quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Esquizofrenias

Toca o sino, mia o gato, viraram-me  os sapatos : quem vem lá para me  matar? Que  incompreensão, quem me irá salvar?  Já não sou quem era, quem naquela esquina me espera? Vejo ao longe alguém espreitar… quem me quer tramar? Nada é como era dantes. Porque está tudo tão mudado, tudo fora do lugar? O céu desceu, a árvore caiu, o mar desapareceu… e eu… saí da hibernação. É hora de  lutar, todos me aguardam em loucos anseios, vejo o sol  em brasa que se vai deitar.
Não paro, não posso parar! Aguarda-me o mundo para o salvar. Quem me levou o meu eu? Quem me roubou os sentimentos, os pensamentos, como tudo o que era se foi… estranho mundo que mudou, quem eu era; já não sou… foi o vento que o levou. Ponho asas e em loucura procuro o rumo, não sei se fico, não sei se vou. Sei que foi por mim que tudo isto mudou; não há chão para caminhar, está tudo fora do lugar, do lugar, do lugar… coisa estranha, este vazio, tenho calor, tenho frio, estou feliz, alegre, triste, que verdade me assiste?
Que dizes? Deliro eu? Quem és tu? De onde vens, porque vieste? É que este espaço é meu, tudo é meu, tudo é  meu, meu, meu…vejo atrás daquela porta alguém para me matar, quem me salva deste inferno? Deste agror, deste temor. Verto sangue, verto dor, quem me levou o meu eu, eu, eu… estereotipias verbais? Que dizes?  Estarás louco? Vou-me, o mundo espera para que eu o vá salvar.

Devolvam-me os pensamentos! Devolvam-me os sentimentos! Quero voltar a ser eu. Quero o mundo como sempre: céu azul, céu cinzento, cores garridas nas janelas; quero a árvore erguida, o sol no mesmo lugar; foi-se a lua foi-se tudo. Quem me quer voltar a matar? Já morri, apodreço… tudo fora do lugar… toca o sino, mia o gato, viraram-me os sapatos, sapatos, sapatos… vem alguém para me matar, quem me devolve ao meu lugar?

Lembra-te

Que histórias te contas para te embalares
 quando as horas dos ventos tempestuosos
 só te querem derrubar?

Que versões da tua história guardas
 e pincelas de cores brilhantes para te mimares?
Que te dizes? Que te contas dos teus feitos
das vitórias já passadas; ainda te lembras?
E, quando as dores te abrasavam, persististe.
Ainda te recordas, das horas tristes?

E, quando chorar era inelutável
E de mãos trementes as lágrimas enxugavas
Para degustares  o mel por detrás do sal,
que as tempestades amainam e o sol aguarda…



quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Incongruências pias

Perguntava-me amiúde porque não eram elas tão  púdicas por dentro como por fora. Saias protegendo dos desejos pecaminosos da carne, pesados véus a cobrir os cabelos, que numa, eram de um ruivo de fazer inveja a muitas que tinham de lutar pelo amor de um homem, mas ela não, já tinha o seu eterno e fiel e fizesse ela o que fizesse nunca a renegaria como esposa; e aí reside todo o mal pois não tendo um marido a quem dar satisfações para quem seria ela melhor pessoa? Um marido virtual não tem a mesma força de persuasão apesar de tudo. Sempre me perguntei por que não eram as freiras melhores pessoas do que todos os outros; não era o voto de amor ao próximo a característica mais essencial da sua profissão? Incongruências pias pois lá tempo nas ladainhas de rosários passavam elas muito… mas não se lhe viam que surtissem efeito pois até me parece que em termos de percentagem, lá dentro do lar de meninas carenciadas a que presidiam, elas se saiam mal no que às características de um bom coração diz respeito. E isso afastou-me da religião. Não iria eu a um médico que não soubesse medir a tensão, ou a um sapateiro que me deixasse as solas dos sapatos rotas….
Estas incongruências sempre me incomodaram e sempre desconfiei por isso mesmo de epítetos e etiquetas que se colam deixando que se ajuíze da conduta de alguém antes de lhe conhecer os atos: são perigosos. São-no porque causam enganos. Um desses enganos é quando somos pouco mais do que crianças e vemos tanto aparato santo junto, se um destes expoentes máximos da moral e bons costumes nos diz que não valemos grande coisa temos tendência a acreditar na mentira; mesmo quando nos obrigam a passar nove horas por dia a fazer rendas finíssimas com que as madames da sociedade disfarçam as angústias casamenteiras e com que nós furamos os dedos, nós acreditamos que é para nosso extremo bem mesmo que não ganhemos um chavo e tenhamos de pedinchar para ter direito a um champô… meses e anos assim, passei-os eu porque apesar de tudo tinha um teto e um prato de massas com umas gorduritas a boiar; ah, é que o filet mignon ficava no andar de baixo, covil das lobas, que tinham feito voto de pobreza, mas deviam na altura estar a pensar em nós…
Se queríamos vê-las rabear fazendo esvoaçar o véu era quando o padre vinha lá ao lar: espalhavam-se odores que sempre me pareciam afrodisíacos e os sorrisos rasgavam-se, as vozes amansavam e as mãos aproximavam-se dos terços numa devoção fingida e beata que já não convencia ninguém. A cada uma delas lhe conhecíamos o cavaleiro de carne e osso porque o virtual no que toca a desejos e anseios muito humanos deixa muito a desejar.
Assim se foi a réstia de esperança que eu pudesse ter em salvações impingidas por outrem, se alguém me anuncia a salvação em taças sebosas de pecado só posso desatar a rir com tal disparate, é que isto de ser padeiro e deixar o pão para os outros amassarem não traz clientes com fome…