terça-feira, 26 de maio de 2015

Meus Deus por que a abandonaste?

Sempre fora crente e temente a Deus. Agora, velha doente e cansada até Ele a abandonava. “Que ando cá a fazer, filha?” “Ora, até quando Deus quiser” “Deus? Quem é esse? “ Olhei para ela e parecia crer no que dissera, parecia não se lembrar que lhe dedicara as manhãs de domingo durante anos e anos, quando no auge da idade e podendo dedicar as forças por outras andanças, decidia  dedicar à sua obra, quer as cordas vocais para a missa domingueira, quer a força braçal com que batia os bolos para a quermesse… Por que a abandonava Ele agora? “Quem é esse”. Já não lhe rezava o Pai Nosso nas horas de aflição, parecia ter esquecido todo o manancial de orações- cada qual para a sua aflição- também já não lhe pedia perdão pelos pecados; acaso terá pecados alguém entregue à sua demência? Será talvez por isso, pela falta de pecados que Ele se julga no direito de a privar Dele? “É preciso ter fé no Senhor ”-dizia-me sempre que questionava a sua completa e absurda entrega mesmo nas horas mais difíceis, em que a sua vil e eterna ausência se fazia sentir com mais força. Continuava ano após ano, mês após mês, semana atrás de semana a dedicar-lhe os domingos e outros dias da semana assim fosse necessário. E não era daquelas beatas que vão rezar sem fé; não! Juntava as mãos com fervor e rezava com alma. Notava-se tão bem que era com alma que rezava pois quando vinha da missa vinha de uma exuberância não fingida… E seguia os preceitos. “ Que ando cá a fazer, filha?” . Agora já não olhei para ela, caía-me uma lágrima teimosa pela face… já não lhe respondi: “ Até quando Deus quiser, minha mãe” sabia que Ele não tinha nada a ver com o caso dela e que a sua ausência era o que sempre fora e que só sobrava eu para fazer a minha velhota viver- “ Anda cá porque eu a amo”. Consegui, apesar de tudo balbuciar “ … porque eu a amo”. Desta vez esboçou um esgar em tom de sorriso e lá continuou no seu mundo povoado dos meus fantasmas e da ausência dos seus. Ele, o Deus da sua salvação, também a abandonava assim que as suas memórias se iam esgueirando pelas frestas que a doença abria nela. Não havia nada a reclamar,Ele, era apenas coerente na saúde e na doença na tristeza e na alegria, não passando de uma memória inventada por todos os que Nele esperam a salvação. A minha mãe, afinal, só me tivera sempre só a mim…

Maria João Varela


domingo, 17 de maio de 2015

Somos bicampeões carago!


 Nem o bruxo de Fafe nos impediu, ganhámos, porra! Quem se importa com o défice ou com a falta de futuro? Isso é p’ra amanhã porque o “bem podias fazer hoje” só fica bem na letra do Variações. Assim vamos indo, pobretes, mas alegretes como sempre fomos e seremos. É que já não há remédio!
Somos o país das paixões e da fé, das festas e jantaradas- nem que depois não haja para o resto do mês- mas enquanto há festa há romaria, cantes e cançonetas e ajuntamentos que se farta; que importa o amanhã se hoje há bebedeira na certa? Lá vamos rezando a Nossa Senhora de Fátima o terço, lá vamos arrastando os joelhos mortificados pela fé e lá vamos festejando o futebol- já me parece só faltar aqui o fado…
Que importa sermos sempre os últimos naquilo que importa? Da justiça à educação, da saúde- não somos os mais obesos, os reis das patologias mentais, os que mais morrem do coração? -  PIB- “Qué, qué isso?”- que importa agora a dívida? Essa fica para os netos e bisnetos. Que importa não haver futuro? O aqui e agora é este. E o futebol manda mais que a barriga cheia… Que importam velhos abandonados e doentes? Que importam crianças sem teto ou comida? Que importa continuarmos a ser agora aquilo que sempre fomos: dos mais pobres da Europa?
Mas, que tem? É preciso esquecer as desgraças, ter fé que tudo se compõe  virá, talvez, um D. Sebastião que nos salve. Ámen! Ámen!
Que importam filas nos hospitais? Os salafrários no poleiro? Que importa isso agora? Somos bi, somos bicampeões, carago!
Amanhã acordamos todos outra vez… lá está o país, a falta de emprego : do jovem, adulto e idoso, a falta de carcanhol- quem olhasse para o estádio não o diria- a  falta de combustível que hoje é gasto para dar a volta às rotundas, lá estão os velhos- um pouco mais velhos ainda, mais tristes também- lá estão os antidepressivos para nos esquecermos que somos tristes, pobres e que pouco ou nada fazemos para alterar coisa alguma. Somos assim. Sempre assim fomos e seremos:  é nossa sina e destino, a música pimba ao domingo, a festa, a farra, a chouriça e o tintol,  os impropérios contra quem governa e por fim , o conformismo com isto tudo porque está-nos no sangue. Já nascemos assim.
Que tenho contra a festa, o futebol, a alegria? Nada minha gente! Só gostava que estivessem onde deveriam estar. Que envolvessem menos gente e energia, menos paixão e euforia do que as lutas que verdadeiramente importam e que nos fariam sair deste triste fado. Só isso.

Agora viva! Somos bicampeões, carago!

Maria João Varela


terça-feira, 12 de maio de 2015

Alienados

Passeavam corpos, corpos esses sem ninguém lá dentro.  Os legítimos donos ,ausentes, sabe-se lá onde ou para quê tinham deixado à deriva, entregues a automatismos diários, sem supervisão ou vida, apenas isso: corpos. Olhos pousados no asfalto- ou na tecnologia?- prosseguiam, contudo, a rotina sem prendarem o mundo com a sua presença. Seriam cadáveres? Cadáveres não eram pois mexiam- os cadáveres não mexem…
Eram pretos e brancos, vermelhos e amarelos- sem serem muito garridos, claro!- mas todos sem exceção vinham vazios de gente. Onde andariam aquelas almas perdidas?  Viajavam. No passado ou futuro. Mas sempre ausentes da vida. Quem lha poderia restituir antes que fosse tarde?
Andar, andavam. Paravam nos semáforos- mas não paravam para se ajudar uns aos outros- apressados, sempre apressados e ocupados. Ocupados com tão pouco daquilo que vale a pena, mas acreditavam que sim, que valia o sacrifício com que entregavam a vida aos apelos de um mundo sempre exigente e chamativo. Viajavam pelo tempo- passado e futuro- , mas ausentes do presente e ausentes de si. Eram impelidos por uma força maior que puxava, puxava para que andassem sem parar, mas eram apenas e só autómatos e escravos, escravos do tempo.

Já nem corpos eram. Também já não viajavam no tempo. Mas continuava a não haver ninguém dentro dos corpos inexistentes. Não existia nada. Mas andavam, paravam nos semáforos- e já nem se viam uns aos outros- perdidos num mundo inexistente. Nasciam e morriam, sem viver…

Maria João Varela