terça-feira, 3 de setembro de 2013

Histórias de uma janela

Por detrás da pequena janela orlada a verde, um verde de tinta rasca, mas com um encanto assombroso, assomava uma pequena cabeça de fios prateados muito atenta ao que se passava em baixo. Sempre que  por lá passava, lá estava a cabeça como se tivesse existência própria, sem mais nada que a suportasse : sem corpo, sem membros, só uma cabeça. Nunca conheci o resto da dona, só uns olhinhos curiosos como se não houvesse no mundo nada mais importante do que observar as pessoas que passavam, os carros, esses monstros de metal que era suposto facilitarem-nos a vida, um gato preguiçando no umbral da escola infantil, onde bandos de crianças chegavam, enchendo de alegria a rua…
Uma velha e encardida cortina de renda grosseira de má qualidade preenchia o buraco negro de uma velha casa à antiga onde se podia adivinhar o cheiro a solidão e naftalina, numa combinação por demais usual, roçando uma lei física qualquer -  talvez a própria naftalina tenha na sua estrutura química algum componente que a par de afastar a traça, ajude também a afastar a outra praga maior, mas adiante. Um velho e escuro buraco, talvez o vislumbre de um vazio na alma, apenas preenchido por aquele tempo que passava à janela.
Não me lembro já a primeira vez que reparei nela, talvez num daqueles poucos momentos em que, embrenhados no nosso próprio eu levantamos os olhos do chão para contemplar outras paisagens, apenas me lembro de que achei uma perda de tempo aquele passatempo, um tanto ou quanto antiquado, de observar quem passa. Ignorância a minha, poderá haver alguma coisa mais proveitosa do que observar, sem ser observado, os nossos semelhantes?  
Comecei sem querer a ver pelos seus olhos:  o que pensaria de mim, ao ver-me olhar de esguelha em vez de diretamente, sem subterfúgios, o meu reflexo no espelho para ajeitar a indumentária; um par de turistas de mochila às costas, faltando a uma em curvas o que sobrava na outra completando-se numa harmonia perfeita; uns sapatos de salto alto gingando com a dona em cima, perigosamente, equilibrada dando ao andar uma vaidade sem motivo e fazendo balancear as bolas vermelhas da blusa; uma negra de cores garridas vestida criando uma simetria de cores perfeita, apenas interrompida pelo leve coxear… sempre sem querer apanhei-lhe o mesmo vício.
Pelo que foi uma tristeza quando a cabeça desapareceu no buraco negro fazendo morrer a janela provando o sucedido umas tábuas brancas e carrancudas, a fazer as vezes da lápide, fechando hermeticamente lá dentro todas as histórias que a cabeça nunca se deu ao trabalho de contar ao mundo.

A única lembrança de que algum dia lá habitou alguém foi a cortina, velha testemunha das histórias observadas, ligeiramente afastada para um lado, como se uma mão fantasmagórica ainda a segurasse para que uns olhinhos curiosos observassem o mundo de uma pequena abertura, mas com enorme alcance…













(imagem do artista Melro)

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