“O meu beijo?” Esticavas os lábios num pedido
eloquente tão carente de afeto, tão despojado do falso orgulho que outrora te tornara
numa das personagens mais imponentes que tinha conhecido; ademais eras uma
figura atemorizadora. Gostavas de arrebatar corações com as tuas paixões que
não admitiam oposição e parecias invencível, qual fortaleza que tenha sobrevivido
às intempéries dos séculos e sanha destruidora da época moderna. Eras tão
sóbrio de espírito com uma clareza de ideias a toda a prova que desmontava argumentos
opositores como uma criança desmonta, ao fim do dia, os seus brinquedos de
lego. “ O meu beijo?” – repetias agora até que eu te fizesse a vontade e me
levantasse pela enésima vez para te acariciar e beijar as faces cujo relampejo
durava apenas um segundo para voltar ao embotamento que agora se te ia colando às pregas fundas de uma pele
tanto menos atrativa quanto mais necessitada de beijos. Mantinhas teimosamente
a lucidez para nos privares do consolo de te saber inconsciente da tua condição
de velho, retiravas-nos essa tranquilidade de consciência para que nos acercássemos
de ti para nos poderes pedir o beijo.
Passavas agora os dias a olhar por uma janela
aberta para o infinito, num vazio existencial sem finalidade nem propósito que
não ver passar as visitas que se aventuravam a testemunhar-te a queda. Muitos não
vinham só para não terem de te encarar nas tuas fraquezas como se ao
testemunharem-no fossem também eles cúmplices de tamanha injustiça. Não nos
ensinam a perder; viver é ganhar, é subir, é crescer, mas é também cair e isso
ninguém ensina, ou somos nós que não aprendemos…
Nunca nos
preparamos para este devir, nunca fazemos planos para este tempo em que o tempo
deixa de ser parcelado e passa a um continuum
onde a única coisa que destoa, para
além do dia e da noite, que quebra a monotonia da paisagem de dias monótonos, iguais
entre si, será a presença de afeto. Quem
se prepararia para o inferno? Preparar-se seria já viver o tédio da espera, de alguém que se lembre da
morada de um velho sombrio, quando as luzes de mil atratividades chamam a
esquecer esse dia, o nosso dia de pedir o beijo que não vem…
Maria João Varela
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