domingo, 8 de setembro de 2013

Passaporte de verniz

Sapatos, na minha infância, eram dos bens menos essenciais que existiam desses que só nos preocupamos em obter quando tudo o resto já está assegurado. Claro que para uma criança uns sapatos são bem mais do que simples proteção entre os pés e o asfalto pois os mesmos permitiam quase instantaneamente etiquetar alguém com o terrível “pobre” se eram tortos e desengonçados, quase sempre com o indício de futuros buracos no dedo do pé grande por serem usados para além daquilo que o crescimento do pé permitia, ou então a etiqueta tão desejada “aceite” se os mesmos ganhavam aprovação.
Não admira por isso que, sempre que visitava a minha tia e as suas filhas, que os laços familiares pretendiam ser minhas primas considerasse que eram ricas pois tinham sapatos bonitos; mais do que sapatos bonitos tinham os dos meus sonhos: uns sapatos pretos de verniz com uma tira a atravessar o peito do pé e que me daria o privilégio inesperado de ter com quem brincar no recreio numa inapropriada conjugação de fatores. Mais a mais tinham muitos mais brinquedos do que os meus sonhos, como se até à noite houvesse algum tipo de restrição na quantidade permitida.
Sendo eles o meu passaporte para ser aceite no colégio, pelo menos no meu entender da altura, é compreensível o grito de alegria que dei quando a minha tia disse que eram para mim porque a Helena, minha prima e legítima dona dos mesmos, já não os queria. Fiquei eufórica! Mas durou pouco a euforia porque bastou pegar-lhes para os experimentar para me dar conta de que estava longe de ser a Cinderela e coube-me o amargo de boca que devem ter tido as suas irmãs quando constataram que o pezorro com que Deus as tinha brindado lhes retirava a benesse de se casarem com o príncipe.
A minha tia não queria acreditar: « Como é que a tua filha tem o pé maior do que a minha dois anos mais velha?! Não me bastava ser pobre ainda tinha de ser pezuda? É por estas e por outras que me habituei a questionar o criador,  é que no fraco entendimento que me era dado ter das coisas, era suposto que quando o universo conspira juntando  alguém que é caridoso e alguém que necessita, pelo menos houvesse uma mãozinha de Deus a corrigir a merda que tinha feito, reduzindo alguns milímetros de pé, e deixar que eu pudesse usufruir de tamanha alegria, mas não, eu continuei pezuda e sem amigas para brincar no recreio.
Quis o destino que a minha madrinha tivesse uns quase iguaizinhos para me oferecer no natal. Mulher de posses, enchia-me de presentes quando lá ia a casa, mas teve azar comigo que lhe calhei em rifa porque sempre fui rebelde e orgulhosa, características imperdoáveis a quem é pobre, e sempre que a minha mãe me obrigava a ficar com ela nas férias adoecia de dar dó , causas somatossensoriais desconhecidas na altura, mas que a irritava deixando-a rubicunda de fúria. Não podendo vingar-se de outra maneira tirava-me todos os presentes no final das férias que me tinha dado no início e lá vejo, uma vez mais, escapar-me por entre os dedos a oportunidade de ser feliz.
Deste desgosto da meninice ficaram resquícios e penso dever-se a isso a minha tentação por sapatos de criança, tanto que quando os tamanhos permitem, ainda hoje, compro para mim modelos de criança pois permitem numa só toada acabar com dois traumas: a falta de sapatos na infância e o facto de ser pezuda.


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