Sempre fora crente e temente a Deus. Agora, velha
doente e cansada até Ele a abandonava. “Que ando cá a fazer, filha?” “Ora, até
quando Deus quiser” “Deus? Quem é esse? “ Olhei para ela e parecia crer no que
dissera, parecia não se lembrar que lhe dedicara as manhãs de domingo durante
anos e anos, quando no auge da idade e podendo dedicar as forças por outras
andanças, decidia dedicar à sua obra,
quer as cordas vocais para a missa domingueira, quer a força braçal com que
batia os bolos para a quermesse… Por que a abandonava Ele agora? “Quem é esse”.
Já não lhe rezava o Pai Nosso nas horas de aflição, parecia ter esquecido todo
o manancial de orações- cada qual para a sua aflição- também já não lhe pedia perdão
pelos pecados; acaso terá pecados alguém entregue à sua demência? Será talvez
por isso, pela falta de pecados que Ele se julga no direito de a privar Dele? “É
preciso ter fé no Senhor ”-dizia-me sempre que questionava a sua completa e
absurda entrega mesmo nas horas mais difíceis, em que a sua vil e eterna
ausência se fazia sentir com mais força. Continuava ano após ano, mês após mês,
semana atrás de semana a dedicar-lhe os domingos e outros dias da semana assim
fosse necessário. E não era daquelas beatas que vão rezar sem fé; não! Juntava
as mãos com fervor e rezava com alma. Notava-se tão bem que era com alma que
rezava pois quando vinha da missa vinha de uma exuberância não fingida… E
seguia os preceitos. “ Que ando cá a fazer, filha?” . Agora já não olhei para
ela, caía-me uma lágrima teimosa pela face… já não lhe respondi: “ Até quando
Deus quiser, minha mãe” sabia que Ele não tinha nada a ver com o caso dela e
que a sua ausência era o que sempre fora e que só sobrava eu para fazer a minha
velhota viver- “ Anda cá porque eu a amo”. Consegui, apesar de tudo balbuciar “
… porque eu a amo”. Desta vez esboçou um esgar em tom de sorriso e lá continuou
no seu mundo povoado dos meus fantasmas e da ausência dos seus. Ele, o Deus da
sua salvação, também a abandonava assim que as suas memórias se iam esgueirando
pelas frestas que a doença abria nela. Não havia nada a reclamar,Ele, era
apenas coerente na saúde e na doença na tristeza e na alegria, não passando de
uma memória inventada por todos os que Nele esperam a salvação. A minha mãe,
afinal, só me tivera sempre só a mim…
Maria João Varela