Quero ter olhos de poeta ,
ver para além da existência;
olhos de turista: curiosos e atentos
que escrutinam o mundo em busca da essência.
De que vale viajar
sem ser poeta nem ter visão de turista?
Quero perscrutar para além do espectro de luz visível
o que só a alma nobre avista.
Quero a sensibilidade do artista
que sente o que é inefável nos seres:
a hesitação na asa da águia no seu voo picado;
o leve deslizar da dança de um cisne num lago gelado;
a tristeza por trás do sorriso de um velho solitário;
a leveza do vento quando lhe obstruo a travessia.
Quero ouvir o marulhar das ondas
no seu monólogo perpétuo,
entender as vozes que só ele deixa ouvir:
versos cantados de um amor atraiçoado e febril,
carregado de falsas promessas;
ou quem sabe o desespero de quem no mar se abandonou,
e no grito da sereia se alegrou.
Quero, sofregamente, sorver cada gota de sol na alvorada
apreciar o momento exato em que se abandona à volúpia e se banha no rio,
enchendo de ouro as suas águas que me salpicam a pele
quero a chuva que me castiga , o cheiro a terra molhada.
Quero viver no fio da navalha,
qual inseto que só vive uma manhã
cair num abismo sem retorno,
cheirar o aroma fresco da hortelã.
Quero sentir a vida palpitar-me nas entranhas
e não parar para pensar se estou certa ou errada, se posso, se devo.
Quero viajar na escuridão da existência,
mergulhar na angustiante passagem do tempo,
os meus terrores escondidos conhecer
as palavras que não tive coragem de dizer,
transcender o ser tenebroso que ora me habita, ora se vai sem avisar;
amar sem vergonha nem medo de acabar…
Crónica, Reflexão, Artigos, Olhar o mundo, Experiência, Banalidades do dia-a-dia, Ponto de vista.
sexta-feira, 30 de agosto de 2013
quinta-feira, 29 de agosto de 2013
A dama de lilás
Dir-se-ia saída de algum baú da
história, talvez inglesa mais condizente com sua altivez. Tinha um “je ne sais
quoi”, uma aura emanando de uma mistura de naftalina e alfazema que impelia a
que se a olhasse. Vi que não era a única que reparava nela pois embora aparentasse
ser já septuagenária chamava a atenção pelo que irradiava; como se tivesse a
força da juventude aprisionada dentro e o aspeto exterior contrariasse a sua firmeza de caráter que se revelava no andar.
Exceto a rede preta que lhe
apanhava os cabelos, ralos e raiados de prata, sem estarem pintados, todo o
resto da sua indumentária era lilás; de todas as tonalidades possíveis. Os
sapatos, esculpidos por mãos hábeis e experientes de algum sapateiro à antiga
cuja perfeição se observa em cada ponto dado, apresentavam, de todo o conjunto,
o lilás mais escuro do espectro: tinham uma mimosa flor que ornamentava o peito
do pé, um pouco deformado pela idade, mas que sustentavam uma figura digna de nota,
digna de ser imortalizada.
O corpo denotava já uma ligeira
corcunda que o tailleur de bom corte permitia disfarçar, também ele lilás, não
tão escuro como os sapatos, nem tão claro como a mala que sendo grande se
encaixava no conjunto criando uma harmonia inesperada. Da extremidade das
mangas sobressaiam umas mãos finas de veias salientes e uma pele branca sem
marcas , contrastando com um pescoço, este sim, traindo a idade sem deixar que se aproximasse nenhum bisturi das artes modernas; plásticas com certeza.
Tinha um sorriso gentil, embora firme, e uns
olhos vivos de uma lucidez encantadora que hipnotizaram quem a atendia na repartição pública pois
reparei na deferência com que foi, subtilmente, passada à frente de quem já lá
se encontrava e, também eu ,enfeitiçada que estava a observar a figura, não me
incomodei com tal desplante que noutra altura qualquer me faria reclamar com indignação:
ninguém se pareceu incomodar, aliás.
Ali fiquei eu, no meu anonimato,
sendo transportada para um qualquer romance do século XIX que uma pincelada de contemporaneidade
tornava inaudito, sendo reduzida à inexistência por quem me lembrou de
imortalizar sem pedir consentimento. Mas é que é digno de registo a observação
de coisas que o apetite voraz do tempo não consegue devorar. Mulheres! Não
temeis, que o tempo pode consumir o corpo, mas não consome o espírito sem
autorização. quarta-feira, 28 de agosto de 2013
Mostra-me o estendal, dir-te-ei quem és.
De entre todas as técnicas que
possibilitam que se conheça alguém, uma das mais promissoras é a de cuscar os
estendais alheios. A observação minuciosa destes pode ser revelador da
personalidade de cada um dos habitantes, numa dada morada, e isto de uma só
assentada. Acredito que Freud teria tido muito a ganhar se a tivesse utilizado
pois poderia, com toda a certeza, ter poupado horas preciosas do seu tempo em
que, refastelado no sofá, tomava apontamentos da verborreia que assomava à
cabeça das donzelas da alta classe vienense; pena que já não esteja entre nós
pois acredito que de imediato levantaria o nobre cagueiro e correria as vilas e
cidades em busca de roupa pendurada!
Com facilidade se percebe as
pessoas dadas a dissimular traços não de personalidade, mas de carne em excesso
nas coxas, rabo e ancas que isto de viver no século XXI não é propício a ser
mulher, inclinadas que estamos a acumular os excessos de bens alimentícios nas
zonas supra citadas e, como está longe a Mauritânia! Onde gordura ainda é formusura nem que seja conseguida pela inserção forçada pelas goelas
abaixo de cuscuz e leite de camelo – e não
é para a malandrice que camelo serve também para designar a fêmea. Também não
estamos nos séculos XVII ou XVIII onde esta inclinação tão feminina de guardar
nutrientes no sítio errado era motivo de alegria e dava acesso direto a ser
estrela na tela de algum Renoir. Não. O nosso século é cruel por isso é até
compreensivo que se desenvolva uma personalidade dissimuladora de curvas,
tendência esta facilmente percebida pelas cintas completas que se veem
penduradas e que esmagam as carnes desde os joelhos até às costelas, na
esperança talvez que recebam os seios as carnes que sobraram.
Muito fácil também é detetar
aspirantes a cientistas e, consequentemente, aéreos por natureza pelas meias de
pares trocados que se encontram a balançar retorcidas no estendal, tendência
irritante que se lhes perdoa, se forem homens, pois já Einstein se enganava
nesse assunto, sendo mulher, como as collants vêm juntas não dando azo a este
tipo de distração serão os conjuntos de lingerie que darão a um olho treinado
pela experiência essa informação: repare-se se o tamanho do soutien coincide
com as cuecas, se não, podemos atestar a ocorrência de uma personalidade
tendencialmente distraída; ou será simplesmente uma mulher mal jeitosa cujas
mamas saem ao pai e o rabo a alguma familiar de proveniência latino-africana
cujo ramo antigo e desconhecido lhe deveria negar o direito de nos assombrar a genética?
E os obsessivo-compulsivos? Esses
são os mais fáceis de detetar pois a
roupa, imaculadamente estendida, sem rugas nem traços que faça suspeitar que
ainda se encontram a secar, está pendurada e toda enfileirada, agrupada por
cores e tamanhos, bem segura por molas que a agarram em locais específicos e,
milimetricamente, escolhidos fazendo corar de inveja as donas de casa à antiga,
cientes da impossibilidade de competir com tal zelo e perfeição.
E quanto aos mais desmazelados ou em vernáculo
puro português os porcos? Bom, também é só olhar o branco dos lençóis estendidos:
se for pouco menos que branco cal pode-se dar um atestado de imundície, convêm
é primeiro certificarmo-nos que não são só as vidraças das nossas janelas as
culpadas pela impressão causada, sujas que estão pela nossa personalidade cusca
que está para aqui a perder o tempo, precioso e necessário para as limpar, a
reparar nos estendais alheios.
terça-feira, 27 de agosto de 2013
Ator principal
Somos atores sem papel principal
cuja cortina fechará sem que seja dado o toque que anuncia o final do último
ato, sem que tenhamos a oportunidade de agradecer os aplausos a um público, um
tanto ou quanto delirante, a quem
ajudámos a sustentar os dias…
Que falta de pudor! Como nos pode
ser negado esse legítimo direito ? Como podemos desconhecer esse importante
dado sobre nós? Todos vão saber, todos menos nós, pobres ignorantes,
embriagados que estamos ainda pelas luzes do teatro da vida. Continuaremos a
sorrir, como se nada fosse, a representar um papel mais ou menos fidedigno como
se hoje fosse, eternamente, o prelúdio do amanhã, como se o sol lá estivesse
para sempre e nos cumprimentasse pelas
frestas entreabertas das persianas, trazendo toda a existência em partículas de
luz…
Porque temos de compartilhar esse momento em
que voltaremos à essência primordial? Sem qualquer outro adereço senão uma data
desconhecida que se segue ao terrível traço que embora nada mais seja que um insignificante
sinal de escrita separa, aqui, dois vácuos eternos preenchidos, somente, por uma
centelha da nossa existência; grande segredo nos ficará para sempre vedado…
Continuaremos a peça, escrita
para nós por mãos feiticeiras e imaginárias, com o mesmo fulgor de um
principiante que aguarda, a medo, a ascensão, o dia em que se tornará o
protagonista do enredo. Representaremos o nosso papel durante um pestanejar do
universo, um bater de asas diáfanas, um relampejo do cosmos, esquecidos da
finitude da trama que, apesar de tudo, prosseguirá sem nós. Não há que esperar!
A peça não tem hora de acabar e esse guião não contempla a vontade do ator nem
os seus esforços de representação.
Deturpemos a peça, agradeçamos ao
público sem esta ter terminado, mas sobretudo sejamos nós o protagonista da
história da qual reescrevemos o guião para que o elenco, embora siga em frente
sem nós, se recorde da história impar que partilhámos e em que cada um era a
estrela da sua própria peça.segunda-feira, 26 de agosto de 2013
Mãe
Hoje nasceu-te mais uma ruga mãe.
Quase posso jurar tê-la visto nascer, posso assegurar-te que ontem não te
enfeitava o canto da boca quando sorriste. Não a negues nem rejeites, fica-te
bem, aí mesmo, onde decidiu plantar-se indo juntar-se às que já te adornavam a
face. Amo-as, sabes? Amo-as mais do que algum dia amarei as minhas; assim tenha
eu alguém que se compadeça e ame o que o tempo escrever em mim.
Estás velhota e cansada. As tuas
mãos já não criam belas peças com tecidos comuns que te faziam artista na tua
arte: agora a rigidez apoderou-se delas e já só andas apoiada em mim, mas sei
que são os momentos em que te apoio e te toco que te fazem viver, sei também
que anseias que te deite, te levante, te ampare para sentires o meu calor.
Gostas de beijos e abraços e quando, apressada, não tos dou, nas pregas da face
faz-se sentir com mais violência a força da gravidade.
Observo-te agora e vejo como te
amo, muito mais do que em qualquer outro momento, na verdade, aprendi a amar-te
no momento em que abdiquei de julgar as tuas atitudes, o teu afastamento, os
teus silêncios. Porque calas mãe? Porque não te sai um ai, um desejo, um pedido
da boca? Só dizes : «Sonhei contigo.» ou então:« Fiz-te tanto mal, tu és uma boa
menina» e eu aplaco-te a alma dizendo que não, que nada me fizeste de mal. Mas
houve um tempo que também eu acreditava que sim. Que sei eu da existência para te
julgar as ações ? Seria eu capaz de fazer melhor com o que tu tinhas?
Serás feliz, apesar dos dias,
semanas, meses iguais? Ris-te como uma criança na tua demência, ou serei eu que
assim te vejo? Ficas quieta enquanto as mandíbulas vorazes do tempo te consomem
o que te resta de vida. Terás vivido em vão? Terás medo da inexistência ainda
em vida, tal como uma flor que nasce entre as pedras sendo pisada antes de ter
sido observada ( que desperdício!), as tuas lágrimas, terão sido derramadas com
outro propósito que não o de te aliviar a alma? Não sabes responder a estas
questões difíceis e também não parecem incomodar-te, ou serei simplesmente eu
que não o consigo enxergar?
Dás-me todos os dias a
oportunidade, cada vez mais rara, de encarar a degradação do corpo e do
espírito; ah, quão difícil é observar a decadência assim de tão perto, sem os
subterfúgios de salas asséticas onde tudo o que lembra o declínio natural é
removido da vista. Não. Aqui tudo é visto na sua crueza fria e medonha: todos
os cheiros a podridão, todos os descuidos do corpo dependente, toda a tragédia
humana na sua amplitude, a aproximação da morte.
Como somos frágeis! Como nos
esquecemos disso nos anos de autonomia. Como nos faz falta o amor, capaz que é
de nos tornar eternos! Eu amo-te, sabes? Hoje mais do que na tua juventude.
Aprendi a amar-te por te cuidar. Compadeci-me da tua condição por me lembrar da
minha: não serei também eu um simples ser mortal em busca da eternidade? Ao aceitar-te
aceitei-me nas minhas fraquezas, na minha humanidade deveras comovedora. Quão
enternecedor é olhar um ser despojado de todas as vaidades, de todos os
desejos, na mais completa entrega a outrem. Que seria de ti mãe, sem o meu
amor? E que seria de mim afinal se me tivesse sido negado ver, sob o manto da hipocrisia, esse manto de retalhos dos subterfúgios modernos com as suas cores
vivaças e garridas, o manto cintilante e falso que só quer ver refletida a
juventude, a beleza, o esplendor, o quanto precisamos uns dos outros afinal?
Maria João Varela
Maria João Varela
sexta-feira, 23 de agosto de 2013
Poeta da existência 1
Quero ter olhos de poeta e ver para
além da existência;
olhos de turista: curiosos e
atentos que escrutinam o mundo em busca de prazer. De que vale viajar e não ser
poeta nem ter visão de turista?
Quero perscrutar para além do espectro de luz
visível o que só as almas nobres veem.
Quero a sensibilidade do artista
que sente o que é inefável nos seres: a hesitação na asa da águia no seu voo
picado;
o leve deslizar da dança de um
cisne num lago gelado;
a tristeza por trás do sorriso de
um velho solitário;
a leveza do vento quando lhe
obstruo a passagem.
Quero ouvir o marulhar das ondas
no seu monólogo perpétuo e entender as vozes que só ele deixa ouvir: versos cantados de um amor atraiçoado e cruel,
tantas e tantas vezes carregado de falsas promessas;
ou quem sabe o desespero de quem no mar se
abandonou, ou o grito da sereia cansada da sua inexistência.
Quero, sofregamente, sorver cada
gota de sol, apreciar o momento exato em que se abandona à volúpia e se banha
no rio, enchendo de ouro as suas águas que me salpicam a pele;
quero o aroma fresco da hortelã, a chuva que me castiga a pele, o cheiro a
terra molhada.
Quero viver no fio da navalha e a qualquer
altura cair num abismo sem retorno,
viver qual inseto que só vive um dia;
quero sentir a vida palpitar-me
nas entranhas e não parar para pensar se estou certa ou errada, se posso, se
quero, se devo.
Quero viajar na escuridão da
existência, mergulhar na angustiante passagem do tempo, conhecer os meus
terrores escondidos, as palavras que deixei por dizer;
transcender o ser tenebroso que ora me habita,
ora se vai sem avisar;
amar sem vergonha nem medo de acabar…
quarta-feira, 21 de agosto de 2013
Cartas, cartões e outras complicações
Uma vez mais tive de me deslocar
à loja do cidadão, consequência de no último ano ter mudado de morada três
vezes. Uma ilação a tirar é que estando já habituada, conhecendo os trâmites da
coisa, a tarefa se tornaria mais fácil; porém, nada mais enganador… este é o
tipo de tarefa cuja dificuldade é inversamente proporcional ao número de vezes
que se pratica. E tudo por causa da “carta” ou melhor das “cartas” que se vão
acumulando em cada ida aos ditos serviços.
Como se não bastasse a longa
espera, devido talvez ao facto de Agosto ir no seu auge e a sala de espera
estar cheia de emigrantes, começo a preocupar-me, o que se nota pelas mãos
transpiradas e coração ligeiramente acelerado: qual é afinal a carta que tenho de apresentar? Bom, a que
recebi agora, via correio, é de certeza, mas a primeira se não me engano também
pois lembro-me perfeitamente de noutra minha ida aos mesmíssimos serviços uma
solícita funcionária me ter vivamente aconselhado a tê-la sempre comigo, ou
será que só é preciso uma? Começo a ficar confusa…
Já conformada com a longa espera,
entretenho-me a observar os que chegam:
passo estugado até confirmarem com desalento que terão de dedicar os tempos
mais próximos de pé, ou sentados se a lotação o permitir, naquilo que é
habitualmente uma pausa indesejada por qualquer cidadão por muito sentido
cívico que tenha. Sozinhos, aos pares ou em bandos familiares heterogéneos
chegam e lá vão como podem passando o tempo restante até ao momento tão
aguardado quando são atendidos. O nervosismo sai-lhes pelos pés que abanam num
frenesim ou pelas palavras menos corteses que lhes sai pela boca para os seus
mais próximos, familiares ou amigos - « Para que estás para aí a ateimar?»; «
Quieta, senão levas já!» e outros impropérios mais ou menos ofensivos.
A juntar à tensão da longa espera
assolam-me agora com maior vigor as dúvidas sobre os códigos ou PIN(s). Jesus
que me acuda que o imbróglio é contumaz. Ao todo, nem sei bem quantos são,
talvez uns cinco ou seis por carta e eu ainda mudei os meus, que se lhes vieram
juntar, aumentando assim a confusão e, pensando bem, será que mudei todos ou só
alguns? Tento-me acalmar:« Que problema é que pode advir daí? Se me enganar,
volto a tentar de novo». O coração dá um coice agora com maior violência. « Se
me enganar o cartão bloqueia! Meu deus, a funcionária da outra vez advertiu-me
com veemência que isso, Jamais, poderia acontecer e pela cara dela pude ver que
era grave se bem que não me informou sobre o que na realidade aconteceria…».
Tiro um lenço de papel da mala e
enxugo o suor que é agora abundante nas palmas das mãos. Vai-se, lentamente,
aproximando a minha vez, mas desejo agora que demore mais até me decidir qual
das cartas vou apresentar e qual dos códigos vou digitar. As caras sorridentes
dos posters na parede contrastam com as dos utentes e funcionários que tentam,
apesar de tudo, tolerarem-se uns aos outros e mais uma vez me assola uma
questão:« deveria ou não ter trazido a primeira carta, a primeiríssima que me
deram quando tratei do cartão de cidadão? Não, essa não porque penso que até já
a poderia ter deitado fora, mas persegue-me a voz grave da funcionária – a carta,
sempre consigo, sempre consigo, sempre consigo…». Lembro-me agora que já tive
de pagar uns euros extra por tê-la guardado tão bem, preocupada com as
indicações da funcionária, que nem eu própria a encontrei dentro de um envelope
onde jaz até hoje, mas penso que pode ir fora; ou será que não?
Chegou finalmente a minha vez.
Atende-me uma solícita funcionária, como todas as outras, aliás, e pede-me a carta
de confirmação. É que até se dão ao trabalho de, sempre que mudamos a morada,
voltarmos lá para confirmar a decisão, não vá o diabo tecê-las e, arrependidos
da mudança, voltarmos com a mobília às costas para o sítio de onde mudámos:
assim evitamos o transtorno que tal arrependimento acarretaria e fica tudo sem efeito. Temos 60 dias para
pensar bem na decisão. « A carta? - Pergunta.» Feliz por a pergunta ter sido feita
no singular, respondi: « Tenho-a aqui, mas mudei os códigos». « Pode digitar.». A medo, como quem corta o
fio de uma bomba sem saber se está a cortar o fio certo, digitei. Alívio,
funcionou! Mais segura de mim digito segunda vez, como me foi pedido, mas agora
mais rapidamente e para ai de todos os meus ais ouço a temível palavra: «bloqueou»,
dita numa voz que me pareceu grave, mas
creio ser devido ao meu pavor pois a cara que exibia, assente num pescoço
lembrando um tronco forte e largo , um pouco por culpa da camisa apertada
demais no colarinho, até ostentava um leve sorriso. Aflita, ponderava qual dos
cinco PIN(s) de que era portadora, numa das duas cartas com que me fazia
acompanhar, deveria então digitar quando a voz salvadora me tirou do devaneio:
« Digite novamente que só inseriu três dígitos, com calma para não bloquear
outra vez.».
Então era só isso? A palavra dita
por esta não tinha associada a gravidade da outra. Se me enganasse e bloqueasse
o cartão digitava outra vez e ficava tudo resolvido? E nem sequer tinha
precisado da primeira carta? Deixei-me de complicações e de incursões
filosóficas sobre a motivação da primeira funcionária que tanto me tinha
traumatizado e pisguei-me dali para fora, não sem antes perguntar: « Esta já
pode ir para o lixo?» Ao que me respondeu: « É melhor não, que às vezes há problemas com as
finanças.» Ora, bolas! Saí, ainda perseguida pela voz poderosa da minha
imaginação « A carta, sempre consigo, sempre consigo, sempre…»
domingo, 18 de agosto de 2013
O relógio do cuco
Jamais me esquecerei do relógio
do cuco. De hora a hora lá ficava na esperança de o ver sair do buraco com o
seu cu-cu característico inconsciente do facto de ele contar a passagem do
tempo, a passagem de segundos, minutos, horas, vidas inteiras.
A minha mãe ria-se, por entre
mais umas pedaladas na máquina de costura, e alertava-me para ter cuidado, mas
eu, por mais longe que estivesse da sala de jantar onde ele cantava saía
disparada e, se por azar ou devido à hora, o apanhava já dentro do ninho,
sentia uma perda irreparável: como quem perde um tempo que já não volta.
Voltava cabisbaixa e a minha mãe, conhecedora das coisas dizia: ”Ele volta, não
te preocupes”.
Uma altura avariou. Para mim foi
uma tragédia pois ele era, a par dos chapeuzinhos de chocolate e das pinhoadas
que, logo pela manhã, a minha mãe me comprava no caminho para a casa das
senhoras ricas onde trabalhava, a minha distração. Não havia televisão, nem
brinquedos – que me lembre – por isso mesmo a sua perda foi irreparável, fiquei
sem alegria, sem o meu amigo cuco que saía mais ou menos vezes do buraco
consoante a hora do dia que anunciasse. A geringonça mecânica era um cuco de
verdade, só para mim, mas era. Imaginação de criança não permite restrições de
natureza física; ele era feito de carne, osso e penas e tinha sentimentos só
reconhecidos por mim, talvez fosse apenas a projeção dos meus nele, mas eu
reconhecia se estava triste ou alegre pelo tom com que cantava anunciando a
passagem irreversível do tempo.
Acho que fiquei doente; eu era
assim, e ainda hoje sou: qualquer coisa me transtorna o espírito e logo me
massacra o corpo. Já não queria ir de manhã cedo com a minha mãe: “ O cuco,
mãe?” “Ele volta! Agora levanta-te!”. Chegadas ao destino corria para vê-lo,
mas o buraco continuava vazio e o peso da sua ausência fazia-se sentir em mim;
é que a ausência de um amigo que vai sem se despedir e dizer se volta ou não é
aterradora, perdemos um pouco de nós próprios que eles levaram sem disso ter
consciência.
Um dia voltou, eu sei que foi por
mim pois a dona da casa compadecida da minha dor lá o mandou arranjar se bem
que já estivesse decidida a trocá-lo por outro mais moderno. Com ele voltou a
alegria e vontade de me levantar pela manhã e correr pelo corredor afora a cada
quarto de hora que era o tempo que demorava entre cada aparição. Ainda hoje, quando ouço um, me parece sempre ser um cuco de verdade até porque ao
desaparecer no tronco feito relógio, o escuro que se faz lá dentro aguça a
imaginação e torna possível tudo aquilo que a realidade por si só impossibilita.sábado, 17 de agosto de 2013
Inconciliáveis opostos
Olharam-se, uma do alto da sua
história com perto de três séculos feitos , a outra, do alto da sua
contemporaneidade; a primeira, firme e serena, esfinge branca, alta e fria, com
modos à antiga cumprindo normas e preceitos, rituais com toques de arrogância
que regulam a vida dos que se regem por eles, a outra quente e mundana,
sedutora no seu vestido vermelho que à noite alcança o apogeu de luz ,
desregrada e moderna contendo promessas
de ávidos prazeres; rivalidades inconciliáveis as desunem e, no meio do pomo da
discórdia, ao destilar de um ódio quer barroco quer moderno, o rio Mondego
assiste, qual testemunha muda e indiferente sem se pronunciar.
Onde Sobriedade e luxo se confrontam, em
margens opostas, empunhando cada qual a sua espada, defendendo cada uma um
território de valores contraditórios e inexpugnáveis, separadas pelo tempo e
pelo rigor de uma em contraste com o pendor displicente da outra, duas belas
torres, cada qual com seu encanto: uma feita de cultura e recato, a outra,
consumo e depravação; rivalidades femininas na luta sem tréguas por
pretendentes que, indiferentes à disputa, se repartem por ambas sentindo apelos
opostos quer se deitem com uma quer acordem com a outra.
Os mais incautos deixam-se
apanhar, à noite, como insetos desgovernados que rodopiam em círculos atraídos pela
mais ruidosa e atrativa nas suas cores berrantes e incandescentes, a outra vai
lembrando e incitando à reflexão e contemplação com toques de um sino regular
qual pai no seu autoritarismo relembra a filha da hora de recolhimento e o seu
poder de sedução está ancorado em crenças e valores intemporais e seguros que
dão conforto e alento quando a outra já esgotou há muito o prazer de ser
novidade. Volta, assim, a antiquíssima ,às luzes da ribalta, mais contida e por
isso mesmo mais segura e pujante no seu inviolável sentido de missão: regular a
vida através de toques pontuais e sonoros, relembrar que é hora de partir em
batalhas que ainda estão por ganhar.
segunda-feira, 12 de agosto de 2013
Síndrome das personalidades plásticas
Earl Tupper jamais imaginaria que
70 anos depois a sua invenção iria transpor a funcionalidade prática para que foi criada e
fosse objeto de incursões histórico-filosófico- psicológicas por parte de quem
não tem mais nada que fazer e se põe a discorrer sobre tipos de personalidade
associados ao número de tupperwares que cada um tem no armário da cozinha. A
questão é que não podes ser boa rês se o teu armário estiver recheado de
tupperwares, todos com a tampa certa; isto é um facto iminentemente científico…
A menos que estas soberbas invenções
de Earl Tupper tenham asas e uma propensão para, pela calada da noite, galgar
escadas e parapeitos numa incursão turística lembrando couchsurfing, para nos saírem
de casa só têm um meio: irem passear para a cozinha de uma outra entidade,
recheadas daquilo que tivermos na altura para partilhar. Lá vão eles – os taparueres,
num trejeito aportuguesado – airosos e felizes abancar noutra freguesia para quando
voltarem, se voltarem, já virem mudados, transformados na sua essência que é o
mesmo que dizer com outra cabeça que na linguagem das embalagens significa
simplesmente com outra tampa.
Outro motivo não existe para que
as ditas caixinhas de plástico ou desapareçam como num ato de prestidigitação
ou lhes salte a tampa; a única explicação é seres boa pessoa e ofertares o que
quer que seja dentro deles e ficas como já reza a história sem o amigo e sem o
dinheiro sendo que neste caso é sem o amigo e sem dita caixinha ou respetiva tampa.
Tudo isto pode ser avaliado através de um
simples cálculo podendo-se então inferir uma determinada personalidade. Ou
seja, existe um simples teste para determinar quem é mais generoso nisto de
partilhar géneros alimentícios, normalmente já cozinhados e tudo: contas
quantos tupperwares tinhas no início, contas quantos tens no momento do estudo
assim como as supracitadas tampas e depois é só tirares conclusões. Se tiveres
a mesma quantidade que tinhas no início e ainda por cima todas as embalagens tiverem
a tampa certa, isso significa que não dás nem recebes comida, és, por esta
mesma teoria, um unha de fome, um agarrado, egoísta e avarento; se tiveres a mesma quantidade, mas as tampas
estiverem todas trocadas isso quer dizer que tens partilhado tanto quanto
partilham contigo, és um ser equilibrado embora não encaixes bem da tampa e
escolhes amigos como tu – nenhum encaixa a dita cuja convenientemente; se
tiveres a mais ou a menos há claramente um desequilíbrio que te pode afetar
tanto positiva quanto negativamente. Aqui tanto podes ser um palonço ou um puro
cigalheiro. Não falha, é matemático!
Existe uma tal dinâmica nesta
invenção de Earl Tupper que por muito
que tenha observado o fenómeno nunca vi uma cozinha que tivesse os mesmos
tupperwares do início, a mesma quantidade, ou com as tampas todas sequer : há
muitas vezes uma troca completa de serviços de plástico e já não se sabe bem o
quê pertence a quem.
Seja qual for o resultado do teu
teste há, no entanto, um fator de esperança. Consoante os resultados, podes
sempre começar a despachar mais caixinhas para os teus amigos e familiares,
podes pedi-los de volta – de preferência cheios – ou simplesmente fazer mais do
mesmo se estiver tudo bem contigo; é que tal como as benditas embalagens este
tipo de personalidade é altamente plástico e flexível e numa escala de Likert pode alternar entre o
1 e o 5 com tanta facilidade quanto uma incursão à cozinha em busca do que
meter dentro da caixa.
E tu, com estás em matéria de
caixinhas de plástico?
sexta-feira, 9 de agosto de 2013
Obra prima
A vida é um livro por escrever e
a arte com que escrevemos as páginas do livro da nossa é que vai determinar se
vivemos ou não um best-seller, se será um drama ou uma comédia.
Cada novo dia é uma nova página
que nos é oferecida, em branco, para que a escrevamos e a narrativa que
escolhemos para compor o livro da nossa vida é que vai determinar a maneira
como vivemos. Se não formos peritos na arte de narrar a nossa história teremos
um mau romance ; se nos empenharmos nessa arte, se contarmos belas histórias a nós
próprios seremos incomparáveis na arte de viver.
É que a vida, tal como uma obra
prima, precisa ser embelezada, com todos os pormenores que estão lá, mas que
teimamos em não ver, apressados que andamos numa narrativa automática…
Quando deixamos a narrativa da
nossa vida entregue ao piloto automático, que adora prestar-nos um terrível
serviço, estamos a falhar na arte de viver; é como se entregássemos a escrita
do nosso best-seller ao Google – quem conhece
as traduções feitas por ele sabe que pode dar muitas calinadas.
A vida é ainda uma bela pintura;
com que paleta de cores escolhemos pintá-la? Existe toda uma gama infinita de
tonalidades e brilhos, de diferentes composições químicas e texturas. Porque demoramos
mais a escolher a cor dos objetos que nos rodeiam do que as cores da nossa
pintura? Que escolhemos realçar quando pintamos esse quadro? Que pormenores deixamos
na sombra quase impercetíveis aos olhos do leigo e que outros pintamos de cores
garridas salientando a forma e o tamanho?
A vida é ainda uma sinfonia,
partitura escrita em tons graves e agudos, em notas escolhidas com ou sem
critério e cujo maestro se encarregará de a tornar ou não harmoniosa. Um mau
maestro, ou simplesmente inexperiente, pode tornar a vida uma cacofonia…
Nesta arte em que cada um de nós
é o artista que compõe a própria vida, mais importante do a matéria prima com
que criamos - quer estejamos a narrar, a
pintar ou a compor uma peça musical - é
onde vamos em busca de inspiração. Cuidado, muito cuidado para não
esborratarmos a pintura toda, para não misturarmos realidade e ficção numa
narrativa pobre em vocabulário e rica em figuras de estilo medievais. E haja
santa paciência, que ela às vezes é escassa, para ouvir vidas tocadas a estilo
pimba com contornos neo-populares…
quarta-feira, 7 de agosto de 2013
Rivalidades
Se dúvida alguma houvesse ainda
no meu espírito ela ter-se-ia dissipado hoje, pela manhã.
Eram ambas caquéticas: vestidos desalinhados
pelas posturas pouco eretas que o avanço da idade já não permite poses de
manequim; sapatos cambaios, condizentes com os avançados joanetes e peles
pendentes com falta de colagénio. Falavam gesticulando. Pelo jeito diria que se
conheciam desde há muito tempo. Falavam das dores de ambas, quem sabe na
esperança mútua de que as dores alheias, por serem maiores, ajudassem a minimizar
as próprias dores. Ao passar por elas, já se despediam e pelo canto do olho
pude ver o olhar de alto a baixo que uma deitou à outra-que já seguia, trôpega,
a sua vida.
Era daqueles olhares reprovativos que nós,
mulheres, bem conhecemos e com os quais costumamos prendar as rivais quando
achamos que se armam em boas e que sobem demais a bainha da saia angariando,
deste modo, mais olhares masculinos. Tudo bem, já aceitei que nós nos vestimos
para fazer inveja às outras mulheres e não para agradar os homens; que nós
avaliamos as outras-mesmo inconscientemente- para nos certificarmos que não
estão à nossa altura, mas naquelas idades? Que pensaria a senhora de olhar
reprovador? Que a outra mostrava um pouco mais dos artelhos do que os bons
costumes costumam aconselhar? Bom, talvez isso seja apenas sinal de que é mais
corcunda, seguindo o vestido a tendência natural de subir de um lado e baixar
do outro, e por isso mesmo deveria dar graças…
Não restam pois dúvidas de que se
formos prendadas com muitos e muitos anos de vida continuaremos a ter, até ao
fim, os mesmos olhares rivais femininos de outros tempos, embora nos faltem,
talvez, os masculinos que justificariam os primeiros…
terça-feira, 6 de agosto de 2013
Quem és tu, escritor?
Quem és tu escritor? Com trejeitos
de um Deus maior, acaso te julgas um? Os teus dedos vão criando, ao sabor de um
suave teclar, personagens e lugares e enredos antes inexistentes que manipulas
ao sabor da imaginação do momento.
Com um olhar seleto reduzes a pó
todo um universo para fazeres saltar para as luzes da ribalta o que bem
entendes, pormenores insignificantes ganham, assim, uma importância inusitada
enquanto outros são propositadamente omitidos. Sabe-te bem esse poder que
trazes nas pontas dos dedos, oh senhor da vida e da morte? Acaso vives tu também através dos
inúmeros seres que dás à luz?
Vives com o mundo dentro e tens
essa necessidade premente de o moldar à tua imagem e semelhança: única forma de
te dares a conhecer; és um ladrão de vidas e sonhos de amores e essências. És ainda
um indiscreto que olha dentro da alma desvendando-a a teu bel-prazer para com
um toque certeiro, um volte face inesperado a pores na velha arca das
recordações e usares quem sabe um dia se dela precisares; se não, ficará ela
desnudada para sempre, mas esquecida relegada para um plano jamais utilizado.
Qual genocida impiedoso quantos e
quantos seres mataste tu à nascença? Quantas crenças alheias derrotaste com uma
simples pergunta? Quantos preconceitos dissipaste? Quem te julgas tu, que poder
te assiste para com a palavra certa fazeres chorar o mais empedernido? Por que
portas e travessas surges qual salvador, cavaleiro andante e trazes de volta
quem se encontrava já esquecido.
Que fascínio têm as belas
palavras que escreves para eu me descobrir? Com que passe de magia dizes as
palavras que eram minhas, mas que nunca se atreveram a sair-me da boca! Oh,
Deus! Por que linhas escreves e reescreves o destino daqueles pobres iludidos
que o julgam seu vendo o mesmo ser desvendado numa página aleatoriamente escolhida.
Ah, mas às vezes as tuas
personagens tomam conta de ti, possuem-te com uma tal força que se inverte o
poder; ganham vida própria e viram-se contra o próprio criador e és tu que lhes
tens de seguir os passos: pegam-te na pena e dominam o enredo, enredando-te
junto, transportando-te ao inferno por ti tantas vezes criado e onde realidade
e ficção se misturam mesmo fazendo parte de universos paralelos que jamais se
tocam…
Triste sina a tua, vais de senhor
a servo na inconstância dos dias e noites que passas criando seres que na volta
te criam a ti…
quinta-feira, 1 de agosto de 2013
Embaraço
As coisas têm a importância que
lhes conferimos; a importância das coisas simples, corriqueiras e banais só nos
apercebemos dela quando um dado artefacto ou objeto de utilidades múltiplas nos
falta. Falte-nos um lenço de papel numa triste hora em que nos apercebemos com
desgosto que o descuido da empregada de limpeza nos deixou- principalmente a
nós mulheres- a balançar numa posição pouco digna e seremos capazes de despejar
todo o valioso conteúdo da nossa bolsa no chão, milhentas vezes pisado, à
procura do dito cujo; que alívio se por descuido jaz um, nem que todo
amarrotado, nos confins da mesma!
Os lenços são dos tais objetos
que só sabemos que existem quando estão ausentes numa hora de aperto, uma hora
em que nos apercebemos que a maldita mudança de temperatura nos pôs o nariz
outra vez a correr em bica por culpa da constipação mal curada: que
constrangimento utilizar disfarçadamente o avesso da manga da camisa para
substituir o supracitado que se sente, agora, vingado pela indiferença com que
tem sido tratado quando buscamos outros objetos mais valiosos, mas bem menos
úteis . Já para não falar das vezes em que distraidamente fazemos uma bolinha
de muco seco e quando nos preparamos para a enrolar bem enroladinha num
imaculado lenço, lá está ele em falta outra vez. Olhamos constrangidos para um
e outro lado à procura de alguém que detetasse este nosso ancestral hábito e
zuca, para nosso descontentamento, vai estatelar-se no chão.
Para quem tem crianças o lenço é
dos objetos mais valiosos e imprescindíveis; não existissem eles e as nossas
maravilhosas crianças passeariam com os pais ao domingo com as beiças
pintalgadas e as mãos lambuzadas; e os narizes? Esses aí convidariam a um
retorno rápido a casa estragando o humor de toda a família…
Pergunte-se a algum cavalheiro de
nobres costumes o que sentiu na hora em que disponibilizou o seu ombro amigo
para alguma desgostosa donzela lá desanuviar a alma quando deu por falta do
lencinho. Das duas uma: ou arrependido do ato mandou-a ir limpar o ranho para
outro ombro menos esquisito ou teve de voltar para casa com nojo do próprio
ombro, agora húmido dos desgostos alheios.
Não nos iludamos, pois, com o
valor das coisas. Algumas reduplicam o seu valor em certas horas para voltarem
ao seu estado costumeiro de invisibilidade quando procuramos quotidianamente
objetos que nos são caros, mas que são, pela sua idiossincrasia, incapazes de
nos tirar de apuros…
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