia
desenhando no horizonte, um amanhã que trazia a promessa de ser irrepetível. Renascia.
Via surgir novamente a beleza que só
existe para quem consegue vislumbrar para além do hoje, o prelúdio do amanhã
que nunca existindo como realidade existe como um pensamento imanente que
orienta e dá entusiasmo para um caminho que será percorrido sempre no presente;
o velho farol lá estava, como sempre estivera, indicando- me que apesar de tudo
haveria amanhã…
*
Podes descansar os dedos não te vou importunar tão cedo – disse-me a voz
cujo som não era, como de início, tão duro nem os estalidos tão
assustadores. – Cumpriste a tua missão,
mas nunca mais voltes a calar o teu passado . Assenti agradecendo à voz que me
tinha libertado de uma existência negada, cujos contornos se revelavam agora
menos sombrios e, acima de tudo me tinha libertado de uma culpa que não era
minha, mas que tinha transportado comigo durante todo este tempo. E a vergonha?
Sim, porque tinha vergonha. Uma vergonha que me corroía a alma e ensombrava os
dias que me faziam querer fugir de um corpo cujo estigma me acompanhava onde
quer que fosse. Ah, se ao menos fosse possível livrar-me dele nem que por
instantes. Mas não, não era possível. Ele não era descartável. Ele era eu, a minha
própria essência estava da mesma forma manchada.
As folhas escritas estavam espalhadas pelo
chão do quarto, ainda húmidas das lágrimas que se soltaram, limpando a tortura,
dos meses, ou seriam anos?
Respirava agora com uma leveza
desconhecida para mim – ou pelo menos esquecida – e todo o peso do mundo que
transportava aos ombros tinha aliviado à medida que mais e mais palavras iam
saindo pelas pontas dos dedos, ditadas por uma voz que tinha conseguido calar,
mas que só esperava uma oportunidade em que a vigilância enfraquecesse para
poder sair, não pelos lábios, mas pelas palavras que tinha garatujado, deixando
agora o testemunho de um ato, muitos atos,..
FIM
sábado, 12 de outubro de 2013
Mulher
Sou terra fértil onde o
amor nasce
e a ternura dá lugar à ânsia de poder;
sou serena e em cujo regaço descansas
e esqueces os dias desenfreados.
Sou a cor dos teus dias,
as pétalas frágeis e viciosas de uma papoila selvagem.
Sou livre e rebelde na minha doçura,
sou montanha que resiste suave e firmemente às intempéries;
sou aquela onde te refugias
das tuas lutas vãs.
Sou mar revolto, mar assassino
para quem se atreve a surfar,
mas sou ondulação suave
para que possas navegar.
Sou aurora; prelúdio de dia,
sou noite vadia e arisca; sou mulher…
e a ternura dá lugar à ânsia de poder;
sou serena e em cujo regaço descansas
e esqueces os dias desenfreados.
Sou a cor dos teus dias,
as pétalas frágeis e viciosas de uma papoila selvagem.
Sou livre e rebelde na minha doçura,
sou montanha que resiste suave e firmemente às intempéries;
sou aquela onde te refugias
das tuas lutas vãs.
Sou mar revolto, mar assassino
para quem se atreve a surfar,
mas sou ondulação suave
para que possas navegar.
Sou aurora; prelúdio de dia,
sou noite vadia e arisca; sou mulher…
domingo, 6 de outubro de 2013
O comboio aos quadradinhos
O comboio de gente pequena lá ia seguindo a rua que
desemboca na praça 8 de Maio ora de carruagens mais alinhadas, ora menos, mas
seguia em frente enquanto as pessoas que se encontravam no apeadeiro,
maioritariamente turistas, chegavam e
açambarcavam as ruas com os seus artefactos preferidos: mochilas, máquinas
fotográficas, chinelo no pé e chapéus de abas largas; eu passava e já vinha há
algum tempo a apreciar as carruagens que, de quando em vez, descarrilavam.
Estas pequenas criaturas atraem-me e gosto de vê-las duas as duas, entrelaçadas
as mãos por uma qualquer ordem superior que acatam sem questionar. Nem todas as
ordens são acatadas com a mesma solicitude, pelo menos não por todas as
crianças e as educadoras lá vão tentando metê-las nos carris enquanto lhes ajeitam
os chapéus, de uma só cor, como que a indicarem ser seu dever pensarem todos
igual.
Destacou-se uma menina que lá seguia mão na mão
com o seu par, mas que já desde o início da rua era difícil manter na linha e
era ela que fazia descarrilar o comboio de carruagens aos quadradinhos azul e
rosa como os bibes; puxava o seu companheiro e fazia os cabelos da educadora eriçarem-se
de irritação, mas por mais que esta lhe ralhasse, volta não volta lá voltava
ela a meter o pé na argola e como ia nas carruagens da frente lá se contorcia o
comboio que agora mais se assemelhava a uma lagarta vaidosa que saracoteasse as
ancas se as tivesse.
Eu diminuía a velocidade para apreciar esta gente
em miniatura e deliciava-me com as suas contidas traquinices e com o talento
especial das educadoras para não deixarem que o apeadeiro e todos os que lá se
encontravam impedissem a passagem do comboio mais extraordinário que alguma vez
foi visto.
Mas eis que a menina dá mais um puxão ao seu
parceiro de viagem fazendo pela enésima vez com que a lagarta gigante aos
quadradinhos meneasse os anéis e que os que seguiam atrás esbarrassem uns nos
outros proporcionando-me, assim, apreciar o mais subtil e precoce indício de
autoridade protagonizado por palmo e
meio de gente que farto da sua desajeitada companheira o fazer perder os carris
leva o dedo à boca em sinal de silêncio e com um toque suave mas firme a puxa
de volta à linha. Mais ninguém se apercebeu do gesto; só eu e a pequena que lhe
virou uns olhos de cão submisso, meteu o rabo entre as pernas e acatou a ordem
que até ali nenhum adulto a tinha feito acatar não voltando a fazer descarrilar
a carruagem. A cena impressionou-me, mas o que mais me impressionou foi o olhar
que, mais do que os gestos, sem ser ameaçador, tinha um qualquer indício de dominância natural que
não prevê desafio à autoridade e que, sendo naturalmente concedida, se impõe
graciosamente.
A educadora deve ter dado graças pela
tranquilidade com que se finalizou a viagem sem se aperceber do inesperado
aliado que lha tinha facilitado e sem se aperceber naquele momento do esboço de
líder que tinha o privilégio de poder educar.
Eu segui o meu caminho a sorrir internamente e
pensando o quanto têm as crianças para nos ensinar a nós, assim nós tivéssemos
na disposição de com elas aprender.sábado, 5 de outubro de 2013
Tempestade
Chegaste assim de mansinho para me minares e nem
dei por ti, tal como não dá a ponte pela corrosão que um rio, sempre corrente, lhe
provoca fazendo-lhe estremecer as
estruturas . Talvez não te notasse como não nota a granítica rocha que a doce e
suave água que passa lá deixará o seu rasto, porque parece inofensiva, causa
estragos. Parecias estar somente de passagem, como um visitante que apenas fica
pela novidade da paisagem, pela curiosidade de descobrir novas moradas e por
isso mesmo quando vi que ficavas já era tarde; já me possuías o leme e comandavas
a embarcação rumo a alto mar.
Povoaste-me os sonhos, os que sonho a dormir e os
que, acordada, me levam em tormentosas tempestades; pobres entidades
incorpóreas e diáfanas que se agregaram a mim e em fantasias se fizeram vivas e
presentes atuando como melífluas e mortais personagens que são, à vez, público e produtor.
Que força é essa que paralisa impossibilitando a
fuga sem corrente que prenda? Que poder te conferi eu para com um gesto me
condenares ao inferno ou me elevares aos céus? Temo esse poder que te dei, nem
sei como nem porquê; entreguei-te a capitania e navego agora nos mares por ti
traçados.
Julgava-me a salvo do furacão que se formava
deixando-me enganar pela calidez com que te apresentavas, só a inocência
permite tal engano pois não é em tais climas
quentes que as mais mortíferas tempestades se formam? Não é mesmo no seio dos
mais perfeitos climas que os tufões se formam e num rodopio destroem tudo o que
encontram? Neguei todas as evidências e
fui ficando, mais e mais tempo, nas tuas redondezas até que a velocidade dos
ventos que te assombram me veio soltar as folhas de outono e me deixaram nua.
Foste-me tragando as entranhas qual hospedeiro
parasita em morada alheia, alimentaste-te do meu fogo, do mel e do amor consumiste-me
por dentro para me rasgares na saída… Foram-se os ventos e as ondas da
tempestade, mas ficou o salgado na pele e o cheiro a maresia. E as folhas? Essas,
ao desprendê-las renovaste-as deixando uma nova mulher no lugar…quarta-feira, 2 de outubro de 2013
Tréguas
Enterrámos o machado de guerra e a comprová-lo
está a tua camisa e a minha entrelaçados no chão de um quarto repleto de aromas
de amor; os desatinos, esses, foram-se assim que pisámos o chão que nos lembra
outras noites, outros encontros de vícios feitos, que rasgam as roupas e
reconstroem a alma. Nesses momentos em que seduzidos, ambos, nos entregamos
numa rendição absoluta, em que tu e eu nos transportamos numa onda de prazer
para outros paraísos que nem terrenos são, em que tudo o que é palpável se
desintegra dando vida a um outro mundo só nosso, lá estão as nossas intimidades
expostas que jazem em formas retorcidas e se abraçam no chão.
Tirámos tudo, e nesse desnudar ficámos tão dignos
de amor, numa crueza e soberba poderosa que nem todos os amantes conhecem por faltar
a coragem de serem vistos por inteiro; aterroriza que nos vejam e sintam
quando nos abandonamos: que seria se neste momento em que larguei a armadura
com que me apresento, em que atiro ao chão os acessórios que me aconchegam o
corpo me rejeitasses? Mas não o fazes pois também tu anseias por ser completo
nessa entrega.
Aos poucos vão-se os sons que não são de amor
feitos, ficam só o teu arfar e o meu, esquecem-se outros vícios e sem mais
delongas cobrimos de beijos os corpos nus, rejeitadas as roupas que imitam no
chão o que se passa na cama: cada peça tua e minha, atiradas assim sem jeito
nem cuidado, se sentiram atraídas e se entreteceram…
Esquecem-se os prantos, turva-se a visão e o resto
da paisagem, envergonhada de tanta paixão, dissemina-se por momentos e já só o
que existe são sentimentos; sem corpos nem roupas; só um movimento crescente
que culmina e decai…
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