sexta-feira, 25 de abril de 2014

Caixinha de música e cravos à mistura

Ao ouvir um pouco, que para muito não há paciência, o discurso na Assembleia da República para a comemoração dos 40 anos do 25 de abril, aos poucos, a minha mente entediada levou-me à minha infância e a um brinquedo que nem bem brinquedo era, mas que eu adorava; só tinha um senão: era necessário pôr uma moedinha para fazer os bonecos dançar ao compasso de uma música pré- determinada, mas que nós, do lado de fora de uma caixa de vidro que permitia ver o conteúdo no interior, não adivinhávamos qual era até que começasse a tocar e os bonecos a mexer.
Parti do pressuposto que se a minha mente fizera a associação alguma lógica devia haver nisso, que isto de associações de pensamentos não é assim tão aleatório como se possa pensar… Claro que rapidamente me apercebi da semelhança ao reparar no aprumo dos bonecos com o cravo na lapela e discurso elaborado e repetido a cada 25 de abril o que faz dele um discurso oco, e da ocasião, um belo negócio para os cravos. É que os bonecos das ditas caixas de música da minha infância também, tal como estes, só tocavam quando lhe introduzíamos a dita cuja na ranhura; a diferença está no preço e é claro que estes bonequinhos de cravo e charme popular, penteadinhos e direitinhos, de vozes e tonalidades ensaiadas são também produto de alguma cabeça que lhes dita os passos de dança. Só que, e aqui começam as diferenças, já não divertem ninguém nem são, como os da caixinha, imprevisíveis na dança; sabemos de antemão a música que nos querem dar e isso não há criança que suporte nem povo que aguente… E dei por mim a ver neste facto o maior defeito destes discursos de pacotilha, sem outro significado que não seja a tentativa de dar  relevância a discursos anacrónicos saídos de bocas mecânicas, que dizem aquilo que são pagas para dizer. Ao pé dos meus bonecos de infância, que também dançavam ao som da moedinha, estes têm muito menos encanto pois embora ambos dancem tendo outras mãos a ditar-lhes os passos, estes, de cravo na lapela já todos conhecem de antemão a coreografia.
Tenho saudades do meu encantamento , sinto falta das alegrias de infância e dos bonequinhos dançantes que observava estonteada do lado de fora da caixa, observando e tentando imaginar que forças obscuras lhes faziam mexer as pequeninas pernas de madeira e, quando deixavam de dançar, olhava desapontada para a minha mãe na tentativa de lhe causar pena e de a obrigar a pôr mais uma moeda na ranhura; hoje, inversamente, apetecia-me que a moeda se gastasse e só pedia que ao parar a música os deixasse ficar imobilizados em posturas desconfortáveis de preferência que lhes causasse alguma entorse e tudo porque já conheço de antemão a música que vão dançar a seguir…


Maria João Varela



quinta-feira, 24 de abril de 2014

José Povão

O mal está em ser zé povinho e por isso é que não crescemos. Enaltecemos o incrível dom artístico do Bordalo Pinheiro – que é indiscutível – mas sem nos apercebermos de que o mesmo é que nos corta as pernas; o que é o mesmo que dizer que nunca nos deixará crescer. É que isto dos diminutivos é para crianças, aos adultos deixamos de chamar Zéquinha, Joãozinho, Mariazinha, Madalenazinha e assim por diante. É necessário crescer para que nos levem a sério, por isso mesmo, sugiro que nos deixemos dos epítetos do Bordalo e passemos a auto intitular-nos Zé Povão. E, já agora, até o Zé deveria ser mudado e passar a José Povão que parecendo que não manda mais respeitinho… O gesto um tanto ou quanto obsceno também é hoje despropositado próprio de um povo mal criado e iletrado;  o malfadado “toma” está ultrapassado; evoluímos, por amor de deus! Não, hoje, o José Povão iria de cravo na mão, para que quem governa saiba com quantos cravos se faz uma Revolução…

Maria João Varela


segunda-feira, 21 de abril de 2014

Futebol dos pequeninos

Chora, ri de alegria que amanhã não há pão
Neste Portugal pequenino
Onde crianças não nascem
Onde os velhos sofrerão.

Embebeda-te, aliena-te
Ri hoje, chora amanhã
Não tens futuro,
esventram-te de sonhos
mas hoje, hoje há futebol
mais um golo, mais uma emoção
não rias mais, amanhã não há pão.

Queres esquecer, queres-te divertir
Passa a bola, mais um golo…
Que ganhaste, que perdeste?
Que mudaste, quem salvaste?
Não ressaques mais;
Portugal precisa de ti sóbrio
Mais acordado do que nunca,
Ativo, combativo e não amedrontado.

Os golos não salvam vidas,
Os golos não dão nem saúde nem educação,
Os golos enchem bolsos gulosos
Tu ris-te, mas eles também…

Tens a bola, passa a bola
A tua, uma alegria vã
Hoje está tudo na mesma, 
resvala tudo para o abismo;
estamos com o futuro suspenso,
mas a tua equipa é campeã.

Maria João Varela







quinta-feira, 17 de abril de 2014

Estamos a morrer

Alguém duvida que os tempos modernos trouxeram formas mais  mascaradas, mais sofisticadas e por isso mesmo mais perigosas de violação dos direitos humanos? A forma mais eficaz de violência é a que jaz escondida dos olhares horrorizados, é aquela que induz o medo, um medo aterrador de dia e de noite, um medo que se vira contra o próprio e faz duvidar de si sem pôr em causa o carrasco, atribuindo as culpas ou à sua própria falta de meios, ou de capacidades ou de ambos.
Que ninguém duvide que estamos a sofrer um massacre. Que massacre mais eficaz do que aquele que mata sem armas, sem sangue, sem ruído? Sim, aquele que mata a possibilidade de um povo se reproduzir? Que mata andes de se nascer? Que obriga uma mulher a escolher se quer ter um filho ou um emprego… Que massacre mais brutal do que ter de escolher dar assistência a um filho quando doente e faltar ao emprego, ficando sujeita a posicionar-se na primeira linha de alvos a despedir ou abandonar os filhos num momento de fragilidade?
Estamos a ser massacrados e ninguém se revolta porque não há vitimas espalhadas no chão, a matança faz-se nos gabinetes ministeriais, em vez de facas usa canetas e tinta, em vez de guerreiros usa cobardes. Mas faz-se e é eficaz. Quantos jovens deixaram de acreditar em si próprios? Na sua capacidade de mudar um país, de ser uma voz, de ter futuro? Que massacre de possibilidades, de crescimento, de sobrevivência se consegue no clima de medo instalado quando um jovem tem de calar ser esmifrado num qualquer estágio que, supostamente, seria pago, mas que, embora assine a folha de pagamento, não vê um cêntimo tendo de deslocar-se a expensas do próprio – com que sacrifício mais dos pais?
E os portugueses não se revoltam porque muitos acreditam, nem que apenas secretamente, que de alguma forma merecem o que lhes está a acontecer, que em vez de vitimas são carrascos, que em vez de uma armadilha, de um tapete tirado sem dó deixando um vazio no lugar de um futuro, alguém lhe estendeu outrora um tapete vermelho e que agora lhe têm de mudar a cor. Mas não é nada disso. Estamos mesmo a ser massacrados, entregues empacotados, com um belo laço em cima, nas mãos de um mercado impiedoso. Ah, agora temos mais investimento… E por que razão? Por que nos tornámos atrativos rapidamente pelo nosso desenvolvimento? Nada disso. Simplesmente estamos a ganhar quase só para o pão e muitos trabalham tendo de pedir o sustento em instituições de caridade. Claro que somos atrativos como escravos.

As nossas cabeças estão a ser esmagadas e as das nossas crianças que vão para a escola sem comer também; reduzem-lhes as possibilidades de se desenvolverem cognitivamente: estamos a gerar “burros” seremos uma nação de burros para substituir os que estavam em via de extinção. E os media ajudam. Ajudam com os seus programas aberrantes que matam os neurónios horrorizados com tanta merda. E os concertos ajudam a esquecer a vida da treta que se vive, e o futebol, os vídeos partilhados, os risos… Não podemos esquecer. Não nos podemos rir. Deveríamos estar a chorar porque estamos a morrer…

Maria João Varela


quarta-feira, 16 de abril de 2014

Lambe botas ou chinelos

Ar pimpão, pequena corcunda devida ao esforço de anos e anos de vénias chega apressado quase fazendo saltar as banhas de umas calças de terylene;  é sempre, há mais de 40 anos,  o primeiro a fazer rodar a chave na fechadura para quando o doutor chegar já o encontrar no seu cubículo a que orgulhosamente chama escritório. Não se lhe conhece outros interesses se não viver de língua esticada, húmida e sempre a postos para lamber as botas ao patrão; e mesmo quando este traz sapatos lambe-os de igual modo que lambedor que se preze não discrimina calçado.
 Comprou mesmo umas joelheiras porque com o passar da idade, ajoelhar e lamber botas tornou-se doloroso para as desgraçadas rótulas que de tanto roçarem o asfalto já levam umas contusões que não são de desprezar e, então, quando vê o “dono” ao longe, tira-as disfarçadamente do bolso e protege-se com elas. Já a língua não tem tanta sorte e, de tanto lamber, porquanto não haja para ela resguardo, começam-lhe a aparecer umas fístulas. Tem futuro. Este espécime muito apreciado lambe à esquerda e à direita, segundas, terças e sextas, não se cansa de lamber e mesmo ao fim de semana, extremoso e cumpridor sem dar sossego à língua, ignorando os lamentos e uivos de dor dá, se a isso for chamado, lambidelas demoradas nas botas de algum superior.
Passou-lhe pela ideia ganhar uns trocos a mais e abriu um curso para ensinar os truques e manhas que os anos de serviço que leva de lambedor bem lhe atestam a valência. Começaram aos jorros as candidaturas e após poucas semanas pululavam já os acessórios, organizados num kit, com que se faz acompanhar um verdadeiro lambe botas   : as famosas joelheiras – de várias cores que também há muitas mulheres a fazer o curso – uma escovinha de tirar a caspa do casaco dos superiores, um dicionário de bolso com milhares de bajulações para cada estação, um repressor de opinião própria, um artefacto interessante que solta um bip de cada vez que o lambedor se lembra de opinar; lambedor profissional não tem opinião, papagueia a do patrão…

O sucesso foi tal que mais do que o francês, o inglês, o alemão ou o mandarim tornou-se desígnio nacional ser um bom lambedor. Os lambedores são já tantos que em pouco tempo houve a necessidade de hierarquizar o curso havendo lambedores de chinelos, pantufas, sapatos de camurça ou pele verdadeira e finalizando então nas botas, com vários níveis  também de modo que quem chegue  ao topo – embora com a língua toda lixada, as rótulas esgaçadas e a corcunda proeminente – é certo e direitinho ter o seu futuro assegurado.

Maria João Varela



segunda-feira, 14 de abril de 2014

Despedimento por extinção de posto de trabalho

Passos Coelho, vimos por este meio despedi-lo por extinção de posto de trabalho, devo dizer-lhe que ponderámos muito bem antes de o escolher a si, mas como verá pela argumentação que segue verificará que é você o elemento menos útil para levar a cabo as medidas essenciais necessárias para pôr cobro ao descalabro do país. Abdicámos propositadamente do ex.º porque como já o consideramos despedido não passa de um cidadão comum e como tal terá, quando muito, direito a um senhor antes do nome, e olhe lá; é que senhor é outra coisa…
A extinção do posto de trabalho que ocupa deve-se a razões de vária ordem que passamos a citar:
 1ª  A onerosidade do cargo que ocupa é desproporcionalmente elevada para os resultados desastrosos – comprovados pela avaliação feita por entidades exteriores – que tem atingido, nomeadamente, por ter num tempo recorde de perto de três anos destruído o que a outros governos levaria, se não dois mandatos, pelo menos um completo, nós,  Zé Povão -  sim fartámo-nos de ser Zé povinho – conseguimos para ocupar o seu cargo alguém  muito mais capacitado e a metade do preço. É que decidimos mesmo extinguir, além do cargo a própria profissão. Deixará, a partir de hoje, de existir políticos pois chegámos à conclusão depois de anos e anos a ouvir as mesmas mentiras que o que era uma mais valia – a arte de mentir bem – já não o é , e hoje, as suas mentiras e as dos seus colegas de profissão, são iguais às de tantos outros comuns mentirosos que são apanhados mais depressa do que um coxo e como o que não falta em Portugal são mentirosos e coxos, pelo sim pelo não, vamos agora dar lugar aos coxos para ver se sempre é verdade o que diz o ditado.
2ª Escolhemos também exonera-lo pelas habilitações académicas não serem as mais fiáveis, então o senhor tirou uma licenciatura aos 37 anos e não se lhe conhece nenhuma outra ocupação sem ser partidária?? Ai, ai, ai cheira-nos a esturro daquele bem esturradinho e depois, tá a ver? Na Lusíada? Faz lembrar Lusofona, Opá! Cheira- nos a baldas e como estamos fartinhos deles – e você próprio criticou  as novas oportunidades pelo pouco rigor, decidimos acabar com as novas e com as velhas oportunidades também. Sendo dos menos qualificados terá de esperar a sua vez, É que temos milhares de portugueses mais qualificados à espera, tanto dentro como fora do país, pelo que pode facilmente aferir da legitimidade da escolha que tivemos de fazer; pese embora a dificuldade que tivemos por, apesar de tudo, ser chefe de família com encargos, mas deixe lá pode sempre contar com a Deco se se vir na impossibilidade de cumprir com as suas obrigações, esperamos não retirar o sorriso eterno da “boquinha” da sua santa esposa.
3ª  Sendo um critério a pesar, no caso de despedimento por extinção de posto de trabalho,  a experiência na função, temos a assinalar estarmos muito arrependidos de ter dado a oportunidade a alguém com tão pouca experiência, uma pessoa – ou um povo – quer ser bonzinho por compaixão e amor ao próximo e mal acorda dá-se com a notícia que o senhor vende Portugal às tiras – agora  uma tira lá para Melgaço e amanhã? Aos espanhóis senhor ex- primeiro ministro? Esqueceu-se das inimizades figadais que nos unem?
Penso serem motivos mais do que suficientes para se pôr na alheta, que é como quem diz, pisgar-se, escapulir-se e mesmo que ache que não, vai na mesma porque foi você mesmo que aprovou a lei da flexibilidade laboral, foi ou não foi?
Assinado: Zé Povão



sábado, 12 de abril de 2014

Voracidade

Dorme! Dorme nesse sono acordado; deixa-te embalar pelas melodias melífluas de palavras encantatórias que saem das bocas vorazes que te engolirão ao teu primeiro suspiro. Dorme, enquanto o inimigo te faz uma cama de seda perfumada, embrenha-te nessa sedução ciente que acordarás do sonho e que te darás conta que mais não és do que o alimento dessa máquina insaciável. Se olhares para trás verás a quantos lhes foi extraída a alma, a quantos lhes foi sugada meia vida – ficando só a outra meia para manter acesa a chama da fornalha que alimenta o motor do crescimento. Carne humana, seiva de vida, extrato de essência expugnado. És tu simplesmente isso? Não és então dono e senhor da tua vida, acobardas-te?
Acorda! Ainda dorme em ti a força e coragem de seres tu mesmo! Não te deixes embalar nas palavras proferidas por aqueles para quem nada mais és do que produto para combustão… Olha-lhes para as bocarras; vês como de cada bafo seu saem odores de outras mortes, daqueles que ainda arrastam os pés para lhes dar o alimento que nunca os saciarão?
Foge dessa máquina desumanizadora; foge dessa engrenagem ferrugenta que só destrói, que só mata, aos poucos como convém: esmagando os ossos, quebrando a força, arrancando aos solavancos as lágrimas de ácido que corrói a estrutura que há de desabar, não se sabe bem quando nem como.
Olha bem em volta e diz-me, que vês? Acaso te passam despercebidos os gritos por socorro? Acaso gritas também surdamente para tu próprio não te ouvires? Vês futuro algum ou só umas quantas bocas ávidas por cujos lábios escorrem fios de sangue de vítimas inocentes? Olha bem para ti. Assim te defines ou deixas definir, somente como mais uma peça na engrenagem como te murmuraram esses lábios por onde saem palavras enganosas, palavras febris que aguardam que te aproximes e deixes engolir?
Se não há outro futuro aqui que não este, está na hora de construir outro, de fazer parar a engrenagem… por que esperas? Acaso aguardas ainda que das bocarras saiam restos de alimento para te confortar os dias; acaso vives bem ao saber que te alimentas dos teus companheiros de jornada?   


Maria João Varela


sexta-feira, 11 de abril de 2014

Histórias da fome

Olhou para ambos, dormiam agora aconchegados pela sopa quente que tinha conseguido pôr-lhes na mesa. Bernardo de 5 anos ainda perguntara : “ E tu por que não comes mãe?” “ A mãe comeu antes de chegar a casa, não tem fome…” mas o estômago doía-lhe, quase tanto quanto a alma, impedia-se, no entanto, de dar parte de fraca com medo que os filhos pressentissem como se sentia. João, dormia também com os caracóis louros espalhados no travesseiro, a pele rosada dos seus 12 anos enregelava,  Joana aproximou-se e cobriu o pequeno braço que se encontrava destapado e que arrefecia devido à noite gélida e à falta de aquecimento. Tinha fome, durante todo o dia só tinha comido um caldo verde que a colega de escritório lhe tinha pago quase sem ela dar por isso para que não se sentisse mal com o gesto “Depois pagas tu” – dissera-lhe a sorrir, mas Joana tinha percebido a compaixão no seu olhar.
Quando a respiração dos seus dois anjinhos se notava já mais profunda colocou as mãos  entre o rosto e chorou, chorou… chorou como ainda não tinha tido coragem de chorar, como se o choro, visto assim sob a luz baça do candeeiro  tornasse real o sofrimento, como se testemunhasse a crueza da sua situação e se consubstanciasse por fim. Hoje, no trabalho, algumas vezes se sentiu quase a desmaiar, o patrão tinha notado e tinha dito que se assim continuasse tinha de a despedir: eram as faltas de atenção, era a produção baixa, era a antipatia; ou mudava rapidamente ou iria para o olho da rua, dissera-lhe.
 Levantou-se. Decidiu-se, por fim… Abriu o computador e começou a escrever um parágrafo: «Boa noite. Encontro-me numa situação muito difícil. Sou empregada de escritório, divorciada, tenho dois filhos menores. Para fazer face a todas as despesas (de água, luz, habitação) resta-me muito pouco para a alimentação. Gostaria de saber quais as condições necessárias para receber ajuda alimentar. Estamos a passar fome e precisamos da vossa colaboração.» 
Enquanto escrevia as lágrimas caiam molhando o teclado. Lembrava-se que há um ano atrás seria impossível prever tal desfecho. O marido tinha ficado desempregado e, sob o peso da responsabilidade tinha preferido livrar-se deles e pedido o divórcio deixando-os com a prestação da casa e do carro – que entretanto tinha entregue – sem nunca mais lhe ter dado a mais pequena ajuda. A mãe ajudou enquanto pôde, mas também ela, doente terminal tinha gasto todas as economias nos tratamentos até que, quando os deixou, ainda lhe dissera: “ Pede ajuda, filha. Não tenhas vergonha, essa, que a tenham aqueles que se consolam com o que nos roubaram…” Morrera amargurada ao ver a situação da filha e dos netos, Joana desconfiava mesmo que o cancro de uma progressão fulminante tinha sido causado por toda aquela situação, ou quem sabe para a livrar de tanto sofrimento?
Fechava já a tampa do computador quando viu que tinha um email, correu a abrir. Era a resposta! Nem queria acreditar, tão rápido, tão solícito! Podia ir de manhã buscar o pequeno almoço das crianças, depois se veria.
Deitou-se e a fome, agora, esbatia-se um pouco na esperança, a esperança de um novo dia em que finalmente seguindo o conselho da mãe deixara de ter vergonha e iria, como tantos antes dela tinham ido, pedir uma ajuda que noutros tempos achara ser para quem não pode ou não quer trabalhar… Mas ela trabalhava. Enxugou uma vez mais as lágrimas que corriam agora umas atrás das outras, perdido o medo das lágrimas e a vergonha da fome.
De manhã, bem cedo, antes das crianças acordarem já se encontrava na fila para ir buscar o leite e o pão prometidos na véspera através de um email e viu, olhou e não quis acreditar: lá estava a sua vizinha do 5º andar direito, a filha do Sr. António, o enfermeiro do centro de saúde, a dona da sapataria; todos conhecidos seus, que há pouco tempo atrás tomavam o pequeno almoço na mesma pastelaria – cujo dono na falta de clientes fechara e, também se encontrava na fila à espera de caridade… “ Não se envergonhem que nós não somos pobres, fomos foi roubados”…

Maria João Varela



quinta-feira, 10 de abril de 2014

Resistência à aculturação

Lembro-me de subir umas escadas larguíssimas, em mármore, depois de passar por um átrio amplo com um teto tão alto que não se adivinhava um fim, de haver um corrimão tão largo, também ele em pedra gasta pelo tempo, onde era costume, longe da vista das funcionárias, escorregarmos e partirmos um ou outro osso mais frágil, ou amolgar a armação dos óculos – para os pouco afortunados que os usavam- ; sim porque usar óculos nessa altura era uma pouca sorte só comparável ao que é hoje não ter um tablet…
O colégio da Casa Pia de Lisboa secção de S.ta Clara ficava, e fica ainda, penso eu,   junto ao Panteão Nacional para onde me pisgava, às vezes, para ir ler para a biblioteca, quando faltava às aulas por nunca ter gostado que me impusessem aquilo que deveria estudar; quem sabe aí me inspirassem as almas já partidas a trilhar um caminho só meu… quem sabe me sussurrassem, sem que eu ainda soubesse, que do outro lado é que nos costumamos arrepender de não termos sido verdadeiramente livres e que só isso conta; não sei, talvez fosse isso que me desse força para subir aquelas escadas, apinhadas de alunos, nas horas em que chegavam, pela manhã, num borbulhar humano inigualável, e começavam a desaparecer, aos poucos, pelas salas de aulas cujas portas se iam fechando dando início a mais um dia de aprendizagens.
Lembro-me de entrar, também eu, na sala de aulas cujos bancos compridos de madeira de mogno se encontravam já pejados de crianças enfileiradas e aprumadas e de, ao fundo, observar a professora de música, uma mulher raquítica de nariz curvilíneo e um pé tão grande como jamais voltei a ver na vida… o enorme pé balançava ao compasso da música que se começava a ouvir,  aumentando em muito o seu tamanho, numa ilusão de ótica que tem a ver com o hipnotismo da cena que em tudo lembra os romances infantis onde as bruxas mais terríveis habitam e, talvez por tantos desses romances ter lido, me pareça agora,  com a longa distância que vai do acontecimento à lembrança, cujas contingências de tempo não podem ser negligenciadas,  não ser ela tão má como me parecia à altura. Lembro-a assim muito por culpa dos imensos castigos que me esperavam – a crer nos testemunhos horrorizados dos colegas que assistiam a cena- que, segundo creio, a mesma nunca se imaginou a infligi-los simplesmente por nunca se ter dado ao trabalho de observar  comportamento tão pouco provável ; é  que ao som do hino nacional, quando a música enchia o espaço com a sua melodia que inspirava o patriotismo, aquela hora em que todos sabiam o que fazer: levantar-se e com o ar orgulhoso de pertencer à Pátria Mãe – ou somente porque todos faziam o mesmo – cantar a plenos pulmões  “ Contra os canhões, marchar, marchar…” , só eu me mantinha sentada e de boca teimosamente calada…
É esta a primeira experiência que me lembro de desobediência, de não ajustamento, de não integração. Muitas outras se foram seguindo, ao longo dos anos. O temido castigo nunca se seguiu à infração, pelo menos nesta altura não, mas sempre me mantive na disposição de arcar com as consequências de tamanho ato de insubordinação.

Maria João Varela



sábado, 5 de abril de 2014

Somos

Somos lama, terra,
somos lágrimas de solidão,
somos poema de inverno
suspiro de poeta,
folha caída no chão.

Temos troncos, temos folhas,
temos raízes que nos prendem ao chão
somos lagos quietos,
brisa de primavera,
somos imensidão.

Somos finitos
temos lamurias e gemidos
gritos presos na garganta,
Ah, mas temos asas
voamos, sonhamos...
somos gente
quente paixão,
somos assim, assim...

somos tudo,
somos nada,
tropeçamos e caímos,
mas levantando-nos sorrimos
continuando a caminhada...


Maria João Varela

quarta-feira, 2 de abril de 2014

Terra Mãe

Dói-me ver como sacam as entranhas da terra, como lhe extraem o sangue, a seiva… Dói- me a ganância, o olhar estreitado de quem põe ao bolso sementes com medo que outro lhe colha os frutos… Dói-me tanto!
A nossa terra é tão bonita, azul, redonda, viva. Matam-na!
Matam-na homens e mulheres de mau íntimo, por egoísmo, ignorância; sei lá!
E nós, por que deixamos? 
Por que fechamos os olhos ao ódio? Ignorância, traição, vingança?
Por que deixamos que  esventrem a nossa mãe? Que lhe acabem com os peixes, as aves, o verde encanto dos pinheiros?
Por que abandonamos quem nos deu vida, terra fértil prenhe de vida? Ela chora e grita por nós…
Por que queremos grandezas, insígnias e glórias? Por que escolhemos a usurpação, quando ela nos dá o pão?
Até quando, mãe; até quando?
Até quando te arrancarão gritos de dor e lágrimas de pranto?

Até quando te abandonaremos à solidão?

Maria João Varela