sábado, 28 de setembro de 2013

Tédio

Chuva lá fora, cinza cá dentro. Já não aguento!
Para onde foi a luz, o brilho, o fulgor? Para onde foi o riso, o calor?
Veneno venenoso, tédio tenebroso onde o diabo se instala;
Vai de retro satanás, faíscas e coriscos traz, que é bem melhor!
Que o vento traga consenso e o que o bem-dito casamento
 me dê alento e resfolga deste nada que querer.
Dor de alma sem o ser, sofrimento sem contento
Nem inimigo a valer.

Não é nada, mas aperta.
Que os sentidos estão dormentes e nada lá fora apetece…
Arrastam-se as raízes da terra, não saem mas tentam
Só eu observo e paro. Para tudo e nada brota,
caem as folhas mortas arrastadas pelo vento,
Nem jazigo, nem morte!
Raios partam esta sorte, eu só queria viver
sempre alegre, sempre quente,
sempre de corpo presente, sem nostalgias fingidas.

Quando vens soltar-me os desejos?
Que eu temo ficar-me pelos anseios
e nem ando nem prevejo que possa querer andar,
então, sem mais nada que fazer
solto os dedos sem pensar naquilo que vai sair,
não importa, mas nem morta
quero sentir o bafio do emperro e do vazio.

Tudo vale para o disfarce:
Comer, beber, fazer, seja lá aquilo que for
 tudo o que seja ação e me  liberte do tédio  
ou deste meio viver.

Eu não nasci para isto, viva alegre ou viva triste
quero viver por inteiro! Então ponho-me  a criar
frases e versos à toa na esperança, talvez
que estes versos que lês  te deem algum consolo,
 desse fraco palpitar, desse eterno arrastar
de raízes lamacentas que procuram a saída
ou outra forma de vida, com mil cores e sabores
e sentidos  bem despertos;
frases sentidas, amizades coloridas, eternos amores…



sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Haveria casamento?

Era um daqueles dias em que o espelho estava mal disposto e por mais que ajeitasse os cabelos e desse palmadinhas no rosto para ativar os canais sanguíneos não conseguia que ele me fosse amável. Não valia a pena continuar a mirar-me, quando ele queria, tinha de sair para a rua com a imagem que ele me devolvia maldisposto…
Sentindo-me um trapo, galguei apesar de tudo os três patamares de escadas e fui-me encontrar na rua já movimentada devido ao avançar rápido das horas, onde os carros se queixavam com ruidosas buzinadelas, a chuva, acabada de sair da toca depois de meses de ausência dava um toque final ao caos pois tinha apanhado a maioria desprevenida e enquanto alguns se abrigavam tentando manter-se a seco, outros precipitavam-se aos encontrões para se conseguirem enfiar em algum autocarro, com certeza sobrelotado àquela hora da manhã. Molhei-me toda também pois embora com um guarda chuva, este era dos que se lhe entortam as varetas à mais pequena brisa; nada que não fosse de esperar, já que a própria vendedora à minha pergunta sobre a duração do mesmo me tinha respondido com um reconfortante: “ Só custa dois eulos”.
Sacudi levemente os cabelos que se grudavam à testa pingando pelos ombros e braços e contrastando com o húmido das costas que se devia à corrida até ao autocarro fazendo uma espécie de encontro entre dois climas contraditórios, deixando o desconforto vir-se juntar à má disposição com a imagem matinal que o espelho me tinha atirado. Para culminar, o nariz começou a pingar como que a reclamar pela falta de atenção para com a sua sensibilidade e com as mão ocupadíssimas pelos trastes de inverno não consegui travar a tempo um fio fino que sem esperar que eu pousasse os pertences me cai pelas narinas arfantes e me vem macular o casaco.
Atrapalhada, desconfortável, um traste humano que mais parecia um traste humano mesmo, dei de caras com a figura elegante e sorridente da minha paixoneta do momento que me olhava divertido do fundo do autocarro e me apontava um lugar para eu me sentar, mesmo ao lado dele, o qual declinei pois como é obvio mulher que se preze prefere passar por antipática e arrogante do que por ranhosa em terra de gente limpa e seca.
Saí esbaforida na paragem seguinte quando ainda faltavam duas paragens para o meu destino que palmilhei encarnada de fúria por me ter pregado o destino tal partida: há que séculos tinha desejado uma oportunidade por me aproximar daquele homem que me povoava as fantasias e ela tinha chegado no momento mais inoportuno e tudo porque culpa de um espelho que me tinha dito ser feia quando ainda não estava bem acordada para o contradizer, uma chuva que tinha teimado em cair descontroladamente para cima de um chapéu por quem nem a dona tinha tido grande esperança que deixasse alguém a seco e pela falta de um lenço que a tempo e horas me poupasse do estigma de ranhosa.

Quem sabe por culpa de tais objetos insignificantes se tenha perdido um casamento?

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

se eu soubesse

Se eu soubesse falar de cor
sem pensar o que falar,
se eu soubesse para agradar, me calar
seria fácil e mais seguro
distribuir sorrisos de papel colorido, brilhante e lustroso.

Mas não, não sei, e por ser assim tão transparente,
falar tão abertamente sendo fiel só a mim
sem querer confundem-me os traços.

Se eu pudesse tingir os dias
com palavras ocas e fúteis
ou soubesse esses ditames
de redes enrodilhadas tecidas
viveria mais contente
ao agrado de toda a gente,
mas não me agradaria a mim…





Triste

Às vezes, sinto-me triste sem motivo,
ou por muitos motivos, talvez.
Talvez porque passaste ao meu lado sem me ver,
ou vendo-me arredaste-te tendo eu passado
sem te ver a ti.

Às vezes, sinto-me assim,
como quem é levado pela corrente
sem ter uma palavra a dizer, sem nada poder fazer
porque às vezes quem manda é o que acontece
sem que os meus dedos sensíveis
possam conter a torrente
dos factos que de um miradouro observo.

Triste pensador dos dias
só não os consigo conter, nem virar a meu favor,
seguem firmes e sozinhos
como afinal também eu estou.

Seguem todos seu caminho
quer tente eu ,ou não, contê-los;
também tu segues o teu
sem me conteres a corrente
dos meus tristes pensamentos
que vêm e vão embora, tão livres,
aleatórios  e esquivos
que vêm e vão sem motivos
ou por muitos motivos talvez.




quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Em alto mar

 De onde vinha o medo de ser livre?  O terror de viver na posse plena dos sentidos, a responsabilidade de ser dono do próprio ser e de navegar com as velas ao vento, medo que corresse mal, de não ser capaz, de falhar; porque esse assumir da própria vida era terrível, opta a pequena embarcação pelas amarras, pelas desculpas que ainda mais  a diminuem, mas a  tornam para sempre colecionadora de ondas que a atingem em pleno casco.
Ser livre não é para todos, ser barco no alto mar dá medo do desconhecido e da imensidão dos oceanos, por isso mesmo não soltamos a âncora e depois de muito balançarmos no mesmo lugar, tal como o barco naufragado pensamos que não há mais mares para navegar e ali ficamos nesse movimento perpétuo dependente das chapadas das ondas, inconscientes para tudo o que há para além.

Libertarmo-nos é amadurecermos, aceitarmos a responsabilidade pelas escolhas mesmo que algo corra mal, aceitarmos largar o porto seguro para prosseguirmos caminho, aceitar que falhamos e que temos de ajustar as velas muitas e muitas vezes  e que isso  depende da nossa força, mas quando finalmente aceitamos que somos donos de nós, que estamos a desbravar o nosso próprio caminho com a lâmina da nossa catana e que não nos podemos dar ao luxo de olhar para aquilo que ficou lá atrás e que nos prendia os movimentos aí, a dança torna-se fluída, os passos leves e seguros e as maravilhas escondidas nos bosques de intrincados caminhos começam a aparecer; é isso, dá medo viver… 


segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Adolescência

E nesses dias sem começo nem fim quando tudo ainda restava fazer, quando só havia caminho a percorrer e as planícies se enchiam de flores de cores vivas e suaves brisas perfumadas, os sorrisos ainda conservavam a inocência da infância, mas já com um despontar de adolescência com as suas dúvidas tantas quantas as certezas e os julgamentos impiedosos do mundo, a bicicleta era a  fiel companheira de encontros fugidios e proibidos…
Os dias que se prolongavam até que o sol chamasse para a realidade tal como tantas vezes o fizera para as gerações passadas, o tempo em que não existia tempo e o presente era sorvido até à última gota de sol, último aroma de fruta fresca e madura que brotava da terra que era generosa nesses dias, últimos zunidos de azafamadas abelhas na sua contínua busca pelo pólen ; o encanto do primeiro beijo roubado sob uma nespereira que fazia estragos :  todo o mundo ruía , tudo à volta perdia substância e se evanescia num sentimento sem palavras  quando flutuávamos sem sair do chão num número mágico que perdurava todo um verão.
Ah, doces promessas de uma adolescência precoce, esses tempos em que tudo é esperança e o amor não dói , os dias gargalhados, estridentes e inacabados como se não houvesse nem noite nem dia, dias intempestivos que passavam de rompão sem que nos apercebêssemos tal era a fúria de viver;  esses dias não voltam. Mas fica a lembrança dos dias em que se voava com o impulso de um abraço, se vivia esfomeado de viver num apressar sem pressa, na ilusão das conquistas sem entraves nem impossíveis, dos sonhos que se faziam fáceis, da chuva que não molhava só caía…

Para sempre ficam também as amizades cândidas sem subterfúgios do bando e uma irreverencia juvenil que se espera que perdure para que os dias mais reais da adultez não cansem nem nos cinzem as manhãs que agora já não se nos apresentam assim tão infinitas…


Segunda feira

Porque hoje é segunda-feira e o dia não está para gente mole daquela que olha as coisas com um olhar de quem já se cansou da beleza do mundo, onde não há mais espaço para a curiosidade ou êxtase que se encontra sempre nas pequenas coisas, beleza simples das gotas de orvalho encarreiradas numa folha caída pela manhã enevoada ou o canto fugidio de um pássaro que parece cair enquanto vai voando em saltos graciosos ou ainda o abrir de um céu que era cinza ainda há pouco e que agora sorri em tons de azul; hoje é dia de olhar para o que temos de bom.
Hoje é dia para ver o que se esconde por trás de tudo o que temos passível de ser olhado com desdém ou descontentamento, dia de olhar tudo o que somos com um olhar de amizade e descobrir o que jaz esquecido, hoje é dia de aceitar as fraquezas e rejubilar com os pontos fortes e virtudes que todos temos e que por vezes são os outros que no-lo lembram.
É dia de lembrar as vozes que de tons agradáveis que nos disseram sermos fantásticos, únicos, incomparáveis e insubstituíveis – até porque num certo sentido isso é verdade em cada um de nós – é dia de lembrar os sorrisos de alegria que detetámos apenas por estarmos presentes, é dia de lembrarmos a vida mais sombria que outras vidas teriam sem a nossa presença.

Porque é segunda é dia de agradecer a semana que começa e saudar o sol que ainda resta deste final de verão; não, segunda não é dia de gente mole, é dia para, por entre os espaços ocupados de tarefas, olhar a vida que acontece da aurora ao entardecer.

sábado, 14 de setembro de 2013

sussurros de amor

Contou-me o vento que à noitinha,
quando o sol se vai no  jogo do esconde-esconde
e as vozes se calam,
 ouvem-se, por entre o restolhar das folhas dos álamos,
 espigas prateadas que agora dormem,
um rumor de tempos idos quando os amores se cantavam.

Nesses versos rimados,
 ouvem-se  lamentos de amores acabados
 deixando por cumprir promessas de amor eterno
deixando por amar esses desalmados.

 Quando todos dormem,
lamentos sentidos,
angustias profundas se fazem ouvir
 dos que se foram sem amor,
dos que partiram sem partir…

Conta-se que cada lamento
tem em si todos os lamentos
 e que esses sons são melodias
que inspiram os poetas,
que lhes tocam a alma
quando se preparam para compor
transformam-se as lamurias
em canções de amor.

Entram nos poros da alma
 por caminhos imemoriais
feitos de esperanças vãs,
 sonhos de amores  ideais.

Encontram-se, para além da morte,
na busca eterna do amor perdido,
encontros secretos de almas penadas
 alivio  da dor de um amor já ido.

Esbracejam, rodopiam,
 entrelaçam-se por entre as folhagens
 murmurando o desgosto outrora sentido,
 prevenindo outros do desencanto,
de um amor não correspondido.

Quem os ouve, nesses sussurros
de amores proibidos  nos álamos de prata
 ou ama mais forte,  e os vingou
ou quebra-se o feitiço de um amor fingido
de quem podendo nunca amou.



sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Histórias por contar

Dançar à chuva, alegria infantil que se esquece quando adultos, mas que causa lembranças de tempos em que o sofrimento se evitava com recurso à imaginação. Há sempre alegria quando se tem imaginação porque a segurança com que se sabe que tudo passará, que tudo é efémero, que saber aproveitar o que se tem é sinal de sapiência. Porque se perde, ao crescer, esta sabedoria gostava eu de saber…
Não importava, no momento em que eu e a minha irmã, nos ríamos dançando sob as pingas que caíam de um telhado cansado de abrigar histórias humanas que ele ameaçasse soçobrar a qualquer instante, deixando-nos soterradas; o que importava era tomar banho de chuva e rir, rir muito. Agradeço todos os dias não ter perdido ainda a capacidade de rir na chuva e se me virem a correr debaixo de um temporal acreditem que por dentro estarei a sorrir mesmo que me apeteça um banho quente, há que aproveitar enquanto há chuva!
Dizem que as casas só se tornam um lar depois de lá morarem muitas pessoas impregnando o ar com os seus melodramas, as suas angustias, sonhos, esperanças… dizem que só então são capazes de ser acolhedoras com as histórias que tiveram o privilégio de partilhar, ficando as suas paredes escritas com versos sentidos e por isso exalando um perfume suave feito de emoções vividas; por isso eu era feliz naquele que era um prédio que ameaçava ruir a qualquer instante. A minha irmã também. As histórias pairavam no ar, como espíritos que se desprendessem e passassem nas frestas das portas desengonçadas que chiavam com o menor sopro e a curiosidade  também se desprendia para recriar as vidas que ali se tinham entrelaçado, dado nós e desenlaçado.
Porque queremos casas novas quando as antigas são muito mais ricas de imaginação? Talvez só sejam úteis a quem se aventura a entrelaçar vidas pelas palavras e a mais ninguém. A verdade é que quando nos avisaram que tínhamos de sair porque a qualquer momento o velho contador de histórias poderia cair, despedi-me com tristeza das minhas amigas de aventuras, amigas da minha imaginação  que tinham a minha idade e vinham tomar um chá, feito por mim com pingas de chuva e que à tardinha se aventuravam no sótão onde as tábuas partidas deixavam entrever as outras divisórias, onde o vento se debatia em cada esquina para fazer parte do encontro, onde o sol vinha visitar-nos pelas frestas fazendo lindos desenhos e até arco-íris pessoais.
Esta velha morada que ruiu depois de termos saído, levou com ela as nossas próprias histórias, de pobreza, mas nunca de sofrimento ou miséria. Histórias onde coube um velhote que nos fazia companhia quando não tinha mais lugar para dormir, pedindo desculpa com a humildade que só um sem-abrigo tem e que , na primeira visita assustou a minha mãe fazendo-a empunhar ameaçadora um velho canivete com que cortava um pedaço de pão envelhecido, de recém-nascido ao colo. Veio outras vezes, mas já não nos importávamos por partilhar aquele espaço enorme, com quartos aos montões e até lhe sentíamos a falta quando passava muitos dias sem vir, pensando que talvez já se tivesse despedido desta vida, dura e sem sentido porque a ele já faltava a imaginação…

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Aulas

Chegam ao fim as férias e mais um ano de labuta intensa se aproxima, no entanto, Coimbra ainda cheira a verão:  o Mondego e o encanto das  ondas suaves nas horas calmas do verão que finda; a avenida das Tílias, no Botânico, e o frescor aromático que exala suavizando a maltratada pele pelo verão fervente de calor extremo; as árvores vivas de pardais com o piar das despedidas.
As universidades enchem-se com as suas andorinhas, daquelas que começam a chegar , não no início da primavera como as outras, mas no final do verão, com as suas expectativas em alta e as negras capas esvoaçando rebeldes. Quem já não os viu com a arrogância própria de quem se orgulha daquilo que virá a ser?  Lá estão eles com a  alegria contrastante e contagiante de quem, pela primeira vez , arrisca um voo mais afastado das asas protetoras dos progenitores; em cada recanto enchendo as ruas com os seus chilreios tão animados quanto ruidosos tendo no bando um refúgio provisório e alternativo. Parecem reconhecer-se ao longe com os seus uropígios imaculados e estofados, o passo estugado e o chilreio condizente. Já se sabe é tempo de aulas.


terça-feira, 10 de setembro de 2013

Espelho partido

Hoje queria falar-te porque já fui tu. Sei como é quando os dias nos pesam como quando a neve dobra mesmo os galhos mais grossos das portentosas árvores, obrigadas agora a uma deferente vénia. Sei como é ver todos os olhos postos em nós sem estarem, como no meio de um palco imaginário onde fôssemos uma vedeta ocasional e o peso das iris sobre nós nos fossem estrangulando ganhando uma força sobrenatural. Ergue-te! Ninguém te vê. Cada qual seguindo a sua luta, cada qual com o seu medo, todos têm terrores.
Hoje queria dizer-te que és linda na tua imperfeição, nas tuas assimetrias é que te tornas tu, ser inimprimível , rara túlipa negra. Ergue-te! Ergue-te e verás o mundo de um outro ângulo, verás o que te digo hoje que já passei por ti; já fui assim pesando-me os olhares, as sombras, os prantos calados de patinho feio, as inseguranças… Vê ao menos como tem encanto o teu sorriso inocente e vive plenamente na tua pele. Se me pudesses escutar, para além do tempo que já passou, se te pudesse assegurar que serás segura e terás orgulho na linda mulher que serás, nas tuas incongruências e arestas por limar, mas mesmo assim serás sempre linda. Nunca ouças as vozes dos que te diminuem porque temem o teu brilho, não te apagues para lhes dares razão no que dizem.
Olha-me para além das brumas do tempo que te farão chegar a mim e deixa essa tristeza; se ao menos pudesses ver todo o esplendor que exalam os teus poros, a beleza que se dá aos poucos a conhecer, sem plumas espampanantes, mas em suaves tonalidades e texturas. Se visses o que eu vejo, mas me era vedado quando era tu.
Levanta a cabeça e olha o mundo à tua volta sem comparações pois comparar dois seres humanos é como olhar o céu numa noite de verão para comparar as estrelas, apenas o que importa é apreciá-las, cada uma com seu tamanho e sua luz própria, levanta os ombros e sê a tua melhor amiga, ou então deixa-me ser eu que te conheço bem, se vives acabrunhada, fui eu que assim vivi, se sofres por distorceres a tua imagem, essa sou eu, se te esmagam os olhares foi à minha versão antiga que esmagaram.

 Eu sou tu com a experiência que os anos me foram dando e aprendi que era bela julgando-me feia; é que tinha um espelho partido dentro e mesmo quando o espelho cá fora mais objetivo, mas também menos entendedor nas artes, dizia que não estava nada mal, mesmo assim esse espelho interno, subjetivo e cheio de vozes alheias, medos, comparações, negava-o . Esse espelho interno  partiram-no pessoas, umas mal intencionadas, outras apenas míopes para as incomensuráveis nuances que a beleza adquire, feita que é de pequenos gestos quase impercetíveis, expressões, tons, cheiros e sabores… Para perceber a beleza é preciso ter olho para a arte e porque rareiam olhos de perito é que tantas raparigas da tua idade se sentem feias. Depois, quando nós mesmas desenvolvemos esse dom, ou à custa de tanto olharmos pelos olhos do amor, o espelho conserta-se e percebemos que nos deixámos enganar por um artefacto que apenas necessitava de conserto.

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Ponto de interrogação

E se eu pudesse ser ponto e virgula, uma pausa maior em vez de um continente de interrogações; se eu pudesse que me visses nesse tempo e espaço em que me torno consciente, por um pulsar de vida crescente, em que tudo acontece… como posso ser eu, assim tão febrilmente palpitante, no entanto, por magia poderia não o ser. Tal como a suave pétala de uma papoila, assim sou eu. Poderia ser pedra, ser sem existência, feita de ausências, não fora esta verborreia ininterrupta, fala do corpo sem palavras que me fazem ser pensante.
Eu queria acordar e numa vírgula me espreguiçar, ficar quieta um instante entre aquilo que é e o que poderia ser, sem pressa em me tornar eu numa lucidez crescente.  De onde venho agora? Neste preciso instante em que acordo e me torno eu, neste ínfimo tempo-espaço, quase impercetível a quem acorda abruptamente, mas que para mim permanece o segredo mais bem guardado do universo; poderia não ser mais eu…
Não quero ser reticências, não, antes um ponto final. Poderia não ser mais eu…
Porque sou feita afinal de questões sem resposta, tantos pontos de interrogação que mais pareço um exame de escrita sem as devidas soluções?
Quero certezas, afirmações. Quero ser um eterno ponto de exclamação! Uma eterna surpresa, surpreendida também. Quero ter a curiosidade de uma criança com os seus “ah!” diários diante do que é para todos banal.
Também não quero ser um parêntesis – na tua vida não -  antes um traço só, visto que o segundo me não é dado conhecer, mas mesmo que conhecesse; tudo menos reticências, numa infinita incerteza, em que nada acontece nem pode acontecer, para sempre no limbo da existência onde poderia nem ser eu.
Talvez dois pontos também não esteja mal, muito pode ainda ser dito, escrito, pensado. Há uma certa liberdade também, ainda posso perdoar, ser perdoada, amar, sentir; há espaço para a ação. Podes-me pôr entre aspas, mas só para dares relevo às minhas virtudes, para os defeitos basto eu.
Também dispenso asteriscos, não quero ser nota de rodapé na vida de ninguém; antes no cabeçalho que pelo menos tem maior relevo. Mas para quê tanto afã? Eu sou simplesmente um grande ponto de interrogação…
Não, reticências não! Não quero ficar com o sentido de mim suspenso, entregue a um caminho, quiçá sem retorno; dá-me um ponto final e acabemos com a conversa.



Mondego, espelho de vaidades

 Oh Mondego, espelho de tantas vaidades:
gaivotas de cauda cinzenta,
coluna de verdejantes árvores,
essas andorinhas de inverno,
bandos de versáteis patos.

Espelho de memórias eternas
de segredos bem guardados
lábios de doces amantes
versos à noite cantados.

Espelhas muitas emoções
de um céu que te dá cor
que ora é azul profundo
ora de alvas feições
Quiçá, negro de chumbo.

Nem sei qual a verdadeira
 Coimbra, princesa airosa
 Se aquela que reverbera
Se a que se mira vaidosa.


domingo, 8 de setembro de 2013

Passaporte de verniz

Sapatos, na minha infância, eram dos bens menos essenciais que existiam desses que só nos preocupamos em obter quando tudo o resto já está assegurado. Claro que para uma criança uns sapatos são bem mais do que simples proteção entre os pés e o asfalto pois os mesmos permitiam quase instantaneamente etiquetar alguém com o terrível “pobre” se eram tortos e desengonçados, quase sempre com o indício de futuros buracos no dedo do pé grande por serem usados para além daquilo que o crescimento do pé permitia, ou então a etiqueta tão desejada “aceite” se os mesmos ganhavam aprovação.
Não admira por isso que, sempre que visitava a minha tia e as suas filhas, que os laços familiares pretendiam ser minhas primas considerasse que eram ricas pois tinham sapatos bonitos; mais do que sapatos bonitos tinham os dos meus sonhos: uns sapatos pretos de verniz com uma tira a atravessar o peito do pé e que me daria o privilégio inesperado de ter com quem brincar no recreio numa inapropriada conjugação de fatores. Mais a mais tinham muitos mais brinquedos do que os meus sonhos, como se até à noite houvesse algum tipo de restrição na quantidade permitida.
Sendo eles o meu passaporte para ser aceite no colégio, pelo menos no meu entender da altura, é compreensível o grito de alegria que dei quando a minha tia disse que eram para mim porque a Helena, minha prima e legítima dona dos mesmos, já não os queria. Fiquei eufórica! Mas durou pouco a euforia porque bastou pegar-lhes para os experimentar para me dar conta de que estava longe de ser a Cinderela e coube-me o amargo de boca que devem ter tido as suas irmãs quando constataram que o pezorro com que Deus as tinha brindado lhes retirava a benesse de se casarem com o príncipe.
A minha tia não queria acreditar: « Como é que a tua filha tem o pé maior do que a minha dois anos mais velha?! Não me bastava ser pobre ainda tinha de ser pezuda? É por estas e por outras que me habituei a questionar o criador,  é que no fraco entendimento que me era dado ter das coisas, era suposto que quando o universo conspira juntando  alguém que é caridoso e alguém que necessita, pelo menos houvesse uma mãozinha de Deus a corrigir a merda que tinha feito, reduzindo alguns milímetros de pé, e deixar que eu pudesse usufruir de tamanha alegria, mas não, eu continuei pezuda e sem amigas para brincar no recreio.
Quis o destino que a minha madrinha tivesse uns quase iguaizinhos para me oferecer no natal. Mulher de posses, enchia-me de presentes quando lá ia a casa, mas teve azar comigo que lhe calhei em rifa porque sempre fui rebelde e orgulhosa, características imperdoáveis a quem é pobre, e sempre que a minha mãe me obrigava a ficar com ela nas férias adoecia de dar dó , causas somatossensoriais desconhecidas na altura, mas que a irritava deixando-a rubicunda de fúria. Não podendo vingar-se de outra maneira tirava-me todos os presentes no final das férias que me tinha dado no início e lá vejo, uma vez mais, escapar-me por entre os dedos a oportunidade de ser feliz.
Deste desgosto da meninice ficaram resquícios e penso dever-se a isso a minha tentação por sapatos de criança, tanto que quando os tamanhos permitem, ainda hoje, compro para mim modelos de criança pois permitem numa só toada acabar com dois traumas: a falta de sapatos na infância e o facto de ser pezuda.


sábado, 7 de setembro de 2013

Mãos



São essas as mesmas mãos
com que acarinhaste, amaste, sentiste;
mãos sensíveis, ternas e hábeis
consolo de dias mais tristes.

De encontro ao peito sentiste
 bater  um coração descompassado
 levando até ti  prova de vida
numa linguagem sem palavras.

Levantaste e rodaste  no ar
uma criança que o riso apanhara
mil flores, infindáveis cores
oferendas de outros amores.

Mãos sensíveis, amorosas,
de uma seara colhera
trigo, centeio, o pão
que a boca saciara.

Carícia impercetível,
sopro de anjo em ébano ardente.
Mãos tranquilas que embalam
sensação eternamente presente.

São mãos cansadas, calejadas
de infindáveis e rudes labutas,
essas tuas mãos que cuidam, amparam
que protegem de disputas.

Misteriosos segredos em fios de seda tecidos;
cúmplices de loucas paixões proibidas,
os teus dedos estendidos.

Estendes as mãos para um abraço
ou deixa-las ficar escabrosas, mortas, inertes?
Dedos longos, elegantes, sem mácula,
 por onde água pura se verte.

Castigam e são castigadas
constroem um mundo de castelos no ar onde habito
esculpem uma obra de arte qualquer
tocam  notas de uma melodia.

Destroem vidas inteiras
numa sentença mal dada
mãos impunes, num martelo de juiz
inconscientes, alheadas.

Tocam a finados,
no alto do sino da igreja
quiçá, a marcha nupcial ?
Servas no amor e na morte.

 





sexta-feira, 6 de setembro de 2013

A-MOR - TE!


 Deixa-me ficar..
Não me tentes com os teus encantos
 onde o mal se esconde,
 onde a dor está disfarçada.

Deixa-me ficar…
 nos meus dias serenos e suaves
 onde as ondas gigantescas dos teus não se fazem sentir;
 deixa-me navegar nas águas plácidas sem as tormentas
nem as ondas revoltosas que me chegam
em torrentes caprichosas do teu mundo.

 Caminho, silenciosa e firmemente para o cadafalso,
sem querer desistir, sem poder parar
 numa atração inexorável
 pelo prazer mórbido de te amar.

Porque chegaste com fragâncias de desejo e visões do paraíso?
Manto diáfano de promessas que nunca serão cumpridas,
 um amor sempre adiado, exigente,
 oh, forças porque me abandonam?
Deixai seguir o caminho, a quem faz perder o meu…

Porque me tiras o chão?
Tapete de flores onde deslizo
nos dias cálidos de alegria inocente;
porque me roubas um futuro inexistente?

Porque me condenas à morte em vida
com o peso da tua ausência,
porque me seduziste? Me tentas?
Mil demónios me invadem os dias
em que te deixo entrar.

Porque te olhei, vendo-te?
Passarias sem te ver,
não fora o encanto desses olhos
que olharam os meus e na armadilha por ti tecida se enredaram.
Porque ficaste sem me querer?
Perpetuaste um sofrimento sem sentido, sem finalidade;

 Oh, privilégio dos amados que não amam!
Amor assim obtido é roubo
merecedor de pena capital;
 trouxeste a morte em doses sem serem letais,
 mas  envenenam em parcelas,
corroem ,aos poucos, alimentando um desejo animal.

Oh, amarras de férreas correntes,
grilhetas impossíveis de arrancar!
Que prendem sem serem vistas,
que escravizam e me tornam marioneta sem vontade,
sem liberdade para as tirar…

Amor cruel! Como ousas chamar-te amor?
Como ouso dizer: «amo-te»! Vou-te dizer «A-mor-te! »
para ser mais verdadeira.

O amor enaltece, o teu rebaixa,
o amor faz sorrir, o teu faz-me chorar;
 o amor liberta, o teu castra
e prende-me em masmorras bolorentas
de onde não posso sair;
o amor dá vontade de viver;

o teu, dá-me vontade de morrer… 


quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Aqui e ali...


Aqui e ali, quebrando a monotonia da paisagem, esparsas nuvens de um cinza desbotado afastavam-se em leves baforadas que a terra parecia exalar. Numa longa e profunda inspiração contemplei a paisagem de beleza agreste querendo guardar o momento em toda a sua complexidade de detalhes; quis gravar cada tom de verde dos formosos pinheiros, cada tonalidade do amarelo das elegantes giestas,  o tilintar longínquo do sinete nos pescoços longos e elegantes das cabras que saltitavam pelos escarpados rochedos.
Que encanto poderia existir nestes montes inférteis e quietos,  desprovidos de tudo aquilo a que  estava habituada, das  luzes cintilando perpetuamente e dos movimentos frenéticos onde não há espaço para reflexões profundas, em que tudo é efémero e de uma magia desnorteante?  Que sensação de esvaziamento profundo  e simultaneamente repleto de significado era aquele? Conheceria finalmente o sentimento de felicidade? Ali? Sem mais nem menos? Sem motivo algum?
Resolvi sentar-me e enterrar os pés descalços na terra maltratada de invernos rigorosos, e assim fiquei pelo que pareceu uma eternidade sem nada fazer, a não ser, apreciar o facto de estar viva e preenchida de todos os bons sentimentos que emergem quando menos os esperamos. Apercebi-me naquele instante que tudo aquilo por que lutava parecia insignificante diante da paisagem inebriante que se estendia diante de mim e prometi que me daria, dali por diante, mais momentos destes, sem princípio nem fim, em cujos intervalos a vida apenas se desdobra em acontecimentos sem significado aparente. Sentiria o aflorar de uma leve hesitação? Porquê este sentimento agora como se pertencesse àquele lugar e nada fosse mais importante no mundo do que ficar embevecida a contemplá-lo? 
O som, ao longe, do sino da pequena igreja tirou-me do devaneio e uma ligeira brisa fez-me voar os cabelos trazendo o aroma do campo, sempre puro, que rejuvenescia a alma. Faria bem em partir? Levantei-me e absorvi tudo o que podia da bucólica paisagem. É na partida quando queremos tudo abarcar pois já nos falta o que ainda temos;  temos sem ter, já não sentimos nosso o que está diante de nós e mesmo a olhar, tocar, sentir, mesmo assim não é nosso. Até o doce nos parece mais doce e a brisa mais fresca, o que era feio agora é  bonito e o aborrecido ganha novos encantos descobertos à última  hora enquanto  perguntamos porque não olhámos com mais atenção enquanto havia tempo… Agora já não há. Resta a nostalgia e a leve esperança de regressarmos um dia e vivermos o que nos faltou viver agora.
Porque nunca nos é dado saber que aconteceria se fôssemos por um lugar diferente daquele que acabamos por seguir? 






quarta-feira, 4 de setembro de 2013

O Hulk em mim

Há assuntos na vida que nos moldam o caráter sem que nos apercebamos disso a não ser longos anos mais tarde. Passei a acreditar sem reservas na máxima «quanto mais a gente se baixa mais o cu se vê» tinha por volta dos 11 anos de idade e uma história já longa de bullying e rejeição que levou muitos anos a exorcizar.
Naquela época, a casa pia era um misto de colégio interno, externo e um meio termo entre os dois e , embora eu estivesse no meio, nem era externa nem interna, tinha dos dois lados inimigos figadais que se revelaram logo após o primeiro dia em que fui uma espécie de atração de circo porque já ia a meio o período das aulas e a professora fez questão de que toda a turma me desse as boas vindas. A partir daí as boas vindas acabaram e começou o que para mim foram longos anos de tortura.
A pobreza extrema e a falta de condições sanitárias condignas fazia com que os piolhos tivessem sido a minha companhia mais fiel de infância e afastassem de mim as amiguinhas para brincar. A culpa era toda de umas empenhadas funcionárias que chegavam qual exterminadoras implacáveis rompendo a meio das aulas com a sentença: «Vamos lá vasculhar essas cabeças e ver quem tem piolhos»; eu começava logo a tremer pois já sabia que os meus hóspedes indesejáveis não me largavam os cabelos e que isso era o suficiente para ser posta de lado como um pária o resto de semestre. E assim era, mal davam conta dos fiéis habitantes, estas bestas sem empatia saíam vitoriosas com a sensação do dever cumprido , e a mim restava-me apenas a companhia de outra desgraçada como eu que mais ninguém queria, pelo que juntávamos as desgraças sendo amigas uma da outra num afinco de fazer inveja aos mais populares da escola.
A minha mãe que nunca foi de meias medidas, assim que era avisada da minha condição de piolhosa tomava logo uma de duas medidas drásticas: ou me rapava o cabelo pondo um lencinho no lugar dos caracóis ou o ensopava em petróleo, insensível aos meus apelos e queixumes e inconsciente para o perigo de tal medida. Tornava-me assim na   cúmplice involuntária de tais bestiolas onde um sentimento dúbio nos unia: por um lado queria-os mortos por outro tentava salvar-lhes a vida aplacando-me os ardores do petróleo e do rabear aflito deles enfiando a cabeça em água fria.
Quando a primeira medida era a opção, os meus perseguidores habituais tinham com o  que se rir  a bandeiras despregadas ao verem-me careca depois de me arrancarem o lenço. Do bando, destacava-se o líder que só pelo nome dá para perceber não ser boa rês: chamavam-lhe o Fatela, não sei se se chamava mesmo assim ou se seria também ele vitima de alguma alcunha que colou. Sei apenas que foi um dos meus maiores torturadores de infância que apenas recuava perante a sanha justiceira da minha irmã quatro anos mais velha. Um dia, cansada de tanto intervir, deixou-me entregue à sorte com a resolução: « A partir de hoje tens de aprender a defender-te!»
Ficava muitas vezes sem ir ao recreio, espreitando o rufião que se pavoneava com a comandita atrelada, para fugir a sarilhos, mas quanto mais me escondia mais ele me encontrava fazendo uma dupla inesquecível qual Tom & Jerry  com a história ao contrário: ele encontrava-me sempre saindo vitorioso com alguma malvadeza que se lembrasse de me fazer.
Não encontro explicação para o que aconteceu naquele dia, que tudo levava a crer seria mais um dia típico de bullying : empurrões, achincalhamento público, roubo do lanche, apalpões; só sei que levava eu os livros na mão, já andava no sexto ano e tinha os meus 11 anos, quando com ar de valentão me empurrou ao chão espalhando os livros pelo corredor e as risadas pelas caras colegiais. Acordou o Hulk adormecido em mim, feito de um misto de ódio acumulado durante anos com uma necessidade animal de justiça: mandei-o para a enfermaria com os tomates esmagados e a alma vingada.
Desfeita a dupla, ele nunca mais me procurou nem eu nunca mais o evitei, tinha-me tornado outra pessoa: admirada, elogiada e temida pelos inimigos de outrora e que agora me carregavam nos braços para me fazerem ver que tinham esperado por este desfecho toda a sua curta vida escolar. Acabavam, assim, anos de tortura física e psicológica, um jogo em que os dois lados cumprem um papel igualmente importante, um a  de vítima outro a de carrasco, mas antes que me acusem de pôr culpas nos desgraçados que levam todos os dias na escola confesso que o desenlace final muito se ficou a dever ao meu crescimento precoce numa altura em que o dele deveria estar estagnado. Que cada um se meta com os do seu tamanho, cobardolas infames!


terça-feira, 3 de setembro de 2013

Histórias de uma janela

Por detrás da pequena janela orlada a verde, um verde de tinta rasca, mas com um encanto assombroso, assomava uma pequena cabeça de fios prateados muito atenta ao que se passava em baixo. Sempre que  por lá passava, lá estava a cabeça como se tivesse existência própria, sem mais nada que a suportasse : sem corpo, sem membros, só uma cabeça. Nunca conheci o resto da dona, só uns olhinhos curiosos como se não houvesse no mundo nada mais importante do que observar as pessoas que passavam, os carros, esses monstros de metal que era suposto facilitarem-nos a vida, um gato preguiçando no umbral da escola infantil, onde bandos de crianças chegavam, enchendo de alegria a rua…
Uma velha e encardida cortina de renda grosseira de má qualidade preenchia o buraco negro de uma velha casa à antiga onde se podia adivinhar o cheiro a solidão e naftalina, numa combinação por demais usual, roçando uma lei física qualquer -  talvez a própria naftalina tenha na sua estrutura química algum componente que a par de afastar a traça, ajude também a afastar a outra praga maior, mas adiante. Um velho e escuro buraco, talvez o vislumbre de um vazio na alma, apenas preenchido por aquele tempo que passava à janela.
Não me lembro já a primeira vez que reparei nela, talvez num daqueles poucos momentos em que, embrenhados no nosso próprio eu levantamos os olhos do chão para contemplar outras paisagens, apenas me lembro de que achei uma perda de tempo aquele passatempo, um tanto ou quanto antiquado, de observar quem passa. Ignorância a minha, poderá haver alguma coisa mais proveitosa do que observar, sem ser observado, os nossos semelhantes?  
Comecei sem querer a ver pelos seus olhos:  o que pensaria de mim, ao ver-me olhar de esguelha em vez de diretamente, sem subterfúgios, o meu reflexo no espelho para ajeitar a indumentária; um par de turistas de mochila às costas, faltando a uma em curvas o que sobrava na outra completando-se numa harmonia perfeita; uns sapatos de salto alto gingando com a dona em cima, perigosamente, equilibrada dando ao andar uma vaidade sem motivo e fazendo balancear as bolas vermelhas da blusa; uma negra de cores garridas vestida criando uma simetria de cores perfeita, apenas interrompida pelo leve coxear… sempre sem querer apanhei-lhe o mesmo vício.
Pelo que foi uma tristeza quando a cabeça desapareceu no buraco negro fazendo morrer a janela provando o sucedido umas tábuas brancas e carrancudas, a fazer as vezes da lápide, fechando hermeticamente lá dentro todas as histórias que a cabeça nunca se deu ao trabalho de contar ao mundo.

A única lembrança de que algum dia lá habitou alguém foi a cortina, velha testemunha das histórias observadas, ligeiramente afastada para um lado, como se uma mão fantasmagórica ainda a segurasse para que uns olhinhos curiosos observassem o mundo de uma pequena abertura, mas com enorme alcance…













(imagem do artista Melro)

Ode ao sol



E se o sol fosse um menino?
Brincasse de esconde-esconde
 a comer algodão doce por detrás de brancas nuvens
 traindo o esconderijo…

E se fosse brincalhão
 batesse às persianas,
entrando sem avisar,
sem esperar ser convidado obrigando ao despertar;

Se brincasse com as ondas,
 rodopiasse à superfície como enguias reluzentes,
 mergulhasse e espalhasse o seu encanto em risadas estridentes…

 Se acalentasse o sonho, de um eterno alvorecer,
se nascesse nas janelas
se morresse nas vielas
se se deixasse perder…

Se fugisse, se aparecesse quando deseja alegrar,
se desse a vida, a esperança, brando ou forte alumiar,
se se fosse para nunca mais voltar?

Se a luz da sua presença fosse uma porta aberta
se não sucedesse à noite condenando-nos à morte certa?

 Lindo menino de ouro,
requebro-me ao te avistar,
vai-te, mas vem depressa
 sem ti  a solidão é mais densa,
mais intensa qualquer dor.

domingo, 1 de setembro de 2013

As sopas da avó Ermelinda


Era uma mulher de aspeto, à primeira vista, rude e desleixado; dessas que se esquecem de cuidar de si para cuidar dos outros. As rugas já faziam pregas na pele torrada pelo sol impiedoso, embora não devesse na altura ter mais de cinquenta anos, um andar atarefado e enxuto como que a desincentivar conversa fiada. A sua figura, mediana e desenvolta era o pilar de uma família de cinco filhos verdadeiros mais uns quantos emprestados.
Durante muitos e muitos anos não me lembrei dela, mas agora que a passagem dos anos me levam a valorizar o repositório das memórias de infância, ela surge uma e outra vez sedimentando uma lembrança cálida e amorosa que jazia perdida, sabe Deus onde, pelos labirínticos caminhos da mente. Lembro-me da casa feita de tábuas de madeira com um pequeno acrescento onde existia um velho e sujo fogão, permanentemente, ou a mim me parecia, em funcionamento; era lá que se cozinhavam as sopas que alimentavam as muitas bocas que sempre pairavam por ali. Eram sobretudo crianças como eu e os meus irmãos que tantas e tantas vezes lá matávamos a fome : de comida e de carinhos… coisas que nunca faltavam. Ganha, aqui, contornos reais a fábula da multiplicação dos pães, sendo que no caso em apreço teria mais a ver com sopas: de legumes, de feijão, de café…
 Que saudades das sopas de café acabado de fazer numa velha e grande cafeteira amolgada onde ela deitava colheradas do pó, comprado  a granel, em cartuxos feitos de folhas de jornal. Gostava de vê-la mexendo a cafeteira, calcando as borras que teimavam em subir abanando os quadris, enquanto o aroma se espalhava pelo pequeno alpendre e eu esperava, olhos postos nela, pacientemente, por mais uma refeição. A avó Ermelinda, acabada de confecionar a frugal refeição, entrava na divisão principal espantando da cama os filhos que por ocultos motivos chamávamos irmãos numa salgalhada de laços familiares incompreensíveis; uns adolescentes tardios, cujo cheiro a chulé e a hormonas desreguladas impregnava o ambiente sendo mitigado, apenas, pelo aroma do café fervente servido em malgas onde boiavam pedaços de pão antigo.
Na ausência da verdadeira, esta avó emprestada fazia as vezes da outra  e ajudou a criar-nos sem fazer distinção entre nós e os próprios filhos; parece-me até que muitas vezes lhes tirou da boca alguns mimos porque já estavam quase criados – uns marmanjões, como lhes chamava – para me dar a mim e aos meus irmãos que éramos uns franganotes. Nestes tempos difíceis, faltava tudo menos a imaginação; recurso precioso para poder continuar a viver.

Aqui aprendi o valor das coisas simples que rareavam: o pão fresco e a manteiga, a carne e o peixe e lembro-me até que um dos meus sonhos de menina era ter um tanque de azeite para lá poder molhar o pão tal era a falta. Mas a coisa mais importante que aprendi foi a importância da generosidade e solidariedade que abundavam embora faltasse tudo o resto. A importância de fazer o bem onde ele for preciso, sem restrições, num entendimento profundo, quase carnal, que somos todos igualmente importantes, todos farinha do mesmo saco, trazendo dentro a urgência da vida. Sem esta avó eu não teria sobrevivido.