sábado, 26 de outubro de 2013

Avô

Sentavas-te a meu lado e nada dizias, talvez só por vezes te saíssem as palavras: “Minha carochinha” num amansar da alma carinhoso enquanto me asseguravas ser a tua neta favorita de entre nove; nada mau, pensava eu enquanto te olhava a figura pequena onde transparecia uma alma enorme que abarcava a minha curta vida. Tinhas sido mau, diziam-me, quando te entregavas à bebida, mas eu que não vi, nunca acreditei nas más línguas, ou talvez não quisesse acreditar que pudesses ter desvarios e tivesses com eles maltratado alguém; logo tu, o mais doce que jamais conheci. Coisa engraçada essa da minha vida, os parentes fingidos são os que mais gosto pois diziam-me que não eras mesmo meu avô de sangue. Que importa isso? Para sempre recordarei o teu sorriso, e a tua ternura perdurará nas lembranças de alegrias raras numa infância maltratada .  O homem da casa era ela, a minha avó, habituada aos rigores dos  verões alentejanos, rude e sem carinho tinha-me chamado “o trambolho” quando a mãe lhe dissera estar grávida de mais um filho sem pai. Ela dera-me o sangue,  tu a alma. Recordo os risos ao dizeres que tinhas entrado no Portugal dos Pequenitos sem pagar bilhete porque te confundiram com um garoto, baixaste a cara e só viam a tua figura de miúdo reguila que libertava depois gargalhadas quando te punhas a contar essas piadas. E bem lembro que ao longe também eu te confundia com um que a avó trouxesse pela mão para nos fazer uma visita, numa das raras ocasiões que se libertava da vergonha de ter uma filha doente e cinco netos de três pais diferentes e nos entrava porta adentro com o ar de tudo querer pôr em ordem, e não é que ela fosse maior do que tu avô, mas era a postura, a força daquela personalidade dura e rude que te fazia parecer ainda mais criança. Como se deixava ela guiar por ti montada na  lambreta na qual passeavam por toda a Espanha estou eu para saber, só sei que as raras ocasiões das visitas coincidiam muitas vezes com a chegada de onde era comum trazer sacadas de caramelos para adoçar os beiços e quando te sentavas e me acompanhavas nas guloseimas com algum chupa- chupa na boca, nem eras para mim um adulto, quanto mais um avô, eras simplesmente um amigo, uma outra criança que partilhava um doce às escondidas enquanto os adultos se entregavam a assuntos mais sérios. Só repetias: “ Minha carochinha”. E as palavras adoçavam mais do que o caramelo que tinha na boca…


segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Saboreia-me

Saboreia-me
como se eu fosse  chocolate,
em lentas lambidelas para me extraíres o sabor;
como faz o colibri nas pétalas da flor
como quem não quer parar
sem todo o  doce acabar.

Beija-me, encanta-me,
com lábios de sofreguidão,
mas sorve-me  gota a gota e se o prazer se esgotar,
fecha os olhos e sente,
que mesmo sem estar presente deixo-me saborear.

Não te apresses,
vai descendo lentamente  
e deixa que o sal da pele tempere o amor crescente,
sente um pouco de cada vez…
Sente o calor aumentar numa onda,
num suspiro, num vaivém ondulatório
em vibrações de prazer
que só sente quem espera o momento
em que o arrebatamento se impõe
e deixa de fazer sentido a espera.

Enrola-te a mim devagar,                                                
vai chegando e num abraço apertado
cura-me a dor do mundo
para dele me desligar;
sente o pulsar ritmado,
vê-me os passos inseguros vê-te no meu olhar.

Que te dizem os meus olhos?
Que não te escondem segredos,
que te aguardam em degredos
 com medo da solidão que se instala
 sempre que é longa a espera.
 E os sentidos? Sem o teu aroma, o teu cheiro
que se espalhava pelo quarto
são inúteis, vãos, efémeros,
foram-se, aliás; correm ao teu encalce
deixando-me a mim para trás.


domingo, 13 de outubro de 2013

Onde para o amanhã? ( Contos de luz & trevas)



Pegou-me na mão e com uma voz poderosa ordenou: “Escreve!”. Olhei em volta, mas não consegui ver a origem do som, aquele som metálico que com estalidos assustadores me dava tal ordem, nem tampouco avistei quem me pegava na mão que obedientemente começou a gatafunhar primeiro a medo, depois com uma fluência de torrentosas palavras que assustava, uma verborreia assim não era comum, mas assenti ouvir e contar a história que a voz tanta necessidade tinha de contar, deixei sair pelas pontas dos meus dedos as palavras que se lhe soltavam como se soltá-las fosse a missão da sua vida.
                                                             
                                                                    *
Assomou à janela, mas o cenário devastador impeliu-a com violência para dentro. O primeiro a ruir tinha sido o farol, a falta da sua luz orientadora tinha sido a primeira manifestação da catástrofe iminente e sem que nada pudesse fazer Inês viu-o desmoronar levando atrás todas as outras coisas até ali importantes, imprescindíveis mesmo, para continuar a viver. O céu cinzento de inverno e o gelo que lhe ameaçava os ossos frágeis obrigaram-na a voltar a enrolar-se na cama, os caminhos labirínticos estavam cada dia mais intrincados e sem o farol jamais conseguiria sair dali. Também já não tinha importância, sair para onde? Para quê?  Sem encontrar sentido nas próprias questões que ficavam sem resposta e com um cansaço que se origina só no próprio ato de pensar fixou o olhar sem brilho no teto e assim ficou sem nem mesmo saber as horas ou os dias que se sucediam numa cadência igual, inúteis e lentos, todos seguidos uns aos outros como contas de um rosário que alguém manuseasse entre os dedos num ritual de  oração repetitiva. Era como se o tempo e espaço fossem reticências perenes onde a vida aguardava a vez…
Ouvia os passos da  mãe pela casa e se pudesse sentiria pena dela, mas já nem isso era capaz. A compaixão já não morava dentro dela, aliás nem isso nem outra coisa qualquer, estava oca, tão oca quanto o tronco seco e infértil da velha árvore que jazia agora sem folhas no jardim abandonado que se podia avistar da janela, oca como todos os que a rodeavam estavam como se o que os preenchesse fosse o amor que outrora nutrira por eles; talvez que as cores, sabores e substância das coisas se adquira somente quando lhes dedicamos amor…
Sem o farol andava, andava , mas só em círculos viciosos e voltava sempre ao ponto de partida sendo que a cada volta dada era uma profecia autorrealizada do insucesso da viagem: jamais conseguiria sair dali, não sabia como lá tinha ido parar, mas também não tinha importância, jamais voltaria a ter amanhã para caminhar… então, sendo o esforço em vão e o cansaço que acompanhava cada tentativa extremo, a cada viagem  que falhava mais desanimada ficava.
A mãe, por estes dias, esforçava-se por lhe trazer todos os petiscos que sempre lhe tinham agradado, por lhe aromatizar o quarto, pôr música suave, dava-lhe carícias prolongadas e trazia-lhe livros que se iam amontoando na mesinha de cabeceira juntamente com a comida que não comia porque sabia a papel e era áspera arranhando-lhe a garganta. O mundo já não era mundo, nem havia qualquer substância nele pois o sol tinha morrido e só o cinzento e o frio se espalhavam sob a pele insensível às carícias e entranhava-se nos ossos e na própria alma. Porque a acarinhava a mãe, pensava Inês, não saberia que ela não poderia sentir as carícias pois flutuava agora sem substância numa contradição aparente onde, aqui, era precisamente a falta de matéria que lhe pesava como chumbo?  Como poderia o nada pesar desta forma paralisando-lhe os movimentos que se tornavam trôpegos e inúteis?
Ouvia, por vezes, vozes distorcidas que lhe chegavam de muito longe como se fossem vozes sem dono, sons insignificantes, mas que pareciam martelar-lhe o cérebro :
- Ela está muito mal, mal, mal, mal… tem de a obrigar a comer, é urgente, urgente, urge… que se interesse ou deseje alguma coisa. É urgente que ame, só o am…or a poderá salv…ar. Não precisa ser amor romântico, pode ser amor a um projeto, uma paixão, paixão, paixão, …xão qualquer. Continue a dar-lhe a medicação.
Seguidamente ouvia o choro baixinho da mãe, os passos arrastados pela casa e uma emoção de desesperança invadia-a. Porque estava ainda ali? Porque se arrastavam os dias sem esperança?
Tinha sido uma rapariga cheia de vida e projetos com uma força de vontade incrível.
 - Mamã, vou para a faculdade.
 - Tens média para entrares, filha? Olha que as nossas posses não são muitas não te conseguiremos pagar as propinas, a privada é impossível só se entrares na pública.
 - Não te chateies com isso, mãe. Sou eu que quero, tenho de lutar por isso.
Ia e fazia. Era assim, não havia entraves nem obstáculos capazes de a impedir. Tinha uma luz, um caminho, tinha um futuro…
A energia que exalava influenciava os que privavam com ela, sempre disposta a fazê-los acreditar nos sonhos, a nunca desistir sem tentar.
Saía para grandes caminhadas depois de vestir a indumentária dos artistas, colocava os olhos de poeta para observar a própria essência das coisas não sem antes se aperaltar com o espírito de turista sempre curioso e atento a tudo o que se passa. Voltava tarde depois de ouvir o marulhar das ondas no seu monólogo perpétuo, de observar o voo picado das aves, mas voltava sempre rejuvenescida, serena e confiante. Não naquele dia de finais de Abril, um dia que tinha amanhecido a ameaçar chuva, mas sem que a mãe a conseguisse demover da caminhada pois como ela própria tinha referido queria ser castigada pela chuva, cheirar a terra molhada e a hortelã e viver como se não houvesse amanhã, tal como os insetos que só vivem um dia. Já tinha anoitecido há muito quando a mãe conseguiu convencer o pai a sair à sua procura:
 - Ela nunca tarda tanto, vai lá homem e traz-me a pequena.
   - Qual pequena qual quê? Já sabe bem o que faz, deixa-a estar e que venha quando quiser – replicou o pai coçando um bigode de vassoura que parecia ter sido pintado com uma pincelada distraída de algum artista amador sem experiência pois a alvura exagerada dava-lhe um ar de caricatura. A mãe não o deixou descansar os ossos e obrigou-o a sair de lanterna na mão montanha acima à procura da filha. Só ouviu a ambulância umas horas mais tarde a subir a ladeira quando a ralação já lhe carcomia as entranhas por tardarem as notícias. Inês  tinha sido encontrada seminua, encharcada até à medula e semi-inconsciente. Os indícios eram de ter sido violada e torturada. Estava em estado de choque só  tremia muito e agarrava-se ao pescoço do pai com um grito de desespero travado na garganta.
Nunca falou do sucedido, disse sempre de nada se lembrar e o médico do hospital tinha dito que muitas vitimas sofriam de amnésia após um trauma daquela natureza. As palavras que não disse pareciam querer sair-lhe por todos os lados menos pela boca: pelos olhos que perderam o brilho, pelos membros que perderam tonicidade e consistência, pelos cabelos baços e quebradiços e a pele sem viço. A  inercia instalou-se e nunca mais teve alegria. Deixou a faculdade, deixou os amigos que a pouco e pouco iam desistindo de lhe ligar para saírem; mergulhava cada vez mais fundo nos terrores que trazia dentro e a cama era o único e último lugar onde permanecia longos dias e noites sem pedir nem querer nada anunciando um desfecho trágico para tanta juventude que se tinha perdido há pouco mais de um ano atrás. Nenhuma medicação parecia surtir efeito, a mãe até desconfiava que não a tomava avessa que sempre tinha sido a químicos que como sempre dizia nos tornam escravos das indústrias farmacêuticas que açambarcam chorudas quantias à conta da nossa falta de ponderação . E não comia. A mãe lá conseguia a custo que bebesse alguns sumos nutritivos, mas a boca cerrava-se-lhe para tudo o que fosse comida consistente e o corpo outrora de porte atlético devido ao desporto que sempre teimava em praticar era agora uma sombra pouco fiel da figura do passado recente.
O pai um dia na brincadeira tinha-lhe dito que nunca arranjaria namorado pois os homens gostam de mulheres femininas e frágeis e ela tinha os músculos bem torneados e desenvolvidos pela prática persistente e consistente de desporto pelo que ela respondia que também não lhe interessava um cobarde qualquer; tinha de ser bem homem aquele que conquistaria o seu coração.  Seria como ela, amante dos desportos e de metas, amaria a justiça e honestidade e acima de tudo amá-la-ia preenchendo-lhe as lacunas e dando-lhe existência como só um grande amor é capaz.
Todos esses sonhos tinham ficado lá atrás, perdidos nos labirínticos processos mentais e já não faziam parte nem do passado nem do presente, enredado que este estava agora e que se desmoronava trazendo atrás todos os castelos e príncipes e princesas que lá tinham habitado, desmoronava-se também a esperança de um curso superior em belas artes onde desenvolveria a sua vocação de artista capaz de ver para além do que os olhos veem e do que os sorrisos disfarçados encobrem; mesmo o futuro que sendo impalpável e inexistente é crucial para que exista algo mais que uma verborreia corporal a indicar que estamos vivos, essencial para que façamos uma pequena ideia para onde nos encaminharmos e como um clarão nos indica o caminho, tinha desaparecido. Esse amanhã sempre presente para que possamos viver e sonhar tinha-se desmoronado em primeiro lugar por não ser possível acreditar num  mundo onde as pessoas não são pessoas, mas monstros à espreita para nos devorar, onde sendo primavera ou verão os invernos são contínuos e o ar rareia, onde só faz frio, onde o sol se foi deixando um breu eterno no seu lugar, onde os pássaros não cantam nem têm asas para voar, num lugar desses não pode haver amanhã porque pensá-lo é já vivê-lo com todos os seus terrores à espreita, assim onde havia amanhã existe agora um  presente perpétuo , horrendo e incompleto para viver.
Eram esses pensamentos que assombravam a mente de Inês nesses dias e noites que passava inerte só à espera que o terror passasse enquanto se adensava, enquanto a mãe se arrastava sombria e angustiada pela casa e o pai definhava de impotência. Ah, se ele soubesse quem tinham sido os autores de tamanha barbaridade, encarregar-se-ia ele próprio de os degolar; mas a sua menina nada dizia apenas morria aos poucos, soçobrava como um navio naufragado que apenas serve de poiso às gaivotas.
Acordou Inês sobressaltada naquela noite e uma força que parecia surgir do nada, porque ainda não comera, fê-la precipitar-se escadas abaixo e sair para o frio da madrugada. Surgia uma luz muito ténue que parecia emergir dos confins da terra e que a convidavam a sair do labirinto que tantas e tantas vezes tinha pretendido atravessar sem nunca o alcançar. Tateou o caminho e tropeçava a cada passo, mas persistia com uma réstia da determinação de outros tempos, caía e as roupas rasgavam-se nos galhos secos dos arbustos que circundavam a casa. Os ruídos noturnos assombravam-lhe as memórias e num relampejo de consciência viu a nuca aterrorizadora do seu violador. Fraquejou aterrorizada, mas ouvia a voz que serena, mas firmemente a incitava a continuar o caminho que ia subindo agora com o algoz ao seu encalce. Corria agora mais depressa e as pedras debaixo dos pés descalços feriam-lhos enquanto o som longínquo de uma coruja a fazia tremer. Embrenhava-se mais e mais no ébano bosque com a crescente visão de uma luz ao fundo e qual inseto que se deixa seduzir, prosseguia com o coração descompassado pela corrida, os cabelos baços dos meses bolorentos que tinha passado sem sair agora desgrenhados e emaranhados pelo vento e pela corrida, tropeçava mais e mais mas mantinha a visão da luz que parecia crescer. Olhava em volta e os olhos habituados agora à luz noturna vislumbravam perfis de figuras fantasmagóricas e quando a vontade de voltar para trás, para o porto seguro dos braços da mãe era maior do que a vontade de chegar ao farol uma voz calma e quente orientava-a com segurança para a liberdade. Os passos do perseguidor faziam-se ouvir como se viessem de um tempo já passado que se tornasse presente num gesto inusitado de prestidigitador, martelavam o chão num som que ecoava do passado para o presente e à medida que se aproximava um cheiro intenso ia-lhe ofendendo as narinas, um cheiro acre e nauseabundo penetrava-lhe as entranhas que se dilaceravam na aproximação do perigo iminente e somente aquela voz, qual sopro de anjo lhe assegurava que continuar era o melhor a fazer.
Repentinamente um clarão de luz, intenso e vibrante que quase a cegava fê-la ver o rosto quase desfigurado da figura ameaçadora que se tinha aproximado o suficiente para que  a visse e que  tinha durante tanto tempo perseguido sem se deixar ver. Era um rosto grotesco, assente num pescoço gordo e seboso de verdugo, pele castigada por mil sois, um lábio leporino e uns olhinhos de rato de esgoto; as mãos calejadas das muitas labutas rasgavam-lhe as roupas com sofreguidão enquanto a figura se ia adensando e  consubstanciando na figura dos terrores noturnos que nunca se deixavam ver pela luz diurna. Era forte e tinha-a dominado sem dificuldade, deixava sair pela boca deformada uns grunhidos que nada tinham de palavras.
De repente transformou-se em dois e depois três, multiplicava-se em visões meio distorcidas e ria descontroladamente com uns dentes de hipopótamo amarelos e castanhos  ponteados numa boca que subitamente se tornava atraente e a espuma de besta selvagem desaparecia para dar lugar a um rosto de jovem bem parecido e mais um e outro… As sombras fantasmagóricas tinham-se tornado nos rostos que eram agora nítidos, todos conhecidos seus. Riam muito, embriagados,  e investiam toda a sua fúria animal nela enquanto a apalpavam no corpo todo com dedos que a desvirtuavam invadindo-a sem consentimento.
Inês tentou levantar-se e fugir novamente mas os ramos secos tinham-se transformado em garras que lhe agarravam os braços, rasgando-lhe a roupa deixando os seios jovens descobertos que ela tentava tapar,  arrancaram-lhe as calças e cuecas de uma só vez e sentiu-se penetrada com violência uma, duas, dez  vezes, milhões de vezes… O seu corpo agora era a encarnação de todos os corpos e todas as violações que já tinham acontecido e que viriam a acontecer consubstanciavam-se nele e já não havia fronteiras entre ela e todas as violadas, eram uma só, e essa jazia submissa completamente dominada. (Os médicos que posteriormente a tinham observado no hospital tinham dito que devido à violência do ato não poderia nunca ter filhos.)
E de repente começaram a surgir mais, uns velhos outros jovens, alguns bem vestidos, outros esfarrapados; eram todos bestas do inferno, mas eram todos os violadores que já alguma vez tinham existido ou que viriam a existir. Por fim, começou a vê-los de lado, por trás, do avesso e lançavam centelhas vindas do interior e ela conseguiu vislumbrá-los por dentro e conseguiu enxergar que também eles de alguma forma eram vitimas… Inês sentia-lhes o arfar, a transpiração deles na pele dela e o nojo fê-la vomitar e engasgar-se no vómito fazendo-os sair de cima dela  não sem antes a deixarem quase inconsciente de dor ao espancarem-na enquanto gritavam barbaridades: « sua puta, tinhas a mania que eras boa, não eras para mim, aguenta-te agora», os outros aplaudiam e numa galhofa pegada entravam e saiam dela deixando-a esventrada, maltratada em todas as dimensões em que uma mulher o pode ser, de dor e de humilhação, mas também de vergonha que a partir desse dia a perseguiu e fazia com que sentisse como se todos os holofotes estivessem focados em si, como se todos a olhassem julgando os seus movimentos e a desnudassem com um olhar ficando somente a mácula no lugar de vestido; por isso se escondeu e não mais ergueu os olhos. Ficou também a culpa como se as vítimas tivessem uma propensão inexplicável para se culpabilizarem dando um prémio aos criminosos pelo crime cometido, transportam um fardo que não deveria ser seu carregando, qual canga, o mundo às costas, um peso que paralisa e torna tudo sórdido e mau.
 As capas pretas dos trajes jaziam num chão molhado da chuva que ia lavando todos os indícios do horrendo crime às quais se juntavam agora trajes de polícia, bombeiro, advogado, professor, padre e todas indumentárias possíveis de imaginar… trajes de gente comum como o são quase todos os violadores.
A luz que a guiara até ao terror de todos os terrores aumentava e Inês levantou-se agora estranhamente mais calma e recomeçou a correr enquanto os soluços que tinham ficado presos na garganta saíam agora livremente sacudindo-a enquanto a libertavam, os olhos deixaram a primeira lágrima tímida cair abrindo espaço para que agora caíssem grossas umas por cima das outras inundando-lhe as faces e lavando-lhe a alma torturada; corria cada vez mais perto da luz que surgia com um brilho intenso e ouvia a voz , a mesma qua a tinha guiado para os seus pesadelos profundamente enterrados e recalcados, ouvia-a surgir no meio mesmo da luz para onde se precipitou caindo num abismo  para o qual  não hesitou em saltar para ir de encontro a ela. Sentiu-se mais liberta do que nunca enquanto caía no abismo rodando, rodando, os soluços ainda desprendendo a dor acompanhados das lágrima e uma voz que lhe dizia  agora com estalidos metálicos que estava a missão acabada.
- Foi muito bem Inês, muito corajosa. Agora descanse.

                                                              *
O meu rosto iluminou-se um pouco ao reparar que o meu corpo se encontrava menos oco, assim como o da minha mãe, que ensaiava um sorriso tímido no canto do quarto:
 - Vais ficar bem meu anjo, agora descansa.
Tinha envelhecido muitos anos num só, amarrava o cabelo com desmazelo para que lhe desse maior liberdade de movimento, as rugas que antes apenas se insinuavam eram agora regos profundos que o sofrimento tinha sulcado nela e os olhos estavam vazios de alma como estão todos os olhos de quem não espera nada do amanhã. Tinha encurvado e o corpo franzino parecia querer encontrar-se com a terra numa entrega ou rendição total como se lutar fosse despropositado.
 Levantei-me um pouco cambaleante e assomei à janela para presenciar um cenário tantas vezes ignorado: o jardim florescia numa manhã linda de primavera, a árvore, uma velha nespereira que me parecera morta estava carregada de pequenas flores esbranquiçadas e o sol tinha voltado dando-me  apetite para lhe beber sofregamente umas quantas gotas.
Aos poucos com a ajuda da terapia fui reconstruindo o mundo que me tinha sido roubado, voltaram os castelos, príncipes e princesas que talvez já não tivessem tanta candura, mas sorriam com sinceridade, as papilas gustativas começaram a dar os primeiros saltos, depois de muitos meses, pela excitação de voltarem a sentir os sabores que se intensificaram pelo longo tempo de hibernação, voltei a ver e sentir o sol que com uma caricia tépida me faz sentir viva, voltaram os sons de sempre, a voz dos meus pais agora menos angustiadas, e principalmente começaram a desfazer-se os labirínticos processos mentais que me faziam desejar morrer sem saber porquê sentindo-me perdida para sempre num caminho que se desenrolava e voltava a enrolar em sucessivos círculos concêntricos vindo sempre ter ao início sem levar a lugar algum, onde sentimentos de impotência e desmerecimento embotavam a viagem.
Depois de muito tempo sentia o peito respirar sem o chumbo habitual que me acinzentava e pesava o ar que entrava agora livremente e à medida que  me ia amando de novo e ganhando consistência, largando a forma oca que durante os últimos meses me tinha caracterizado, tornava-me também mais leve e menos opaca. Também todos os outros à minha volta, amados que eram agora ficavam preenchidos pelo amor que recomeçava a surgir. Os monstros que me povoavam os sonhos desapareciam também tornando o amanhã numa espera aceitável.
O presente já não era apenas construído pulsação a pulsação em milésimos de segundo separados uns dos outros como se se unissem sem nenhum propósito além de manter vivo um corpo que não o queria estar, estava unido por finos fios de seda diáfanos  a um passado que se ia curando, um ontem repleto de sofrimento, mas que à medida que era obrigado a emergir das profundezas ia perdendo  a tonalidade aterrorizadora,  e a um futuro, que se ia desenhando no horizonte, um amanhã que trazia a promessa de ser irrepetível. Renascia.  Via surgir novamente a beleza que só existe para quem consegue vislumbrar para além do hoje, o prelúdio do amanhã que nunca existindo como realidade existe como um pensamento imanente que orienta e dá entusiasmo para um caminho que será percorrido sempre no presente; o velho farol lá estava, como sempre estivera, indicando- me que apesar de tudo haveria amanhã…
                                                              *
  Podes descansar os dedos não te vou importunar tão cedo – disse-me a voz cujo som não era, como de início, tão duro nem os estalidos tão assustadores.  – Cumpriste a tua missão, mas nunca mais voltes a calar o teu passado . Assenti agradecendo à voz que me tinha libertado de uma existência negada, cujos contornos se revelavam agora menos sombrios e, acima de tudo me tinha libertado de uma culpa que não era minha, mas que tinha transportado comigo durante todo este tempo. E a vergonha? Sim, porque tinha vergonha. Uma vergonha que me corroía a alma e ensombrava os dias que me faziam querer fugir de um corpo cujo estigma me acompanhava onde quer que fosse. Ah, se ao menos fosse possível livrar-me dele nem que por instantes. Mas não, não era possível. Ele não era descartável. Ele era eu, a minha própria essência estava da mesma forma manchada.
As folhas escritas estavam espalhadas pelo chão do quarto, ainda húmidas das lágrimas que se soltaram, limpando a tortura, dos meses, ou seriam anos?
Respirava agora com uma leveza desconhecida para mim – ou pelo menos esquecida – e todo o peso do mundo que transportava aos ombros tinha aliviado à medida que mais e mais palavras iam saindo pelas pontas dos dedos, ditadas por uma voz que tinha conseguido calar, mas que só esperava uma oportunidade em que a vigilância enfraquecesse para poder sair, não pelos lábios, mas pelas palavras que tinha garatujado, deixando agora o testemunho de um ato, muitos atos,..

















                                    FIM





sábado, 12 de outubro de 2013

Mulher

Sou terra fértil onde o amor nasce 
e a ternura dá lugar à ânsia de poder;
sou serena e em cujo regaço descansas
e esqueces os dias desenfreados.
Sou a cor dos teus dias,
as pétalas frágeis e viciosas de uma papoila selvagem.
Sou livre e rebelde na minha doçura,
sou montanha que resiste suave e firmemente às intempéries;
sou aquela onde te refugias
das tuas lutas vãs.
Sou mar revolto, mar assassino
para quem se atreve a surfar,
mas sou ondulação suave
para que possas navegar.
Sou aurora; prelúdio de dia,
sou noite vadia e arisca; sou mulher…


domingo, 6 de outubro de 2013

O comboio aos quadradinhos

O comboio de gente pequena lá ia seguindo a rua que desemboca na praça 8 de Maio ora de carruagens mais alinhadas, ora menos, mas seguia em frente enquanto as pessoas que se encontravam no apeadeiro, maioritariamente turistas,  chegavam e açambarcavam as ruas com os seus artefactos preferidos: mochilas, máquinas fotográficas, chinelo no pé e chapéus de abas largas; eu passava e já vinha há algum tempo a apreciar as carruagens que, de quando em vez, descarrilavam. Estas pequenas criaturas atraem-me e gosto de vê-las duas as duas, entrelaçadas as mãos por uma qualquer ordem superior que acatam sem questionar. Nem todas as ordens são acatadas com a mesma solicitude, pelo menos não por todas as crianças e as educadoras lá vão tentando metê-las nos carris enquanto lhes ajeitam os chapéus, de uma só cor, como que a indicarem ser seu dever pensarem todos igual.
Destacou-se uma menina que lá seguia mão na mão com o seu par, mas que já desde o início da rua era difícil manter na linha e era ela que fazia descarrilar o comboio de carruagens aos quadradinhos azul e rosa como os bibes; puxava o seu companheiro e fazia os cabelos da educadora eriçarem-se de irritação, mas por mais que esta lhe ralhasse, volta não volta lá voltava ela a meter o pé na argola e como ia nas carruagens da frente lá se contorcia o comboio que agora mais se assemelhava a uma lagarta vaidosa que saracoteasse  as ancas se as tivesse.
Eu diminuía a velocidade para apreciar esta gente em miniatura e deliciava-me com as suas contidas traquinices e com o talento especial das educadoras para não deixarem que o apeadeiro e todos os que lá se encontravam impedissem a passagem do comboio mais extraordinário que alguma vez foi visto.
Mas eis que a menina dá mais um puxão ao seu parceiro de viagem fazendo pela enésima vez com que a lagarta gigante aos quadradinhos meneasse os anéis e que os que seguiam atrás esbarrassem uns nos outros proporcionando-me, assim, apreciar o mais subtil e precoce indício de autoridade protagonizado por  palmo e meio de gente que farto da sua desajeitada companheira o fazer perder os carris leva o dedo à boca em sinal de silêncio e com um toque suave mas firme a puxa de volta à linha. Mais ninguém se apercebeu do gesto; só eu e a pequena que lhe virou uns olhos de cão submisso, meteu o rabo entre as pernas e acatou a ordem que até ali nenhum adulto a tinha feito acatar não voltando a fazer descarrilar a carruagem. A cena impressionou-me, mas o que mais me impressionou foi o olhar que, mais do que os gestos, sem ser ameaçador, tinha  um qualquer indício de dominância natural que não prevê desafio à autoridade e que, sendo naturalmente concedida, se impõe graciosamente.
A educadora deve ter dado graças pela tranquilidade com que se finalizou a viagem sem se aperceber do inesperado aliado que lha tinha facilitado e sem se aperceber naquele momento do esboço de líder que tinha o privilégio de poder educar.
Eu segui o meu caminho a sorrir internamente e pensando o quanto têm as crianças para nos ensinar a nós, assim nós tivéssemos na disposição de com elas aprender.

sábado, 5 de outubro de 2013

Tempestade

Chegaste assim de mansinho para me minares e nem dei por ti, tal como não dá a ponte pela corrosão que um rio, sempre corrente, lhe provoca fazendo-lhe estremecer  as estruturas . Talvez não te notasse como não nota a granítica rocha que a doce e suave água que passa lá deixará o seu rasto, porque parece inofensiva, causa estragos. Parecias estar somente de passagem, como um visitante que apenas fica pela novidade da paisagem, pela curiosidade de descobrir novas moradas e por isso mesmo quando vi que ficavas já era tarde; já me possuías o leme e comandavas a embarcação  rumo a alto mar.
Povoaste-me os sonhos, os que sonho a dormir e os que, acordada, me levam em tormentosas tempestades; pobres entidades incorpóreas e diáfanas que se agregaram a mim e em fantasias se fizeram vivas e presentes atuando como melífluas e mortais personagens  que são, à vez,  público e produtor.
Que força é essa que paralisa impossibilitando a fuga sem corrente que prenda? Que poder te conferi eu para com um gesto me condenares ao inferno ou me elevares aos céus? Temo esse poder que te dei, nem sei como nem porquê; entreguei-te a capitania e navego agora nos mares por ti traçados.
Julgava-me a salvo do furacão que se formava deixando-me enganar pela calidez com que te apresentavas, só a inocência permite tal engano pois não é  em tais climas quentes que as mais mortíferas tempestades se formam? Não é mesmo no seio dos mais perfeitos climas que os tufões se formam e num rodopio destroem tudo o que encontram?  Neguei todas as evidências e fui ficando, mais e mais tempo, nas tuas redondezas até que a velocidade dos ventos que te assombram me veio soltar as folhas de outono e me deixaram nua.
Foste-me tragando as entranhas qual hospedeiro parasita em morada alheia, alimentaste-te do meu fogo, do mel e do amor consumiste-me por dentro para me rasgares na saída… Foram-se os ventos e as ondas da tempestade, mas ficou o salgado na pele e o cheiro a maresia. E as folhas? Essas, ao desprendê-las renovaste-as deixando uma nova mulher no lugar…

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Tréguas

Enterrámos o machado de guerra e a comprová-lo está a tua camisa e a minha entrelaçados no chão de um quarto repleto de aromas de amor; os desatinos, esses, foram-se assim que pisámos o chão que nos lembra outras noites, outros encontros de vícios feitos, que rasgam as roupas e reconstroem a alma. Nesses momentos em que seduzidos, ambos, nos entregamos numa rendição absoluta, em que tu e eu nos transportamos numa onda de prazer para outros paraísos que nem terrenos são, em que tudo o que é palpável se desintegra dando vida a um outro mundo só nosso, lá estão as nossas intimidades expostas que jazem em formas retorcidas e se abraçam no chão.
Tirámos tudo, e nesse desnudar ficámos tão dignos de amor, numa crueza e soberba poderosa que nem todos os amantes conhecem por faltar a coragem de serem vistos por inteiro; aterroriza que nos vejam e sintam quando nos abandonamos: que seria se neste momento em que larguei a armadura com que me apresento, em que atiro ao chão os acessórios que me aconchegam o corpo me rejeitasses? Mas não o fazes pois também tu anseias por ser completo nessa entrega.
Aos poucos vão-se os sons que não são de amor feitos, ficam só o teu arfar e o meu, esquecem-se outros vícios e sem mais delongas cobrimos de beijos os corpos nus, rejeitadas as roupas que imitam no chão o que se passa na cama: cada peça tua e minha, atiradas assim sem jeito nem cuidado, se sentiram atraídas e se entreteceram…
Esquecem-se os prantos, turva-se a visão e o resto da paisagem, envergonhada de tanta paixão, dissemina-se por momentos e já só o que existe são sentimentos; sem corpos nem roupas; só um movimento crescente que culmina e decai…

Volta, aos poucos, tudo ao que é, voltamos a ser gente e volta o quarto ao seu lugar trazendo o mundo junto com as estantes, as gavetas, os móveis todos. E voltam os sons do mundo, os cheiros do quotidiano, apanham-se as roupas  e desenterramos o machado… 

Maria João Varela