terça-feira, 26 de maio de 2015

Meus Deus por que a abandonaste?

Sempre fora crente e temente a Deus. Agora, velha doente e cansada até Ele a abandonava. “Que ando cá a fazer, filha?” “Ora, até quando Deus quiser” “Deus? Quem é esse? “ Olhei para ela e parecia crer no que dissera, parecia não se lembrar que lhe dedicara as manhãs de domingo durante anos e anos, quando no auge da idade e podendo dedicar as forças por outras andanças, decidia  dedicar à sua obra, quer as cordas vocais para a missa domingueira, quer a força braçal com que batia os bolos para a quermesse… Por que a abandonava Ele agora? “Quem é esse”. Já não lhe rezava o Pai Nosso nas horas de aflição, parecia ter esquecido todo o manancial de orações- cada qual para a sua aflição- também já não lhe pedia perdão pelos pecados; acaso terá pecados alguém entregue à sua demência? Será talvez por isso, pela falta de pecados que Ele se julga no direito de a privar Dele? “É preciso ter fé no Senhor ”-dizia-me sempre que questionava a sua completa e absurda entrega mesmo nas horas mais difíceis, em que a sua vil e eterna ausência se fazia sentir com mais força. Continuava ano após ano, mês após mês, semana atrás de semana a dedicar-lhe os domingos e outros dias da semana assim fosse necessário. E não era daquelas beatas que vão rezar sem fé; não! Juntava as mãos com fervor e rezava com alma. Notava-se tão bem que era com alma que rezava pois quando vinha da missa vinha de uma exuberância não fingida… E seguia os preceitos. “ Que ando cá a fazer, filha?” . Agora já não olhei para ela, caía-me uma lágrima teimosa pela face… já não lhe respondi: “ Até quando Deus quiser, minha mãe” sabia que Ele não tinha nada a ver com o caso dela e que a sua ausência era o que sempre fora e que só sobrava eu para fazer a minha velhota viver- “ Anda cá porque eu a amo”. Consegui, apesar de tudo balbuciar “ … porque eu a amo”. Desta vez esboçou um esgar em tom de sorriso e lá continuou no seu mundo povoado dos meus fantasmas e da ausência dos seus. Ele, o Deus da sua salvação, também a abandonava assim que as suas memórias se iam esgueirando pelas frestas que a doença abria nela. Não havia nada a reclamar,Ele, era apenas coerente na saúde e na doença na tristeza e na alegria, não passando de uma memória inventada por todos os que Nele esperam a salvação. A minha mãe, afinal, só me tivera sempre só a mim…

Maria João Varela


domingo, 17 de maio de 2015

Somos bicampeões carago!


 Nem o bruxo de Fafe nos impediu, ganhámos, porra! Quem se importa com o défice ou com a falta de futuro? Isso é p’ra amanhã porque o “bem podias fazer hoje” só fica bem na letra do Variações. Assim vamos indo, pobretes, mas alegretes como sempre fomos e seremos. É que já não há remédio!
Somos o país das paixões e da fé, das festas e jantaradas- nem que depois não haja para o resto do mês- mas enquanto há festa há romaria, cantes e cançonetas e ajuntamentos que se farta; que importa o amanhã se hoje há bebedeira na certa? Lá vamos rezando a Nossa Senhora de Fátima o terço, lá vamos arrastando os joelhos mortificados pela fé e lá vamos festejando o futebol- já me parece só faltar aqui o fado…
Que importa sermos sempre os últimos naquilo que importa? Da justiça à educação, da saúde- não somos os mais obesos, os reis das patologias mentais, os que mais morrem do coração? -  PIB- “Qué, qué isso?”- que importa agora a dívida? Essa fica para os netos e bisnetos. Que importa não haver futuro? O aqui e agora é este. E o futebol manda mais que a barriga cheia… Que importam velhos abandonados e doentes? Que importam crianças sem teto ou comida? Que importa continuarmos a ser agora aquilo que sempre fomos: dos mais pobres da Europa?
Mas, que tem? É preciso esquecer as desgraças, ter fé que tudo se compõe  virá, talvez, um D. Sebastião que nos salve. Ámen! Ámen!
Que importam filas nos hospitais? Os salafrários no poleiro? Que importa isso agora? Somos bi, somos bicampeões, carago!
Amanhã acordamos todos outra vez… lá está o país, a falta de emprego : do jovem, adulto e idoso, a falta de carcanhol- quem olhasse para o estádio não o diria- a  falta de combustível que hoje é gasto para dar a volta às rotundas, lá estão os velhos- um pouco mais velhos ainda, mais tristes também- lá estão os antidepressivos para nos esquecermos que somos tristes, pobres e que pouco ou nada fazemos para alterar coisa alguma. Somos assim. Sempre assim fomos e seremos:  é nossa sina e destino, a música pimba ao domingo, a festa, a farra, a chouriça e o tintol,  os impropérios contra quem governa e por fim , o conformismo com isto tudo porque está-nos no sangue. Já nascemos assim.
Que tenho contra a festa, o futebol, a alegria? Nada minha gente! Só gostava que estivessem onde deveriam estar. Que envolvessem menos gente e energia, menos paixão e euforia do que as lutas que verdadeiramente importam e que nos fariam sair deste triste fado. Só isso.

Agora viva! Somos bicampeões, carago!

Maria João Varela


terça-feira, 12 de maio de 2015

Alienados

Passeavam corpos, corpos esses sem ninguém lá dentro.  Os legítimos donos ,ausentes, sabe-se lá onde ou para quê tinham deixado à deriva, entregues a automatismos diários, sem supervisão ou vida, apenas isso: corpos. Olhos pousados no asfalto- ou na tecnologia?- prosseguiam, contudo, a rotina sem prendarem o mundo com a sua presença. Seriam cadáveres? Cadáveres não eram pois mexiam- os cadáveres não mexem…
Eram pretos e brancos, vermelhos e amarelos- sem serem muito garridos, claro!- mas todos sem exceção vinham vazios de gente. Onde andariam aquelas almas perdidas?  Viajavam. No passado ou futuro. Mas sempre ausentes da vida. Quem lha poderia restituir antes que fosse tarde?
Andar, andavam. Paravam nos semáforos- mas não paravam para se ajudar uns aos outros- apressados, sempre apressados e ocupados. Ocupados com tão pouco daquilo que vale a pena, mas acreditavam que sim, que valia o sacrifício com que entregavam a vida aos apelos de um mundo sempre exigente e chamativo. Viajavam pelo tempo- passado e futuro- , mas ausentes do presente e ausentes de si. Eram impelidos por uma força maior que puxava, puxava para que andassem sem parar, mas eram apenas e só autómatos e escravos, escravos do tempo.

Já nem corpos eram. Também já não viajavam no tempo. Mas continuava a não haver ninguém dentro dos corpos inexistentes. Não existia nada. Mas andavam, paravam nos semáforos- e já nem se viam uns aos outros- perdidos num mundo inexistente. Nasciam e morriam, sem viver…

Maria João Varela


sábado, 7 de fevereiro de 2015

“A islamofobia no seu melhor”


É ponto assente, pelo menos para um multiculturalismo radical, que criticar as sagradas escrituras do Islão, as crenças da Idade das Trevas dos muçulmanos , nem que tal crítica seja suportada por factos,  amplamente documentados, ou que sequer sejam negados  pelos visados,  que isso corresponde a ser-se islamofófico . Pior ainda: quando nos prendam com esse neologismo, habitualmente o mesmo vem acompanhado do bicho papão da extrema-direita e dos crimes bárbaros perpetrados por Hitler. Dizem ainda, os proponentes da superioridade muçulmana, que islamofobia é precisamente a generalização que se faz ao querer colocar tudo no mesmo saco; não se apercebem, mas já eles próprios caíram na mesma tentação: colocaram todos os que criticam o Islão no mesmo saco islamofóbico… E não é um saco qualquer. É um saco muito malcheiroso que junta numa amálgama – eles também criticam as amálgamas – os que odeiam imigrantes, os que queriam  uma Europa só com europeus – num autismo exacerbado- aqueles que odeiam  os muçulmanos propriamente ditos e os fervorosos cristãos que acreditam ser o seu Deus melhor do que Alá. A verdade é que Pode ser-se crítico do Alcorão, do Islão e dos muçulmanos sem, no entanto, se ser nada destas coisas.
Francisco Louçã é um desses radicais, juntamente com mais alguns da sua cor política e segue num autêntico raciocínio circular fazendo derivar da falsa, e sobrestimada, perceção que os europeus e norte americanos têm da percentagem de imigrantes muçulmanos nos respetivos países, o sucesso das políticas da extrema- direita. Como se estivesse bem estabelecida a ligação, mas não está. Assim como também não tem necessariamente a ver o número de radicais islâmicos com os estragos que fazem e a sua capacidade de galvanizar as populações: podem ser uma minoria, mas fazem muitos estragos e estão em crescimento.
Este radicalismo multicultural quer ainda que assumamos um pecado  que cometeram os nossos antepassados  cristãos da Idade Média aquando as bárbaras cruzadas, num assomo religioso digno do pecado original descrito na Bíblia e que todos carregamos até ao Juízo Final. Por causa desse pecado nada podemos, hoje, apontar aos outros visto sermos bem piores; é preciso continuar ad infinitum  com a prece: mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa.  E, para aqueles que não se identificam com este pecado há sempre o terror do nazismo a espreitar à esquina. Tudo isto porque nos atrevemos a dizer o que o Islão é. Pois se é verdade que nem todos os muçulmanos perseguem os infiéis também é verdade que não o devem ao Corão que incita, pela voz do seu profeta Maomé a que o façam. A título exemplificativo, este  trecho dá para ficar com uma pequena ideia do que é o Corão :“E quando vos enfrentardes com os incrédulos, (em batalha), golpeai-lhes os pescoços, até que os tenhais dominado, e tomai (os sobreviventes) como prisioneiros.” - Alcorão 47:4 – ou aqui “"Matai-os onde quer se os encontreis e expulsai-os de onde vos expulsaram, porque a perseguição é mais grave do que o homicídio... E combatei-os até terminar a perseguição e prevalecer a religião de Deus. Porém, se desistirem, não haverá mais hostilidades, senão contra os iníquos." - Alcorão 2:191,193 . Podemos pois dizer que os verdadeiros muçulmanos são os jihadistas e não o contrário.
Como diz o investigador Scott Atran o Corão, tal como a Bíblia, dá-se às mais variadas interpretações, como se de poesia se tratasse e por isso mesmo é que é possível atribuir-lhe virtudes de guerra e virtudes de paz.  Este mesmo investigador alerta para a importância de não minimizarmos o perigo crescente do radicalismo religioso e, a par do filósofo francês Yves Michaud,  diz que o fenómeno tem vindo a aumentar principalmente nas novas gerações. Não é batendo com a cabeça num muro de lamentações ocidental pedindo perdão pelos nossos pecados que vamos lá! É preciso saber que o perigo é real e que há uma crescente massa de muçulmanos que se reveem nas promessas de aventura, desafio, virtude e morte dos jihadistas, sim; muçulmanos de nascença e os  convertidos. Há mulheres ocidentais que trocam a vida de liberdade educação e secularismo por submissão, anulação da própria identidade e escravatura; há jovens que não se identificam com os valores de liberdade, direitos e garantias das sociedades em que cresceram e que estão dispostos a largar a suas famílias para se juntarem à ISIS.
Não vamos matar o mensageiro chamando-lhe islamofóbico só porque vai contra o politicamente correto e dá a conhecer um perigo real que está a ser subestimado. Temos de ter a consciência que nem sempre somos nós que escolhemos o inimigo; às vezes é ele que nos escolhe a nós… Para os que realçam os valores e virtudes do Islão calcando os valores de liberdade - de expressão e outros -  para os que  rejeitam que se possa sentir orgulho em pertencer a uma sociedade laica querendo que nos sintamos envergonhados pela nossa cultura só posso dizer uma coisa: mudem-se! De certeza que serão muito bem recebidos por aqueles que tão acerrimamente defendem, mas não se iludam, à primeira falha cortam-vos a cabeça numa sanha justiceira. É que muitos devem a moderação que têm às leis dos países onde vivem…
É sempre desejável abertura e respeito pelos valores das outras culturas, mas esse respeito, esse esforço nunca pode ser unilateral nem obrigatório sob pena do multiculturalismo não passar de mais um radicalismo.

Maria João Varela


sábado, 17 de janeiro de 2015

De quem têm medo os crentes: dos ateus ou jihadistas?

O que temem os crentes? Por que temem que os ateus escrevam, pintem, façam desenhos dos seus deuses e paizinho de santo ? Toda esta discussão em torno do Charlie Hebdo levou-me a questionar isto? O que temem?
É preciso respeitar crenças alheias, respeitar pretos, brancos, amarelos, vermelhos… todos menos os ateus. O ódio pelos ateus, o desejo que ardam no inferno – pobres criaturas descrentes – é maior do que o ódio pelos jihadistas que cometem atentados todos os dias, é maior o ódio pelo humor com que os ateus- e crentes moderados- se divertem do que pelas kalashnicovs, é maior o medo dos desenhos do que das ameaças dos fanáticos terroristas…  Paradigmático disto é o facto de ainda as vítimas do atentado ao jornal satírico não estarem debaixo da terra e já circular  por aí  a notícia do diretor do jornal Charlie Hebdo ter despedido um cartoonista por não gostar dos desenhos dele, como se liberdade de expressão tivesse de ser escrever sobre tudo, fazer caricaturas de tudo: liberdade de expressão é poder exprimir o que lhe vai na alma sem medo de represálias – sobretudo não temer pela vida…- o cartoonista despedido foi indemnizado que é assim que as coisas se resolvem em democracia.
O respeito por todas as crenças é uma treta; é mais como um acordo tácito: eu não me meto nas tuas crenças para que não te metas nas minhas, não questiono as tuas irracionalidades para que não questiones as minhas. O que acontece é que os ateus estão fora desse acordo tácito e gostam de questionar, abanar as estruturas da fé e quando essa estruturas são fracas os “falsos” crentes ofendem-se. Não me lembro de nada em que tenha fé e que seja facilmente abalada espezinhada, manchada como os crentes parecem acreditar que os ateus são capazes de fazer aos seus deuses e santos padroeiros. Não respeitam as crenças, não, têm medo; só isso…Têm medo de ver abalada a sua fé.
A liberdade de expressão passou a ser o tema mais discutido da semana e em vez de se condenarem os ataques e os seus perpetradores passaram-se a condenar as vítimas; as mesmas que com as suas lutas, o seu “meterem-se a jeito”, a sua “cabeça dura”, a  sua falta de comodismo, a sua não subjugação ao medo  propiciam que os outros continuem com as suas banalidades… Foi com heróis destes que nós evoluímos para uma sociedade onde tanto falta ainda fazer em matéria de liberdade – como tantos vieram apontar – mas, em vez de lutarem para que haja ainda maior liberdade o que fazem é tentar diminui-la. Vejam por essas redes sociais afora aquilo com que as pessoas ficam ofendidas – a mim chamaram-me xenófoba – e pensem se gostariam de ver as vossas liberdades de expressão limitadas por eles.
Temos de ter muito respeitinho… Eu não tenho respeitinho, nem respeito por quem não respeita os outros, por quem piamente se sente ofendida com uns cartoons que tem de pagar para ver. Eu não respeito a hipocrisia dos que dizem respeitar todas as crenças, cores, ideologias, mas os ateus ah, esses bem mereciam um castigo divino! Se acreditam mesmo que Deus  vai castigar os ateus deixem isso para Ele. Também não me peçam para ter respeito por uma fé que manda que se  cortem cabeças enquanto têm as suas crianças a ver o espetáculo, não respeito igualmente a fé de quem tem de assassinar os seus cidadãos na rua para fazer cumprir uma lei medieval ou vingar um profeta; assim como não tenho respeito nenhuma pela intolerância de falsos pios.
Os ateus só pedem que respeitem também os seus símbolos onde a liberdade de expressão é dos mais basilares e fundador da própria liberdade de culto, qualquer que ele seja. Se os crentes podem arrastar os joelhos em sangue até à capela de nossa senhora, se podem comer uma hóstia e acreditar estarem perdoados dos pecados, se podem acender as suas velas ou virarem-se para Meca, então, deixem os ateus ir uma vez por semana comprar o Charlie Hebdo ou outro e dar umas boas gargalhadas se lhes apetecer que não têm nada com isso, desde que não submetam os crentes a lê-lo…

De quem têm medo os crentes? Dos ateus ou jihadistas

Maria João Varela


terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Vinde!

De onde viria a luz?
Insana, procurava…
Um negro manto
sobre mim se abatia.
  

Estrela Polar
Alumia , alumia
Guia-me os passos
 -exaustos, rastejantes -
Oriente, Nascente…
Estrela cadente, ébano ardente
desejos por concretizar.

Onde surgia o brilho intenso
 - de meus arrastados passos, ausente?  -
Réstia de vida, rasgo de fé que quebrava
Milénios esperando…
 febril, procurava.

Só um grito
bem do fundo,
 uma alma aniquilada,
 mas sentia
 –ainda -
uma pequena luz que vibrava.

O céu tão negro
de falsas luzes engalanado,
falsas promessas, falsas virtudes
Rostos de pranto
Ofuscados.

Que minha luz de verdade brilhe
Me cale o grito,
aligeire os passos.
Vinde, esperei tanto!


Votos de Feliz Natal


Maria João Varela 


domingo, 9 de novembro de 2014

Agora é a tua vez de fazeres melhor do que eu fiz

“ Estamos a fazer-lhe o mesmo ou pior do que ela nos fez a nós! “ A minha irmã que nem é de choradeiras, chorava baba e ranho. “ Eu estive lá e vi!” – continuou. “Eu estive lá e vi como as vizinhas falam dela, a nossa mãe é vista como a maluquinha lá do sítio”. Chorei eu também. Chorei porque ainda havia tanta revolta em mim, tantas mágoas de um passado difícil de esquecer, de perdoar. “ Que queres que a gente faça?” – Perguntei-lhe ainda com a revolta nos lábios; “ela é que quis assim” - continuei  eu na minha teimosia. A minha irmã que nunca se deu por vencida apenas me disse: “ Quero que faças diferente do que ela te fez a ti. Quero ser melhor do que ela, e quero que tu também sejas!”  As palavras dela ainda ressoam nos meus ouvidos : “ que faças melhor do que te fizeram a ti ”. E é isso que se pede aos filhos, não foi  assim que a humanidade evoluiu? Foi a fazer melhor. Acusar, toda a gente acusa: “ tu fizeste isto, tu aquilo” ou “ O meu pai fez-me isto, a minha mãe aquilo” como que a justificar a cobardia de os deixarem entregues à sua sorte. Já lá vão mais de dez anos. “ “A sua mãe tem demência precoce, se a deixar internada na instituição é como se não tivesse família”;  mais de dez anos se passaram desde a  indecisão,” vou fazer melhor?” Era grande a tentação de virar as costas, tínhamos razões de sobra para o fazer, mesmo o mano não se cansava de dizer: “ para mim ela não existe, não a considero minha mãe”. E hoje, ah! Como hoje mudou o discurso, como hoje depois da vida pregar as partidas que tanto gosta de pregar já diz lá do estrangeiro para onde emigrou: “ manda um beijo à cotinha, diz-lhe que a amo do fundo do coração”. E se ela fica feliz! É que apesar de todos os esquecimentos, das memórias que se apagaram ela não se esqueceu do seu menino. Ela errou. Eu erro. Todos erramos, mas não podemos virar as costas uns aos outros. Abandonamos o barco com tanta facilidade quando as coisas não correm como nos dá jeito.  E não perdoamos. Perdoar os outros é também perdoarmo-nos a nós com mais facilidade. É isso que tenho aprendido ao cuidar dela. E se é difícil! É a comida passada, na temperatura certa, é estar sempre disponível, ter alguém sempre dependente de nós para tudo, não poder viajar, não ter um dia para não fazer nada… São os maus odores, as maleitas, as feridas; eu sei lá! Mas tomei uma decisão: tentar fazer melhor. É isso que me apetece dizer aos filhos que abandonam os pais porque estes lhes fizeram isto ou aquilo; agora é a vossa vez, façam melhor. Acaso no lugar deles, com os recursos deles, fariam vocês melhor? Estamos todos no mesmo barco, no entanto, à primeira tempestade, em vez de ajustarmos as velas, saltamos para outro e abandonamos aquele à deriva, só que com esta estratégia nunca aprendemos a navegar em mar alto e perdemos a capitania do nosso próprio destino.

Maria João Varela




terça-feira, 28 de outubro de 2014

Medos

Costumo dar a mão a mim própria e acalmar o medo à menina de dois ou três anos que fui. O medo, sempre presente o medo, mas um medo vago, sem objeto preciso; um medo que pairava como uma ameaça latente e me fez a infância pejada de seres invisíveis e ameaçadores. Nem sequer era um monstro com uma figura qualquer que se desenhasse na imaginação, que pelo menos esse sempre havia a possibilidade da mãe levantar os cobertores e me fazer espreitar para debaixo da cama e dizer: “Vês? Não há monstro nenhum.” Como não era um objeto, implantava-se como um sintoma: uma febre sem doença; e que febre! Sempre a rondar os quarenta, como a madrinha me contava, furibunda por mais uma vez na sua presença para umas férias de natal, me encher de “frescuras” e quase cair para o lado de tão quente. Então no natal era fatal. Não havia festa, não havia teatro, nem bolos ou prendas que me fizessem escapar  da tormenta; nem mesmo quando me enfeitei com umas meias de mousse brancas e cabeça de girassol consegui manter estável a temperatura, sou de paixões talvez por isso… Mas a criança que fui, com medos inquietos,  apazigua quando lhe dou a mão e nem me assusta mais a voz raivosa da madrinha constatando pela enésima vez que vai ter de me levar a casa não ficando para a consoada: “Ai queres ir para casa? Então deixas ficar tudo aquilo que te comprei”. “ Deixa lá a catraia  levar as coisas, para que as queres? Mas nem a voz conciliadora do padrinho João a fazia mudar de ideias e lá ia eu para casa de mãos a abanar, mas contente por estar outra vez com a minha mãe, sacrificando mais um natal sem presentes.  Do medo não escapava. Esse medo insubstancial que é sempre maior por isso mesmo. Ao dar a mão e dizer : “ tudo irá bem, és uma boa menina”,  acalma a voz que , volta não volta, assoma à mesma janela com que me assombrava os sonhos infantis. É isso! É como uma voz inquieta que me grita que não terei nenhum brinquedo nesse, como nos outros natais.

Maria João Varela


sábado, 16 de agosto de 2014

O poder está dentro de si

Ao ler «The Emperor’s New drugs exploding the antidepressant myth»  de Irving kirsch apeteceu-me voltar a folhear um outro livro, há muito guardado, de uma autora que me tinha indignado pela ingenuidade e até um certo toque de, não direi charlatanice, mas talvez de uma certa leveza, por encarar assuntos de tão grande importância com uma linguagem simples demais, com afirmações sem nenhuma validade – pensava eu – como se apenas da verdade se tratasse. O livro de Louise L. Hay, há tanto tempo na prateleira, tendo a atestá-lo o preço ainda em escudos – 1495$00 – diz coisas como: “O poder está dentro de si” ;  “Quando perdoamos e nos libertamos, não é só um peso enorme que sai das nossas costas, é também uma porta que se abre para nos amarmos a nós próprios”; “Os pensamentos que escolhemos para pensar são as ferramentas que utilizamos para pintar a tela das nossas vidas” , Etc. numa infinidade de “máximas” como estas… Lembrei-me dela principalmente porque o título do livro que agora tenho em cima da secretária se chama precisamente «O poder está dentro de si» e foi preciso muito tempo e ler agora o Kirsch para me aperceber do valor da sua obra aparentemente, pelo menos naquele tempo para mim, sem valor algum. Descubro nas suas palavras muita sabedoria, muitas das coisas que aprendi em filosofia, no budismo, na psicologia… A verdade é que a sabedoria dos gregos, das filosofias orientais como o budismo, de muitos autores de obras literárias, embora nos tenhamos afastado dela para seguir o paradigma da ciência, vão sendo cada vez mais validadas pela própria ciência. Assim aconteceu com a famosa expressão “o poder está dentro de si” que as investigações do Kirsch e outros sobre o efeito placebo têm vindo a demonstrar. Segundo este autor, que fez um dos maiores estudos conhecidos e citado em imensos livros e artigos científicos, a variável fundamental para a cura é acreditar. E acreditar pode ser simplesmente num medicamento que se está a tomar, ou pensa que está – Kirsch afirma até que muito do poder de cura da medicina em várias áreas tem a ver com este fenómeno.
 Ele fez uma Meta Análise dos dados de doentes que estão a seguir  tratamento para a depressão com antidepressivos com os que tomam placebo –  o placebo não tem qualquer princípio ativo – e descobriu que as melhoras que os pacientes apresentam podem ser explicadas em  cerca de 80% dos casos por esse efeito, que mais não é do que o poder da “fé”.  Nem ele queria acreditar! Por isso fez variadíssimas investigações para se assegurar que estava certo antes de publicar o que tinha encontrado. Como é óbvio levantou enorme celeuma no meio científico e mudou completamente a perspetiva que ele próprio tinha sobre os medicamentos.
Isto é, ao mesmo tempo, maravilhoso e preocupante. Maravilhoso porque ficamos a saber – como já muitos sábios sabiam, passe a redundância – que efetivamente o poder para nos curarmos está dentro de nós e que um bom terapeuta o que faz é ajudar a encontrar esse caminho. É, por outro lado, preocupante porque andam milhões de seres humanos neste mundo a tomar antidepressivos que quase nenhum efeito terapêutico tem, mas que, em contrapartida, tem efeitos adversos gravíssimos como por exemplo poder  levar a cometer suicídio.

Claro que a Louise Hay tem muitas outras afirmações que não me conseguem convencer, mas quem sabe estará certa? Em várias outras que faz, descobri que a psicologia tem dado validade científica como, por exemplo, a importância da aceitação – existe até a Terapia da Aceitação e Compromisso – para muitos perturbações psicológicas.

Maria João Varela


domingo, 10 de agosto de 2014

Lua

Assim sou eu, como a lua,
ora cheia, ora vazia;
Sou de luas.

Majestosamente a ti me apresento
mas não me contento com um furtivo olhar,
quero sempre mais.

Julgas que me conheces?
Triste engano o teu,
Pois não vês? 
Que mostrando tapo,
encobrindo, destapo
e neste esconde esconde,
do rato e do gato,

quando me alcanças, 
fugi outra vez…

Maria João Varela