sábado, 26 de outubro de 2013

Avô

Sentavas-te a meu lado e nada dizias, talvez só por vezes te saíssem as palavras: “Minha carochinha” num amansar da alma carinhoso enquanto me asseguravas ser a tua neta favorita de entre nove; nada mau, pensava eu enquanto te olhava a figura pequena onde transparecia uma alma enorme que abarcava a minha curta vida. Tinhas sido mau, diziam-me, quando te entregavas à bebida, mas eu que não vi, nunca acreditei nas más línguas, ou talvez não quisesse acreditar que pudesses ter desvarios e tivesses com eles maltratado alguém; logo tu, o mais doce que jamais conheci. Coisa engraçada essa da minha vida, os parentes fingidos são os que mais gosto pois diziam-me que não eras mesmo meu avô de sangue. Que importa isso? Para sempre recordarei o teu sorriso, e a tua ternura perdurará nas lembranças de alegrias raras numa infância maltratada .  O homem da casa era ela, a minha avó, habituada aos rigores dos  verões alentejanos, rude e sem carinho tinha-me chamado “o trambolho” quando a mãe lhe dissera estar grávida de mais um filho sem pai. Ela dera-me o sangue,  tu a alma. Recordo os risos ao dizeres que tinhas entrado no Portugal dos Pequenitos sem pagar bilhete porque te confundiram com um garoto, baixaste a cara e só viam a tua figura de miúdo reguila que libertava depois gargalhadas quando te punhas a contar essas piadas. E bem lembro que ao longe também eu te confundia com um que a avó trouxesse pela mão para nos fazer uma visita, numa das raras ocasiões que se libertava da vergonha de ter uma filha doente e cinco netos de três pais diferentes e nos entrava porta adentro com o ar de tudo querer pôr em ordem, e não é que ela fosse maior do que tu avô, mas era a postura, a força daquela personalidade dura e rude que te fazia parecer ainda mais criança. Como se deixava ela guiar por ti montada na  lambreta na qual passeavam por toda a Espanha estou eu para saber, só sei que as raras ocasiões das visitas coincidiam muitas vezes com a chegada de onde era comum trazer sacadas de caramelos para adoçar os beiços e quando te sentavas e me acompanhavas nas guloseimas com algum chupa- chupa na boca, nem eras para mim um adulto, quanto mais um avô, eras simplesmente um amigo, uma outra criança que partilhava um doce às escondidas enquanto os adultos se entregavam a assuntos mais sérios. Só repetias: “ Minha carochinha”. E as palavras adoçavam mais do que o caramelo que tinha na boca…


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