sexta-feira, 30 de maio de 2014

Oferecias rosas

Massajo-te os pés cansados de não andarem. Não andam há  tanto tempo sem que estejas agarrada a mim! Já andaram tanto… Gostavas da Praça do Chile, bem mais longe de casa, mas gostos não se discutem. Compravas lindos ramos de rosas que oferecias às vizinhas que agradeciam atirando-nos para o quintal restos de bolachas já rançosas que ninguém comia... essas não nos deixavas comer: “pensam que somos miseráveis” e atirava-las ao lixo, destino que já lhes estava reservado há muito. E lá continuavas a comprar-lhes flores, não sei por que motivo; isso era lá contigo. Dava-te prazer e isso não se discute. Saías de manhãzinha, quando estavas bem disposta, calcorreando meia Lisboa para lhes levares flores. Hoje, os teus pés já não andam, já não se cansam das caminhadas, mas de estarem parados, por isso os massajo e enquanto massajo penso. Às  vezes  as vizinhas até tinham medo que lhes pedisses alguma coisa, tão pobres que éramos… acho até - hoje que sou mais desconfiada das boas intenções das pessoas -  que, por vezes, nem te abriam a porta para receber as flores. Mas tu nada querias, só oferecer as flores, escolhidas com todo o amor : “esse raminho bem jeitozinho que é para oferecer” e já antecipavas o prazer de as dar, nem que isso nos retirasse à boca alguma iguaria. Mas, prazer não se discute. Esse era o teu maior prazer, e quando o dinheiro não chegava “ vá lá, pago-lhe para a semana, preciso mesmo de oferecer estas rosas”  a vendedeira, que já te conhecia a honestidade, deixava com prazer que lhe ficasses a dever as rosas que nunca compraste para ti, mas para as vizinhas que nos atiravam algumas bolachas envelhecidas que lhes estavam a estorvar na prateleira. Enquanto te massajo os pés, relaxas, apreciando o momento; sem mais nada pedires, e eu que ainda não entendo como podes viver há tanto tempo nessa condição tenho um vislumbre de que poderá ser simplesmente porque cada pequeno momento bom, por mais pequeno que seja, é vivido com a máxima intensidade.

Maria João Varela

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quinta-feira, 29 de maio de 2014

A coruja e a cotovia

Vieste das noites eternas
Bater de asas silencioso,
Leve brisa a tua presença.

Não sei se apareceste
Ou se apenas te imaginei
Tua é a noite, meu é o dia,
Assim seremos, tu coruja, eu cotovia.

Que desencontros perenes!
Feitiços de encantar,
É preciso que se vá a lua 

Para que o sol possa brilhar.

Infinitamente sós,
Quisemos juntar os voos
Iludimos o destino.
Desencontro eterno
A noite é tua meu é o dia,
Feitiço maldoso
Tu coruja, eu cotovia.

Maria João Varela



Desculpo-te... mas não sejas feliz sem mim.

Um pedido de desculpas? Claro que sim. Um pedido de desculpas devem-me todos aqueles que amei – ou ainda amo – e não me amaram - ou amam a mim… mas depois, de que servia: “desculpa lá, mas não te amo” , não servia de muito, não é? Deveriam pedir-me desculpa por eu pensar neles, por chorar por eles, por sentir saudades deles, mas de nada me serviria que pedissem. Por isso não me devem nada. Deveriam pedir-me desculpa por se instalarem na minha vida, fazerem-me perder tempo, invadirem-me as noites de pesadelos e os dias de solidão e depois não aparecerem, nem um telefonema dão. “ Desculpa lá, mas não penso em ti”. De que serve isso? De que serve sermos os únicos a quem a natureza ludibriou obrigando-nos a pensar em quem não pensa em nós? Só serve para que desejemos ardentemente fazer parte dos pensamentos daqueles que fazem parte dos nossos. É que nem é preciso mais nada, só isso, mas não; tínhamos logo de ser nós os tramados, aqueles que por não vigiarmos as portadas deixámos que se instalassem na nossa mente aqueles que não nos deixaram entrar a nós na deles; ou, pior ainda, deixar-nos entrar até deixaram, mas na primeira oportunidade despejaram-nos como se não pagássemos a renda. E isso é indesculpável. Mas de que serve um pedido de desculpas: “ desculpa lá, mas entrei-te por aí dentro sem te pedir  e agora não me quero ir embora, mas não te vou deixar entrar a ti, está bem?” “ não faz mal, sê lá feliz.” Mas no fundo não queremos. Vê-lo rir, estar alegre, viver a vida e nós ali a um canto a chorar baba e ranho pelo ser amado que não nos ama, nem pensa em nós. Como poderíamos querer que esse ser fosse feliz? O que nós queremos é que ele sinta o peso da nossa falta como nós sentimos a dele, que chore e sofra todos os horrores que nós sofremos, que se sinta invadido de noite e de dia, que haja sempre uma incompletude nos seus dias como há nos nossos… “desculpa lá isso, não mandamos nos sentimentos” “ claro que não, vai-te lá embora e sê feliz” gostaríamos de poder dizê-lo, até temos boas intenções e tudo e falamos com convicção, mas quando não volta, não vem mais, não telefona e vive feliz sem nós, eh, pá! Isso dói como o caraças.
Maria João Varela 


quinta-feira, 1 de maio de 2014

Não gosto de trabalhar

Não gosto de trabalhar. Curiosamente também não gosto de estar sem fazer nada e ainda menos dos divertimentos ou distrações comuns. Divertimento é sinónimo de esquecimento, alienação, irreflexão e é um dos males principais das sociedades modernas. Este sistema bem montado do capitalismo tem no divertimento um dos seus aliados mais preciosos pela capacidade que este proporciona para que os indivíduos esqueçam a sua condição e que saltem de um trabalho mal pago, isento de qualquer autonomia, onde estão alienados do próprio produto do seu trabalho, diretamente para o caldeirão do divertimento. Vemos então seres humanos que durante 5 ou mais dias vivem alienados por um regime de trabalho usurpador da sua dignidade, um regime de trabalho explorador e estuprador e durante o fim de semana vive alienado por um conjunto de atividades alienatórias de cariz  lúdico e, bastas vezes, grosseiro que intenta contra as capacidades cognitivas e criativas do ser humano.
Este é um sistema bem montado. Tem a sua componente cognitiva que se manifesta através das crenças que partilhamos, das expectativas que alimentamos e daquilo que valorizamos. Assim, temos quem nos diga o que devemos valorizar ou desprezar; aquilo pelo qual vale a pena lutar ou não e os valores orientadores da nossa ação. Tem uma componente emocional que nos ensina o que amar e o que odiar, e uma componente comportamental com o seu conjunto de normas e regras pelas quais orientamos o nosso comportamento. Valorizar o trabalho, mesmo que o mesmo seja mal pago e claramente abusivo da nossa integridade e dignidade é das mensagens mais disseminadas, daí que quando eu digo não gostar de trabalhar olhos incrédulos se viram para mim, bocas estupefactas se abrem fazendo-me crer alguma heresia ter a minha boca proferido. Mas se pensarmos bem,  gostar daquilo que nos escraviza é que deveria ser uma heresia…
 Somos inseridos neste modelo desde que nascemos, por isso, tantas vezes acreditamos nas mentiras que são perpetuadas de geração em geração. Eu tive a sorte e o azar de não ter sido tão aculturada como a maioria. Saí muito cedo da escola e todo o meu percurso escolar foi feito já na idade adulta, daí que muito do meu pensamento, esculpido por grandes obras literárias que fui sempre lendo, já estava formado e, consequentemente, não poderia já ser uniformizado ou estandardizado. Por isso sinto-me na liberdade de dizer que não gosto de trabalhar; gosto de criar. Acredito que as mulheres e os homens são criadores potenciais e o trabalho como está organizado, dentro deste modelo capitalista e explorador, corta as asas a esse potencial. As crenças que nos inculcam vão muitas vezes no sentido contrário, fazendo-nos duvidar das nossas capacidades, fazendo-nos conformar com uma vida em que somos alienados do produto do nosso trabalho, onde nenhuma decisão a respeito dele nos diz respeito – para onde vai esse produto, como o produzir e em que condições – onde o próprio valor que nos é pago é claramente inferior ao justo. Nós temos muitas capacidades que nunca verão a luz do dia – que infelicidade! Desde logo porque na escola só são medidas e valorizadas certo tipo de capacidades que servem o modelo exploratório e produtivo. A própria inteligência medida através do QI  só mede uma restrita gama de capacidades humanas como tão bem explicou Gardner  no seu modelo de inteligências múltiplas – ao todo 8 -  ou Stenberg no seu modelo triárquico da inteligência.
Acredito que todos os seres humanos têm capacidades inexploradas e talentos escondidos, dos outros, mas mais grave ainda de si próprios. Acredito, ainda, que todos os seres humanos nasceram para ser livres e desenvolverem o seu máximo potencial e que, só assim, poderão ser verdadeiramente felizes.
Por isso, neste primeiro de Maio, só desejo que todos os seres humanos façam um esforço no sentido de procurar os seus talentos e desenvolvê-los para que, aos poucos, as gerações vindouras tenham nessa atitude o exemplo a seguir e não deixem que façam deles mera carne para alimento do capitalismo selvagem que enforma o nosso pensamento. Esse empreendimento gigantesco não se coaduna muito com o tipo de atitude que nos é característico, ou seja, alienarmo-nos através do divertimento, viver consoante a máxima : PÃO E CIRCO!

Maria João Varela