terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Maneirismos

Víamo-la chegar e acomodar-se no seu canto, o seu canto há mais de trinta anos. Pelo canto do olho apreciávamos os mesmos maneirismos, o mesmo tom afetado de voz, agora um pouco mais rouca, é certo, mas reconhecíamos-lhe todas as tonalidades; continuava um génio, em decadência, mas um génio. As mãos displásicas e o queixo caído – não de espanto, mas de nascença – seguravam um eterno cigarro aceso que umas vezes fumava outras não, reconhecíamos-lhe o encanto na decadência. Era certo que o vestido encarnado aos quadrados pretos e brancos não lhe assentava como outrora, nas noites a fio que passava a defender ideias progressistas e ideais impossíveis de concretizar, exceto na sua mente prodigiosa de jornalista, mas dava-lhe um ar de inconformismo acentuado pela leveza com que declinava a oferta do garçon quando já lhe adivinhava os desejos: “ Uma Margarita, senhora?” Odiava ser previsível por isso logo se apressava em pedir outra coisa que rapidamente lhe passasse na ideia. Adorava a bajulação, sorria disfarçando perceber o cheiro a  falso quando a cumprimentavam os cavalheiros de ego destruído nos artigos cáusticos feministas das suas crónicas semanais; eram preferíveis, contudo, aos cochichos das senhoras bem casadas… claro que ela nunca casou, dispensava atilhos desses e ia-se aconchegando como podia nunca lhe faltando macho – algum corajoso – principalmente nos frios invernos parisienses.
Era um pouco triste, vê-la agora, tantas vezes a falar sozinha, ou quem sabe para algum fã invisível mais persistente, enquanto se via o ar descuidado com que tinha calçado as meias de vidro onde dantes não se lhes vislumbrava um vinco. « Merrrci, mon chérrrri», vincava os “r”(s) mais que o necessário para vincar uma personalidade única onde uns cabelos negros e curtos marcavam a rebeldia de uma juventude boémia e ativista e quando se levantava cansada do seu canto onde tinha deixado a frescura perdida caminhava encurvada pelos anos de luta, mas não perdia os maneirismos com os quais segurava o cigarro, sempre aceso para lembrar que a alma, essa não se curvaria nunca…

Maria João Varela


domingo, 29 de dezembro de 2013

Fobias

E quando por algum motivo acabava sozinha, plantada no meio da multidão, num local público qualquer,  por algum amigo que me acompanhasse precisar de se ausentar por momentos, de repente, como por artes mágicas todos os olhares se viravam para mim; não sei como, mas descobriam que me encontrava sozinha, perdida, abandonada. Alguns riam de mim, aos cochichos uns com os outros, e comentavam que eu não era digna de companhia, ninguém gostava de mim, eu sabia que começando a andar iria parecer estranha, desengonçada, mas tinha de sair dali rapidamente,  começava a dar-me calafrios e ora a transpiração era quente, ora fria, deixando-me as mãos pegajosas…  Começava depois a sentir o coração aos coices lembrando-me que estava em perigo de vida e que se ficasse ali iria ter um ataque; a verdade é que parece que o filme da minha vida tinha parado de passar e só aqueles olhos pareciam aumentar de tamanho até ficarem gigantescos e eu pequenina e tremente qual cria acabada de nascer e que é deitada ao mundo sem o consolo da mãe; lá ficava paralisada no meio de toda a hostilidade do mundo; ganhava então um pouco de coragem e desviava-me para um canto, longe dos olhares reprovadores e à medida que me afastava mais e mais do foco do perigo e me ia sentindo mais e mais calma, tudo parecia voltar à normalidade, cada um conversando com os amigos ou família, os olhos voltavam ao seu tamanho e já pareciam não me ver. Acabava, assim, por me sentir em paz com a decisão de me esconder e evitar ser vista, mas bem lá no fundo pressentia que da próxima vez iria ser ainda pior… A questão é que me parecia sempre que tudo se passava como se eu já não estivesse aos comandos da minha própria vida, como se toda aquela situação  estivesse à partida escrita por qualquer guionista, onde eu só tinha de representar o papel que me tinha calhado. Pensamentos, emoções e até a fuga para um canto remoto da sala pareciam acontecer como se uns se seguissem aos outros, de um modo encadeado como contas de um rosário,  e ser impossível um outro desenrolar da história: a coisa era-me servida num pacote; tinha comprado o pacote todo, tinha de o usufruir por inteiro…  E parecia vir de muito longe todos os acontecimentos, de um tempo em que, ainda criança, me tinham dito « Não prestas, sai daqui,» de um tempo em que era posta de lado, em casa e na escola. Lembro-me como se fosse ontem, ou hoje de manhã, da primeira vez em que a professora chamou o meu nome da sua secretária e todos aguardavam a minha resposta, aí foi como se eu me tivesse movido e com um impacto brutal tivesse chegado ao pé dela e respondido ao que me era pedido, sem nunca ter saído do lugar.
Maria João Varela

sábado, 21 de dezembro de 2013

Conto de natal

Cambaleava. Ligeiramente, mas cambaleava. As luzes de natal já há muito se tinham apagado e ele, de roupas húmidas por cima do corpo gélido procurava. Era cedo ainda, aqui e ali via-se o alaranjado das lareiras cujo fogo era mantido a noite toda, num alegre crepitar deixando perceber o conforto dos lares, quentes e cheios de gente. O olhar triste e abandonado era, por estes dias, mais triste e mais abandonado ainda, o contraste com as festas familiares que se viviam nas casas de mesas  abundantes era mais gritante que nos dias comuns. Ele sabia que dentro de dois dias é que os caixotes do lixo abririam as bocarras a abarrotar dos restos que os outros, cansados de tanto comer, atiravam fora, enquanto isso ia fazendo a ronda na tentativa de chegar aos restos primeiro que os seus rivais; é que aqui também se compete, pela comida que não tenha ainda sido contaminada por outros lixos menos comestíveis.
Sentou-se cansado. Nada. Não havia nada ainda, bem sabia que na noite de natal quase ninguém saía do seu conforto para despejar o lixo; teria de esperar, mas o estômago quase colava às costas de tanta fome e os sapatos rotos deixavam à mostra um dedão do pé com uma unha negra de sujidade de meses, mas fê-lo lembrar de outros natais, onde também tinha sentido o conforto da família, isto antes do desemprego o empurrar para as ruas… nesses tempos também ele não saía na noite de natal para despejar o lixo, costumava ficar a ver a lareira apagar-se aos poucos enquanto a ia mantendo em lume frouxo até de manhã, quando as crianças trementes de excitação não conseguiam ficar na cama e procuravam na lareira, ainda quente, pelo seu sapatinho recheado de uma prenda muito desejada; um sapato não como os dele, sapatos a valer, novos para o dia de natal. Onde estariam os filhos agora? Esfregou com os dedos enrugados e encardidos nos olhos que deixavam cair as lágrimas de meses. ”Por que raio custa tanto nestes dias? Por que raio não me leva a morte que ceifa tantas vidas prazerosas?”
Ouviu passos. Alegrou-se. Talvez houvesse afinal quem se aventurasse na noite fria de dezembro para trazer o lixo. Não. Era somente um polícia na sua ronda. “Pobre polícia” pensou. “Talvez tenha engolido à pressa a posta de bacalhau para ir cumprir o seu dever numa noite em que até os ladrões parecem ter direito à consoada.”  O agente afastou-se sem nem dar por ele, estava realmente frio e ia-se abrigar na esquadra, estava tudo calmo àquela hora. O relógio da torre batia 3 horas da madrugada: Tlim, tlão. Tlim, tlão. Tlim, tlão – também cumpria a sua obrigação.  
Recolheu-se no seu canto agora mais gelado ainda pela sua breve ausência. Irra, não conseguia adormecer de tão gelado. A pele agora mais enrugada ainda, o estômago às golpadas de dor pela ausência de comida, a alma abandonada e triste pelas agruras da vida e da solidão. Nem o gorro preto que enfiava na cabeça  o conseguia aquecer. Tinha, contudo, um desejo de natal: paz.
 - Hora do óbito? – perguntou à médica legista com cara de enfado pelo incómodo de ter de declarar um óbito no dia de natal.
 - 3 horas da madrugada.
 -  Não pode ser passei por aqui na ronda e não estava ninguém, com o frio que estava tê-lo ia recolhido…



sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Delirium

Olhando a pequena face adormecida apercebeu-se da urgência e secretismo com que teria de levar a cabo a sua missão. Não podia levantar suspeitas e também não poderia contar com ninguém, teria de elaborar o plano sozinha, o que não poderia deixar era que fizessem mal ao seu anjo. Francisco respirava profundamente e aligeirou um sorriso – talvez algum sonho bom lhe povoasse a mente inocente; com que sonham os bebés de dois anos? Talvez com algum colo acolhedor, um seio transbordante de leite morno ou quem sabe um sorriso sincero ao qual retribuiu dormindo. Não se cansava de observá-lo e protege - lo por isso ficava acordada grande parte da noite enquanto João, seu marido, dormia profundamente e quase tão inocentemente quanto o filho… não acreditava que o bebé corresse perigo ou pelo menos era o que dizia para acalmá-la, mas a verdade é que tinha trazido os pais lá para casa para ficarem a tomar conta dele – “mais quatro olhos é sempre melhor…” tinha-lhe dito.
Deitou-se. Esgueirou-se para dentro dos finos lençóis sem fazer barulho, o corpo franzino  à procura do calor masculino; mas não adormecia. Magicava formas de levar a cabo os seus intentos sem levantar suspeitas; era difícil porque a casa agora estava sempre cheia de gente, não percebia como podia o marido achar que estava melhor com os sogros, eles na verdade eram parte do problema só que aceitava ser difícil para um filho perceber o quanto os pais são perigosos... também a ela custou acreditar.
Ficou ainda por um largo período de tempo a relembrar a conversa que tinha tido com o seu contacto para  esta missão denominada “anéis de saturno”. Claramente os russos tinham uma implicação, “estavam embrenhados na coisa até aos cabelos” nas palavras dele… mas não acreditava que fossem só os russos; os americanos nestas missões têm sempre a última palavra a dizer… tinha de salvar o seu menino, aliás tinha de salvar a humanidade. Virou-se uma vez mais, não conseguia dormir. As palavras  do homem de óculos escuros, jornal debaixo do braço e cachimbo invadiam-lhe os pensamentos, juntamente com as baforadas do seu cachimbo. Podia sentir agora o intenso cheiro a enxofre que invadia o quarto. Levantou-se de uma penada. Não queria acordar o marido, mas ele estava ali de certeza… o cheiro, aquele cheiro que lhe tornava as inspirações dolorosas não deixava margem para nenhuma dúvida.
Ele ali estava, de pé, encostado ao umbral da porta da sala, inseparável do seu cachimbo, “por que raio nem ali deixava de exalar o maldito fumo?” Pensou. Ainda iria acordar a família. Parecia não se incomodar com questões mesquinhas. “ Tem de ser ainda esta noite, sussurrou. Amanhã será demasiado tarde. “ Mas…” quis continuar, foi interrompida abruptamente : “não pode haver “mas”, sempre que há “mas”, sempre que há a mais pequena hesitação, a mínima dúvida ou um leve gaguejar, a missão aborta, é isso que queres?  “ Não, claro que não” Respondeu. “…tenho de salvar a humanidade, tenho de salvar o meu menino…”. “ Então fazes assim: “вы получаете отсюда немедленно!” Quê? Então agora falava-lhe numa língua desconhecida? Que vinha a ser isto? Enquanto pensava já ele se tinha afastado saindo pelas traseiras deixando-lhe um envelope nas mãos e o cheiro insuportável pela casa.
Era urgente levar a cabo a missão. Abriu o envelope com o coração galopante e viu a foto dos sogros, a prova de que sem sombra de qualquer dúvida se encontravam com o inimigo, já não podia confiar em ninguém e até mesmo o marido estava debaixo de suspeita apesar do seu contacto lhe ter garantido que ele era inocente. Apressou-se. Na pressa pisou o rabo do gato que deu um grito em “gatês” : “ miauuuuu”, cravando-lhe as unhas na cara e fazendo-a inadvertidamente dar um salto. O marido lançou um profundo suspiro e virou-se para o outro lado. Cristela tremeu de medo, mas a imagem da bravura dos seus antepassados fê-la reagir. Tinha de continuar a sua missão tinha de fazer jus ao nome que tinha herdado e dar continuidade à gloria dos seus antepassados. Pegou no bebé que dormia no  berço e aconchegando-o ao colo bem  embrulhado na manta saiu para a noite escura sem olhar mais para trás. Dizia repetidamente que tinha de ser assim; tinha de obedecer e o contacto tinha ordenado que fosse ainda esta noite…
 - Mãe, mãe! Viu a Cristela?
 - Não, filho. Porquê? Que se passa? Levantou-se à pressa enfiando o robe e os chinelos quase tropeçando.
 - Já corri a casa toda, não está, nem ela, nem o Francisco. Ai, mãe! Temo, temo o que possa ter acontecido… não levou nada, acho que foi de pijama e chinelos… nem sei que faça da vida se me fizer mal ao menino. Sentou-se com as mão no rosto desolado enquanto o pai enfiava já umas calças e com os cabelos grisalhos todos desalinhados chamava o 112.
 - Não sei, já disse que não sei, mandem alguém depressa! Sim, e um psiquiatra também com uma injeção que faça dormir, quero é ter sossego durante muito tempo para ver se nos dá algum descanso - desabafou.
Olhavam agora o pequeno berço vazio e uns para os outros, sentindo-se culpados. A culpa é o primeiro sentimento a assolar-nos quando sabemos que se podia ter feito de outra maneira e não se fez. Na consulta a psiquiatra tinha claramente dito que ela não podia ficar sozinha, enquanto a medicação não começasse a surtir efeito não poderia deixar de ficar debaixo de olho nunca. Tinham descurado os conselhos, ela nunca dera problemas até  há pouco tempo atrás quando começou a falar sozinha, por vezes rindo, por vezes gritando, parecendo muitas vezes que respondia a alguém. Depois, repentinamente, começou a desconfiar de todos, até da educadora infantil que vigiava largos minutos depois de deixar o filho na creche. Acabava por chegar tarde ao trabalho tendo cansado o  patrão que a despediu com justa causa pois no testemunho de alguns clientes ela tinha conversas totalmente despropositadas “ …as ligações a  Saturno são o mal da humanidade… vê esta caneta que apanhei aqui? É dele e é a prova de que a energia cósmica anda por aqui… você, você também tem ligações a saturno, não é?…” .
Eram quatro da tarde quando a polícia partiu com dois cães peritos em buscas. Tinha sido difícil convencê-los a procurarem-na antes de vinte e quatro horas passadas, só quando a psiquiatra deu o parecer clínico foi possível ultrapassar esse obstáculo. A família estava inconsolável, acreditavam agora que Cristela com os seus delírios poderia ter provocado algum mal à criança.
Francisco chorava inconsolável no colo da mãe, ela embalava-o enquanto lhe assegurava com voz doce que não deveriam demorar para os virem buscar para um lugar seguro. Deu-lhe o seio que o acalmou por momentos pelo contacto porque o leite há muito tinha secado. O barracão abandonado tinha sido o local escolhido por Cristela para se abrigar, mas o frio intenso que se fazia sentir tomava conta dos dois e ameaçava de morte mãe e filho. Sentiu passos, há muito que o filho não se queixava, sentia-o inerte nos braços e embalava-o desesperada, mas a luz ao fundo e o que lhe pareceram latidos redobraram-lhe a esperança. Ouviu o seu nome e quis dizer: “ sim, sou eu, estou aqui.”, Mas a voz teimava em não se fazer ouvir, as forças abandonavam-na pelos dias que teimara em não comer pois nas suas palavras a sogra envenenava-lhe a comida. “ Não vê que ela me põe tóxicos no pão, na sopa, na fruta? Como quer que eu coma a comida dela?” Abanou o filho agora com mais força, mas nada, ele enregelava e já não deixava sair pela pequena boca rosada nenhum lamento. Temeu o pior. Quis levantar-se e pedir auxílio às vozes e aos latidos que se afastavam mais e mais, mas as pernas fraquejaram e caiu. Um breu intenso abateu-se sobre ela…
João olhava através do vidro da porta o filho que brincava no quarto de hospital. Sorriu. Tinha escapado por pouco. O pequeno corpo estava inerte ao lado do da mãe e ele, com a esperança perdida dos dois dias intensos de buscas, quando os avistou pensou tê-los perdido para sempre. O filho estava agora recuperado e teria alta nesse mesmo dia, quanto a Cristela tinha acabado de vê-la, na visita das quatro, e recuperava bem. Conseguiam agora que comesse depois de lhe tirarem o soro e a deixarem ver preparar a comida. João ganhava nova esperança, a medicação logo, logo faria efeito e desta vez a mulher só sairia do hospital quando os seus delírios passassem.
A enfermeira veio avisar que o horário das visitas tinha acabado. Viu chegar Cristela com os pais, felizmente que a mulher tinha parado com as implicâncias davam-se bem os três. Viu sorrirem-lhe e aproximaram-se. Estavam todos vestidos como se fossem sair, até mesmo Cristela; já teria alta?
- Até amanhã meu querido! Voltamos amanhã. Cristela sorriu-lhe, um sorriso encantador como há muito não tinha.
João confuso viu repentinamente  a sua imagem refletida no vidro e esta atingiu-o como se de um raio se tratasse: estava magro e a barba de dias dava-lhe um ar ainda mais abatido, uma olheiras profundas circundavam os olhos azuis que tinha herdado do pai. Olhou-os e viu os três já de costas saindo pela porta principal. Não compreendeu. Porque não esperavam por ele? Olhou novamente a sua imagem no vidro, olhou o pijama largo dentro do qual balançava um corpo que mais parecia um esqueleto, os chinelos de quarto estavam também bailando nuns pés demasiado pequenos só para lembrar que os pés também emagrecem…

Maria João Varela


domingo, 15 de dezembro de 2013

Memorial do túmulo

A alma escapou-se-lhe . Vagueou deixando para trás a prisão de um corpo que lhe limitava os passos; não queria ficar mais presa a conceitos que lhe confinavam as ideias, sentia um desejo premente da liberdade que perdera quando crenças e hábitos alheios lhe tolhiam os sentidos. Não podia deixar que lhe sugassem a vida. Sentiu-se leve, leve e sem os constrangimentos de um corpo, sentiu-se tudo e nada ao mesmo tempo e à medida que as fronteiras do concreto se desfaziam tudo parecia ir ficando mais pequeno enquanto ela própria se agigantava. Andou, voou, nem sabia como se movimentava sem membros, mas a verdade é que nunca tinha sentido uma tal leveza, um inebriamento feito de infindas possibilidades… Deu por si num cemitério. Um lusco fusco  caía já, como um manto de neblina densa e húmida pelo que sentiu um arrepio – como a alma se arrepiava não entendia ela – que a fez aconchegar mais a capa ao corpo ausente. Cada passo ecoava pelo eterno silêncio que pairava tornando o ar pesado e a alma apreensiva. Os jazigos lançavam suspiros por entre as brumas de memórias intemporais e por entre as teias de aranha que insistiam em instalar-se, alheias a toda a dor, alheias à angustia das armadilhas da  existência humana. Olhava. Via nomes e datas, datas e nomes. Uns tinham partido cedo, cedo demais deixando inconsoláveis pais e avós, desmembrados para sempre, até quando a morte se lhes juntasse os pedaços. De repente, algo lhe chamou a atenção para além dos crucifixo e das fotografias esvanecidas pelo tempo; as datas. As datas não condiziam. Segundo as indicações tinham passado mais de cento e cinquenta anos. Poderia ter vagueado assim tanto? Quis voltar para trás, assustada agora com o que via, mas algo mais forte impelia-a obrigando-a a  lançar-se para a frente. O que outrora tinham sido homens e mulheres jaziam nas frias tumbas e o único indício de terem vivido eram agora os nomes e as duas datas – uma delas desconhecida dos próprios – a do início e a do fim. Arrepiou-se de novo. Que estava ali a fazer? Teria morrido e não sabia onde era agora a respetiva tumba? Repentinamente um nome chamou-lhe a atenção “ Maria Eduarda Valério” seguida da sua data de nascimento e outra que não sabia – seria então que teria morrido com oitenta e oito anos? O que mais a espantava eram as outras datas todas cento e muitos anos à frente da sua… chorou… queria saber como tinha ido ali parar e porque estava a sua campa tão abandonada à vista das outras. Reparou agora melhor e lá estavam os nomes dos seus entes queridos, todos mortos já. Viu uma fresta aberta e esgueirou-se por lá para assistir ao espetáculo mais aterrador: lá estavam os seus restos mortais e junto deles todos os seus desgostos e desejos, todos os seus problemas e anseios – que pareciam agora à vista de toda a sua família, também ela morta, passados cento e cinquenta anos, ridículos. Saiu do túmulo levando agarrada à face uma teia de aranha pegajosa, o vento uivava deixando o local mais desolado ainda enquanto o corpo parecia voltar-lhe à alma deixando-a agora mais aterrorizada pois os passos eram agora mais pesados e o eco mais ruidoso. Correu. As brumas densas aos poucos abrindo espaço a um raio de luz luminoso ténue e tímido de início para se tornar tão forte que a cegava… “ Acorde, acorde…” A voz do médico sobressaltou-a. As batas brancas giravam num rodopio de tarefas para cumprir. Tinha acordado da anestesia…

 Maria João Varela

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Aguenta-te se és Homem

Em face do sofrimento é que se veem quem são os Homens – dizem – e têm razão. Quando a máscara das aparências se vai para encararmos a dor na sua pujança é que se veem quem são os Homens, quem são os que se aguentam à bronca e não se lhes vacila as pernas; ou mesmo que vacilem quase não se nota porque para além da sua dor, outra muito maior se lhes assoma o leito de morte: o terror de ferirem quem amam.
Era assim, no leito de morte, o meu avô: “  Sabes quem sou, Rosa?” – dizia para a minha avó. “ sou o teu esqueleto preferido”. Sempre até ao fim a tentar dizer piadas que lhe saiam juntamente com algum gemido que escapasse… “ Olha para isto que já não tenho carne, já não sou o teu Carlos”… e tentava sorrir, mas só saia um esgar na face que se tinha tornado em esqueleto antes de entrar na cova. E é assim esta doença, a morte apossa-se da vitima ainda em vida e quando ela se olha ao espelho consegue-a reconhecer, e ela compraz-se com o terror que vê estampado, um terror ainda mesclado de uma ponta de esperança. Mas ele sabia que não sairia da aventura vivo, mas disfarçava na tentativa de poupar a família à dor da perda. “ Oh, Rosa! Olha o teu esqueleto favorito…”
A minha avó, que sempre tinha sido uma mulher de armas ralhava-lhe: “ Não digas isso Carlos,  estás aí para as curvas”. Mas pegava-lhe como se ele fosse uma criança para vesti-lo e não lhe pesava, as peles flácidas, da magreza forçada, no interior das pernas não dava azo a grandes prognósticos, mas ela nunca lho disse. Só dizia: “ Vá lá Carlos tens de comer a sopa”. E ele comia para a vomitar de seguida: “ Vês como sou o teu bebé?”. Aguentava-se à bronca. E ela também. Enquanto ele viveu ela mantinha-se rija e com a força de comandante que sempre a caracterizara e só depois da sua morte chorou e lhe vacilaram as pernas; nunca mais foi a mesma força, embora até tenha casado outra vez...Era um Homem a valer, ela…
E quando a morte vem e nos tira o avô à descarada, dá vontade de a matar. Era pelo menos isso que eu sentia quando olhava a cara de sofrimento dele e via a dela que já se alimentava dele, sem subterfúgios, dizendo sem palavras: ele agora é meu. E perante este facto inexorável, esta revolta que nos alimenta as tripas nós só temos que nos aguentar à bronca e mostrarmos que somos Homens, nem que não passemos de crianças…
Maria João Varela

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Toc-Toc-Toc ( Contos de luz & Trevas)

 - Camila, olha só o que te trouxe? Anda, diz alguma coisa. Gostas? Lúcia olhava a irmã expectante. Esperava vê-la arrancar-lhe o pacote das mãos como fazia em miúda para abrir a prenda que lhe tinha comprado pelo seu aniversário.
- Espera. Agora não posso, pousa em cima da mesa que já o abro.
- Que se passa contigo, Camila? Porque estás a chorar? A irmã aproximou-se e Camila não teve outro remédio se não pegar no embrulho. As mãos tremiam como um bêbedo em ressaca e as lágrimas caiam agora livremente pelas faces. Lúcia reparou agora mais pormenorizadamente no rosto da irmã e reparou que tinha emagrecido muito; começou deveras a ficar preocupada.
 - Olha, anda. Vamos jantar fora – disse-lhe, enquanto lhe arrancava o embrulho das mãos; abres depois, agora vamos comer uma pizza que também é preciso desanuviar, que dizes? Vamos comemorar o teu aniversário.
 - Na… na… não posso – gaguejou. Estou à espera de uma pessoa – mentiu.
 - Uma pessoa? Quem? Já não me dizes as coisas? Que se passa contigo, hein?
 - Agora não posso dizer-te – replicou – Depois conto-te. Agora vai peço-te.
Lúcia despediu-se da irmã, desejando-lhe uma vez mais um feliz aniversário e saiu do pequeno apartamento onde moravam juntas desde que se tinha mudado para Coimbra para estudar medicina. Camila viu-a afastar-se da janela onde tinha ido espreitá-la. Conseguiu vê-la virar a esquina certificando-se de que se afastava de vez pois como tinha a chave do apartamento poderia sempre voltar atrás… Correu para a casa de banho e lavou as mãos repetidas vezes. O coração batia descompassadamente dando a impressão que ia saltar-lhe do peito. Respirava com dificuldade enquanto olhava o pacote que a irmã tinha pousado em cima da mesa da sala de jantar. A curiosidade com o presente dela fê-la levantar-se e dirigir-se ao armário da sala repleto de objetos de limpeza assim como variadíssimos detergentes. Gastava uma fortuna em escovas e escovinhas, esfregões de cores e formatos variados, espanadores grandes e pequenos que pudessem aceder a todos os recantos da casa. A ansiedade começava agora a diminuir enquanto calçava um par de luvas descartáveis começando a abrir o pacote.
A irmã, sempre atenta aos seus gostos , tinha-lhe oferecido uma camisola que tinha cobiçado num dos poucos passeios que davam juntas aos domingos. – Vê, Lúcia, esta ficava bem com as minhas calças pretas, hei de vir experimentá-la. Mas nunca chegou a ir por culpa daquele medo insano que teimava em aumentar…
 Até uma viagem à sua aldeia natal – perto de Castro D’Aire - tinha passado um mês inteiro a planear:  como faria para se sentar, para entrar na camioneta sempre cheia de gente que respirava, sempre uns para cima dos outros. Estávamos já no Inverno e o perigo de um vírus que a contagiasse aumentava pelo que tinha usado uma máscara que tinha tido o efeito esperado de fazer com que ninguém se atrevesse a sentar-se a seu lado. O pior foi mesmo em casa dos pais com o cão e dois gatos que passeavam à vontade pela casa largando o pelo nojento por todo o lado.  E se lhe entrasse algum pelo na garganta? E se os excrementos dos gatos se agarrassem às patas quando eles as  usavam para tapar o cocó e transportassem as bactérias para o sofá onde gostavam de passar as tardes quentinhos junto da lareira? Então sem que ninguém visse pegava nas toalhitas desinfetantes que tinha trazido  consigo e limpava à socapa todos os lugares por onde visse que eles se encostavam…Mas durava pouco a tranquilidade porque logo entrava alguém – era uma casa da aldeia sempre de portas abertas para toda a gente – e ela ficava com uma vontade louca de desinfetar o chão onde tinham pousado os pés infestados de micróbios. Tinha jurado tão cedo não pôr lá os pés quando a mãe lhe perguntou porque passava o fim de semana de luvas calçadas e spray desinfetante sempre à mão.
Pôs a camisola na máquina a lavar e foi-se deitar. Sabia que o sono não viria tão depressa, mas sentia-se exausta e sozinha. Desde que Eduardo se tinha ido que tudo tinha piorado, dantes pelo menos dormia quatro ou cinco horas por noite porque o aconchego dele dava-lhe algum conforto, mas desde a sua partida, há seis meses atrás, tudo tinha piorado e as horas dormidas eram só duas ou três o que se começava a notar já nas rodelas negras à volta dos olhos, outrora grandes e expressivos, e as roupas que dançavam ao sabor do seu caminhar de tão largas que estavam… “ Não aguento mais isto”  tinha-lhe ele dito numa voz que não se alterava nunca, sempre doce, sempre meiga. “Desculpa, mas estás a pôr-me louco e se não te tratas ao menos tenho de me salvar a mim.” E ela tinha-o deixado partir. No fundo sabia que os seus medos eram exagerados, estúpidos até, mas a verdade é que por mais que quisesse não conseguia deixar de repetir os mesmo rituais dia após dia, semana após semana, mês após e isto há sensivelmente de há um ano para cá; os medos comandavam-lhe a vida.
Quando Eduardo chegava a casa ela esperava-o de aspirador na mão para assim que ele se dirigisse à casa de banho para tomar banho – exigência dela – ela aspirasse os pós trazidos do exterior e desinfetasse de seguida todo o pavimento. Depois, ainda de luvas calçadas, pegava-lhe na roupa enfiando-a na máquina e acionando a lavagem, isto todos os dias, a cada chegada dele. Sabia, ela bem sabia ser este comportamento despropositado, absurdo, mas simplesmente não o controlava mais. Desde que a empresa a tinha dispensado passava o dia em casa nisto. O seu trabalho tinha, aos poucos, sido posto em segundo plano em prole de um escritório imaculado. O seu escritório de arquitetura já não continha desenhos espalhados, enrolados uns nos outros, nem as obras pelas quais era responsável recebiam mais as suas visitas de capacete enfiado por cima dos caracóis negros, agora enfiava a máscara, calçava as luvas e limpava o escritório. Quando foi chamada ao escritório do gerente nem estranhou muito a conversa:
 - Camila, tenho imensa pena, mas neste momento vamos ter de fazer uma remodelação no pessoal e os seus serviços não nos serão necessários. Assim, friamente, como se ela não tivesse trabalhado lá três longos anos…
Eduardo tinha dito que precisava ser tratada, mas tratada de quê? Perguntava-se ela. Era tudo uma questão de limpeza, não podia dizer a um médico que era zelosa demais, senão ainda a internavam e depois havia os porcos que nem para comer lavavam as mãos e ninguém lhes apontava um dedo.  Mas também havia o tempo, todo o tempo gasto a lavar a esfregar, esfregar, lavar, sem tempo pergunta ao tempo quanto tempo o tempo tem, não tem tempo, que pergunta ao tempo quanto tempo o tempo tem… tempo tem tempo… adormeceu por fim, exausta , pelas lengas lengas e pelos próprios pensamentos que não lhe davam descanso. Que pior inimigo do que este que habita dentro mesmo dos próprios pensamentos e sempre sem parar, noite e dia, massacra, tortura, enlouquece e  puxa os cordelinhos da mente de quem já não é dono de si?
Dava já voltas na cama há duas horas, desde que a irmã tinha chegado, sensivelmente pelas três da manhã. Levantou-se a custo. O corpo dorido do sofrimento psíquico e das noites mal dormidas, a cabeça confusa e um medo, um medo enorme, incomensurável de perder tudo o que lhe restava, que era já muito pouco. Tinha, em pouco mais de um ano, perdido o seu companheiro, amante e amigo, tinha perdido o emprego e perdia peso de uma forma assustadora, estava um farrapo humano. Nada mais era do que uma sombra pouco fiel da mulher glamorosa de há pouco tempo atrás. As unhas bem cuidadas estavam quebradas dos detergentes abrasivos e das horas de lavagens a que eram submetidas, no entanto no resto mantinha a aparência debaixo do olho critico.
 Os chinelos lá estavam, como os tinha deixado na véspera, alinhados milimetricamente. Recomeçou um ritual repetido todos os dias, exaustivamente. Calçou-os e descalçou-os; calçou-os e descalçou-os três vezes. Dirigiu-se à casa de banho. Largou os chinelos que trazia calçados para enfiar os da casa de banho que lá se encontravam, também eles, alinhados numa posição específica, sempre igual, dia após dia não mudavam de lugar. Este era, aliás uma das discussões diárias que tinha com Eduardo que às vezes na pressa de ir trabalhar não os deixava alinhados como lhe pedia. “ Julgas que tenho o teu tempo? Que importância pode ter mais um pouco para a direita ou mais um pouco para a esquerda? Estás a ficar louca…” . De início achava-lhe piada, mas à medida que foi aumentando o número de exigências de sua parte a paciência dele foi sendo cada vez menor… tomou duche; três vezes se secou, três vezes se enfiou na banheira; três vezes se vestiu, três vezes se despiu; três vezes lavou os dentes, três vezes acendeu e apagou a luz. A cabeça começou a rodar: três, três, três… girava, girava, girava. Um enorme número três aproximava-se e ameaçava engoli-la: três, três, três.
- Camila, Camila, Camila. Acorda, acorda, acorda. Que tens amor? Tremes toda, estás a ter um pesadelo?
 - Não, amor. Estava a ter o sonho mais belo, tu ainda aqui estás, ainda me amas… olha, decidi-me. Hoje mesmo vou procurar ajuda. Vou-me tratar desta obsessão que me mina a vida.
- Que bom, amor. Agora anda senão ainda te atrasas para o trabalho. Já pus a mesa exatamente como gostas. A chávena está virada para baixo, tens três colheres, três colheres, três colheres…




                                                         Fim


segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

O que é que tu vês? ( Contos de luz & Trevas)

Os passos do cão no andar de cima estavam a pôr-lhe os nervos em frangalhos. Eram lentos, calmos, calmos demais até. Podia ouvir perfeitamente as unhas a raspar o soalho de madeira enquanto se passeava como quem se passeia num domingo soalheiro. Só lhe apetecia subir as escadas e apertar-lhe o gasganete, aquela acalmia toda não combinava nada com o seu estado de espírito.
Pela enésima vez veio-lhe à mente a discussão da véspera. Tinham acabado, nem acreditava ainda, mas ele tinha feito as malas e tinha mesmo saído de casa. Tinha outra, só podia ser isso se não teria tido um pouco mais de paciência com ela que estava sempre pronta para lhe ceder aos caprichos. O cão esganiçou lá em cima, talvez o irritante pirralho, o seu dono mais novo, lhe tivesse pisado o rabo. “… também gorda como estou, mais cedo ou mais tarde iria trocar-me por outra, olha só para isto…” E agarrou na gordura que tinha alojada nas ancas enquanto se olhava ao espelho e contorcia a cara num esgar de desprezo.
“ - Dá cá o telemóvel! Proíbo-te de lhe pegares. Chega, estou farto disto!”  “ -  Deixa cá ver, quem é esta Mafalda? Hein? Andas a trocar mensagens com as amiguinhas, não é?”  E atirou o aparelho contra a parede numa fúria desproporcionada fazendo as peças espalharem-se pelos quatro cantos do quarto, desagregando o que antes estava unido; tal como eles também tinham estado outrora… Pensava na discussão que o tinha feito sair de casa, voltaria a vê-lo?  A vinda para Coimbra não tinha sido a decisão mais acertada. Viverem juntos depois de dois anos de namoro adolescente tinha- a desestabilizado. Teria de conviver com ele diariamente, expor-lhe os recantos tantas vezes disfarçados por roupas largas num estilo que se quer próprio mas que só visa o disfarce. Ele vê-la-ia despida, vê-la-ia ao acordar com os cabelos frisados no ar,  com os olhos inchados, o hálito noturno… não, não e não. Mas por outro lado não o queria à solta, com os colegas pelos bares e praxes, sabe-se bem o que se faz com uns copos a mais…
A mãe tinha resistido muito à ideia. “ – Estás maluca, Sara? Achas que te vou deixar ir viver tão cedo com um rapaz? Tira mas é o curso primeiro, depois logo se verá”.  O pai tinha-se abstido, como aliás sempre fazia no que diz respeito a decisões complicadas: “ – Vá lá Sarita, pensa melhor, tira o curso e goza agora a vida.” Mas ela estava decidida e quando se instalou no apartamento que os pais tinham na Conchada, o Tiago foi  viver com ela. A mãe quando descobriu dois meses depois ameaçou tirá-la do curso “ – Pensas o quê? Pensas que vou andar a sustentar os dois?”  “– Mas mãe, o apartamento é só para mim mesmo, ele não gasta as paredes. A luz e água ele ajuda a pagar.” Não havia volta a dar, o mal pior já estava feito e a mãe não teve outro remédio senão assentir.
“ – Que estás aqui a fazer, Sara? As aulas ainda não acabaram, já é a segunda vez que cá vens hoje.” “ – Não vês que tenho saudades tuas estúpido? E tratas-me assim, como se visses um fantasma? Já não me amas?”  “  - Sabes bem que sim! Vem cá!” E espetou-lhe um beijo apaixonado. “ – Agora tenho de ir para as aulas. Até logo.” “ Amas-me? Amas-me?”- gritou-lhe ela deixando-o embaraçado ao pé dos amigos. “ Até logo “ e virou-lhe as costas entrando na faculdade de matemática onde era caloiro. Ela também era caloira na faculdade de farmácia, mas raros eram os intervalos em que não passava pela faculdade dele para ver se o descobria a falar com alguma desamparada que se lhe quisesse amparar no ombro.
O Cão tinha parado de esgravatar o chão, devia estar descansando agora ou talvez roesse um daqueles ossos que servem para limpar os dentes depois das refeições. Irritou-se com o silêncio. Viria ele ainda? Voltaria para ela?  Levantou-se e foi até à janela. O reflexo no vidro fê-la recuar. Estava gorda, como é que ele voltaria para uma gorda e horrível como ela? Não prestava para nada, nem uma dieta era capaz de seguir para manter a linha. “olha-me só para este cu, está enorme, está mesmo grande e estou toda carregada de celulite. És uma pessoa horrível e nem o Tiago nem outro qualquer vai voltar para ti…” Começou a chorar. Estava mesmo de rastos, os pensamentos estavam agora totalmente dominados por tudo o que de mal havia nela, por todos os fracassos, todos os desgostos, todas as insatisfações com o corpo. Vinham rápido sem nenhum esforço como se tivessem estado à espreita de um momento de fraqueza seu para a assaltarem de dúvidas quanto à sua própria pessoa. Avançou até à cozinha. No frigorífico estavam ainda dois hambúrgueres que lhes teria servido de jantar, mas a discussão acabou por deixá-los esquecidos. Aqueceu-os no micro-ondas e come-os aos dois juntamente com um pacote de batatas fritas que abriu. Sentiu-se culpada. “vês burra de merda porque é que ele não te quer? Só comes merdas que engordam”. Chorava e a ansiedade crescia à medida que recomeçava mais um episódio de empanturramento. Quem não visse não acreditava que alguém pudesse enfiar para dentro tanta quantidade de comida. Mesmo a terapeuta que tinha ,contrariada, consultado no hospital se tinha chocado. “ …agora também não vale a pena, perdida por cem, perdida por mil…” aumentava agora o frenesim com que levava à boca e quase sem mastigar engolia tudo o que ia apanhando por cima da mesa: um pedaço de queijo, um pacote de  Oreos  quase cheio, o resto das batatas fritas do pacote. Depois foi a despensa que levou com o seu apetite devorador: dois pacotes de Dóritos , uma torta da Dan Cake, barritas, …. Não parou durante meia hora, as lágrimas tinham parado, só comia, tanto que lhe doíam os maxilares. Ia engordar dois quilos só hoje. E se ele voltasse? Repararia de certeza que estava mais gorda. Correu para a casa de banho e num gesto cada vez mais repetido levou os dedos à boca e devolveu à sanita,  num esforço que lhe arrancava o estômago do lugar e quase lhe faziam os olhos saltar das órbitas, o conteúdo do estômago feito bolo alimentar. Os vómitos ouviam-se pela casa afora: “HuggghtHugght… HugghtHugght… HugghtHugght…” no final só um silêncio e uns soluços baixinhos, sentidos e a noite que invadia a casa de banho e o resto do apartamento.
Tiago não veio naquela noite, nem na seguinte. A verdade é que não veio mais. Este desfecho era mais do que óbvio, a terapeuta que uma amiga -  a única que se mantinha ao seu lado -  tinha insistido para que procurasse tinha-a alertado: “ – Não vê Sara, que o Tiago não vai aguentar as suas perseguições por muito mais tempo?” “ - Eu sei doutora, mas que quer, eu não consigo parar! Estou muito bem e de repente penso que ele pode estar a falar com outra e tenho de ir verificar. Sabe, é mesmo mais forte do que eu… que hei de fazer? Há dias encontrei-lhe uma mensagem no telemóvel, disse ser de uma colega, disse-me que era para um trabalho de grupo.” “ -   A Sara sabe que há muitos trabalhos de grupo, é normal que esteja a falar verdade.” “ – Eu sei como isso é! Primeiro um trabalho de grupo depois um copo e pimbas. Com tantos rapazes no curso e tinha logo de fazer os trabalhos de grupo com raparigas? Não. Agora já o fiz prometer-me que não falava mais com ela.” “ –  Só quero que saiba que isso não vai resultar, ele vai acabar por se fartar das suas imposições.” “  - Que posso eu fazer, então?” “ -  A única coisa é aprender a viver na incerteza…” Tinha dito aquilo assim, com aquela naturalidade, saberia ela o que era a incerteza? Como se pode viver na incerteza? De certeza que a doutora não sabia o que era desconfiar de alguém. E também desconfiar não era bem o termo, até acreditava que o namorado gostasse dela – pelo menos antes de ter engordado até ficar aquela baleia. Mas era mais como se pudesse prevenir alguma tentação que ele pudesse algum dia vir a ter.
Acordou, tinha adormecido no chão da casa de banho embalada pelos soluços. Pareceu ouvir um barulho e correu para a porta na esperança de vê-lo entrar, mas tudo se mantinha em silêncio.
“  - Acabou, Sara, já te disse, desta vez passaste todos os limites. Enxovalhaste-me ao pé dos meus amigos, deste um estalo à Mariana que não fez nada de mal…” “ – Estava-se a atirar a ti que eu bem vi! Não passa de uma p…a! Vê bem como ela se veste, aquelas meias rendilhadas, as mamas quase de fora e bem vi que ias ao perfil dela ver-lhe as fotos, andas a toda a hora a ver-lhe o perfil do facebook.” “ – Que sabes tu disso? Acaso espias-me o computador? Eh, pá, esta gaja faz-me mesmo passar dos cornos! Sai-me da frente senão passo-te e ferro”. E tinha ido fazer as malas deixando-a num pranto sem que tivesse o mínimo pingo de piedade.
Aos poucos as visitas dela à faculdade tinham aumentado de ritmo. Ia uma, duas, três vezes até que chegou uma altura que Tiago já sabia que quando saísse para o intervalo ela estaria à sua espera. Os colegas e amigos tinham até dito na brincadeira que lá estava a mãe dele para o vir buscar com medo que ele se perdesse no caminho. Foi piorando sempre, revolvia-lhe o telemóvel à procura de indícios de conversas com outras raparigas, via-lhe os bolsos, controlava cada passo dele e agora por último invadia-lhe o computador. Ligava-lhe a toda a hora e se não atendia logo era porque estava com outra; fazia mesmo birra como as crianças: amuava, ficava sem lhe falar e já nem o deixava aproximar-se e fazer-lhe um carinho.  Depois, ultimamente tinha perdido aquele encanto de quem tem autoestima, passava a vida a pôr-se em baixo: “ Vês com estou horrível? Olha só estas banhas! Não me toques, tenho de perder uns kilos primeiro. Ele chegou mesmo por algumas vezes ouvir um ruído na casa de banho “HuggghtHugght…” e suspeitou que andasse a vomitar para manter a linha que estava já no limite, tão magra estava. Falou então com a sua melhor amiga que era de Viseu – como eles – e que se mantinha apesar de tudo ao seu lado. Fê-la prometer que a levaria ao hospital e que não lhe diria ter sido ele a propor-lhe o tratamento porque senão ainda se punha com coisas. Ele desconfiava que ela tivesse bulimia essa epidemia dos tempos modernos, acreditava que se aproximava já de estar anorética, mas ela achava-se gorda. Mas porque é que ela não entendia que, para ele, ela era muito mais do que um corpo? Contava as calorias, passava horas sem comer, nunca tomava o pequeno almoço e quando vieram as praxes e os jantares aí então é que ficou paranoica: “ -  Já viste amor, agora vamos para aqueles restaurantes que só sabem servir aquelas carnes cheias de gordura. Esta semana estava a correr tão bem a dieta, só estava a comer coisas saudáveis”  “  - Depois continuas, são só uns dias…” “ – Isso dizes tu, mas vai-se já notar nas calças. Como posso aparecer depois ao pé das minhas amigas, todas elegantes…” “  - Fonix Sara, tu deves andar a ver mal, és a mais elegante de todas.” “ Oh, és mesmo um fofo! E deu-lhe um beijo lento e apaixonado. Mas isso tinha ficado muito lá atrás e ele agora não aguentava mais as desconfianças infundadas dela.
Acordou. Acordou gelada a meio da madrugada e com um sabor acre na boca, ou seria o cheiro do vomitado que ainda não tinha limpo? Era também doce; um sabor agridoce era mais correto dizê-lo. Levantou-se cambaleando. Tinha dores de estômago, bastante intensas agora que estava completamente acordada. Gemeu e dirigiu-se ao espelho para ver uma cara completamente cadavérica, não era ela, não podia ser, ela estava gorda, gordíssima… gemeu novamente, as dores agora eram insuportáveis. Tossiu e quando se foi lavar viu que tinha sangue na boca, aí estava a origem do sabor: sangue misturado com o resto do vómito que nem tinha retirado da cara. Já não era gente. Viu-se ao espelho por inteiro e pela primeira vez conseguiu vislumbrar o esqueleto em que se tinha tornado. Bem lhe diziam os amigos, bem lhe dizia ele, o seu amor perdido para sempre… cambaleante foi-se arrastando até ao quarto a custo, tirou um cartão que tinha guardado há uns tempos e que dizia que podia ligar a qualquer momento em caso de urgência. Ligou.
- Estou? Sim? Quem fala? Estou? Sara? Pode falar, sim? Vou já enviar alguém. Sara? Sara?...

                                                       Fim
Maria João Varela





sábado, 7 de dezembro de 2013

Velhos

Olha-me bem nos olhos, olha bem fundo nos meus olhos de velho cansado e triste; o cansaço é do peso dos anos mesmo, mas a tristeza, ai, a tristeza essa é do abandono. Sim, eu até posso estar abatido pelos anos de trabalho, poderia até ter uma lágrima fugidia que me escorresse pelas faces enrugadas que seria somente a saudade dos tempos idos de juventude, mas se eu choro e a alma se me encarquilha tanto quanto a pele é pelo abandono.
Eu sei que tens medo. Tens receio de me olhares e te veres espelhado, veres que também este será o teu destino quando a fuga não for mais possível e tiveres de encarar a velhice, assim, cara a cara, quando ela te mostrar que te apanhou; não darás conta, ela surripia-nos a juventude de um dia para o outro: um dia somos novos, no outro velhos. E sabes porquê? Porque fugiste. Porque te esquivaste a olhar-me, baixaste o teu olhar e isso é simplesmente sinal que te rendeste. Cada vez foste  aparecendo  menos e menos vezes, privaste-me da tua companhia e privaste-te de ires convivendo com ela de modo a lhe preparares a chegada, aos poucos para não doer.
Não te iludas! Sendo bom sinal que vivas terás de a enfrentar e só os homens e mulheres de coragem se atrevem; és cobarde, pois.
Já não sirvo para nada, pensas; mas enganas-te. Se pelo menos me deixasses falar-te, me ouvisses – não muitas, mas algumas lamurias – saberias como é quando ela te apanhar e te rachar os ossos e esgaçar a carne, ah ela vai fazê-lo, não te iludas, se viveres ela fá-lo-á.

Aos mais sortudos lá se arranjam lugares próprios onde se podem lamuriar uns com os outros, mas aí sim, as lamúrias de nada servem todos já foram apanhados por Ela. Não tem dó nem piedade essa maléfica criatura que não podia deixar de ser feminina pois tal como no amor, também te endromina aos poucos, mas quando dás por ela estás completamente apanhado, por muito que tentes não escapas à teia que engenhosamente te teceu com a paciência que só tem quem se sabe infalível nos intentos. Por isso, far-te-ia bem teres coragem de homem e olhares-me o corpo curvo, as peles de sulcos profundos e o andar arrastado e muitas vezes acompanhado dos ais próprios da idade, ensinar-te-ia como ao abrires-Lhe as portas aos poucos e Lhe sorrires ela perde um pouco aquele ar aterrador e se faz acompanhar duma amiga bem mais agradável e a única capaz de tornar os seus diálogos suportáveis; se viesses, ensinar-te-ia e eu  já só teria o corpo engelhado, a alma não ; mas tu foges como eu fugi e assim só te resta seres apanhado como eu fui: um dia olhei-me ao espelho e vi que ela tinha chegado…

Maria João Varela



quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Não digas adeus

Moviam-se. As sombras brancas, diáfanas e incorpóreas faziam movimentos ondulatórios, numa espiral ascendente criando um ambiente propício ao delírio. É verdade então que existe vida após a morte, pensei. Não conseguia ver mais nada para além dos movimentos de um lado para o outro. Senti. Então aqui também se sentia dor… Senti uma dor cortante na garganta que descia até ao estômago onde era mais e mais insuportável. Um dos anjos aproximou-se, mas não lhe descortinei as asas; somente nas pontas de uns dedos peritos uma luz forte que aproximou dos meus olhos enquanto gritava: “ Acordou, já acordou”. Os outros anjos aproximaram-se e um começou a falar comigo. Então era assim, e eu que sempre tinha pensado que no outro mundo comunicaríamos com o pensamento e não por palavras, tantas vezes enganadoras daquilo que se sente.
Pudesse eu não ter aquela dor difusa que além do corpo obnubila a alma e não estaria agora ali, se eu pudesse não ter perdido o aroma das rosas, ou o sabor de uma maçã madura… como eu gostaria de não ter perdido o teu sorriso quando me desejavas bom dia, mas por que pensava ainda no que tinha ficado lá atrás?  Ninguém sentiria a minha falta, que diferença faria ao mundo a minha ausência, um fracasso de mulher que nem uma alegria era capaz de dar aos filhos?
 - Consegue-me ouvir? Disse-me um dos anjos que se tinha aproximado ainda mais. Quis responder, mas a voz estava presa, parecia que ficava na caixinha dos pensamentos sem se despegar. Mas saiu-me a custo um “sim” numa voz que não parecia a minha, uma voz desconhecida e fraca aos soluços.
 - Vamos levantá-la um pouco está bem? E pegaram-me dois anjos puxando-me até que fiquei recostada numas almofadas que via agora pela primeira vez, começando aos poucos a ver uma sala com muitas máquinas; uma sala de cuidados intensivos de um hospital.
 Se eu pudesse não te roubar o sorriso… mas o sol apesar de tudo continuaria a brilhar, apesar dos muitos sorrisos que todos os dias se apagam.  Como eu amava, num tempo longínquo quem nunca me amou a mim. Que importava tudo isso agora? Só queria descansar; a lassidão tomava conta de um corpo que insistia em se fazer presente, o mundo virava negro, nem negro se podia dizer que era, mais um cinzento, sem cheiros nem coloridos, tomara eu não te roubar a alegria…
Dormia e acordava no que parecia uma eternidade, e a cada acordar tudo se ia consubstanciando, tornado real, uma realidade a que quisera fugir por não ter mais forças para lutar. Não tinha morrido, nem tampouco estava no céu cheio de anjos, tinha falhado a única coisa que me sentia com forças para fazer. Morrer.
As mãos desencontradas tentavam levar a colher à boca na tentativa de lá enfiar uma colherada de iogurte que a enfermeira bem-intencionada, com uns olhos enormes de bondade, me tinha dado para ver se eu conseguia comer sozinha. Teria de reaprender a comer e a andar nos próximos tempos; conseguiria reaprender a lutar?
Se ao menos os teus olhos não me olhassem com reprovação, pudesse eu escolher e não te daria o desgosto de me olhares sabendo-me capaz de me ir sem te dizer adeus…

domingo, 1 de dezembro de 2013

TIC-TAC

6.45. TIC- TAC, TIC-TAC. Começou o dia já atrasada, como sempre começava. Mal se olhou ao espelho enquanto se enfiava já debaixo do chuveiro para espantar a preguiça que teimava dia após dia em fazer-lhe companhia à mesma hora da manhã. Não sentiu a água morna que lhe acariciava a pele, nem a espuma macia e menos ainda o cheiro do perfume suave que lhe penetrava as narinas. Por que razão corria? Havia tanto a fazer, tanto caminho a desbravar, ou seria somente medo de parar e se olhar? Não pensava nisso. Não tinha tempo, não tinha tempo… mas, e se simplesmente abdicasse dos dias repartidos, se simplesmente pousasse de vez essa máquina de contar vidas, que reparte o tempo em frações tão ínfimas que parece que nos escapa, tal como escapa a areia de uma ampulheta. TIC-TAC. TIC-TAC.
Não via interesse nas deambulações mentais matinais, era somente a sua incessante mente  nas suas conhecidas distrações, mas a verdade é que quanto mais corria mais tinha de correr e até o lenhador sabe que, por vezes, é preciso afiar o machado para continuar a cortar a lenha.
Por esta altura estava já a enfiar pela garganta abaixo sem sequer saborear o seu pequeno almoço, se é que se pode chamar isso a uns flocos mal amanhados sabe-se lá contendo o quê e corria batendo a porta do pequeno apartamento enquanto deixava o gato a lambuzar-se pachorrento com o seu filet mignon. Sorte a dele de ser gato e não ter de salvar a sua espécie; cada um salvava-se por si só, inteligente espécie esta.  Mas ela não teve tempo  nem de lhe passar a mão no pelo cinzento nem de lhe sentir a  suavidade felina ou  sequer de lhe apreciar as formas de gato  pois avançava já escadaria abaixo enquanto enfiava a manga do casaco  pois o elevador, como sempre que o esperava, roubava-lhe mais uns segundos. TIC-TAC. TIC-TAC.  Saiu.
A corda com que lhe tinham dotado a existência continuava na sua marcha lenta e inexorável a reduzir-lhe os dias e, este boneco de corda que, por acaso se chamava Maria, nem se dava conta de que ao acelerar a marcha também a corda, na necessidade premente de corresponder ao esforço, se gastava  na fugacidade dos dias ainda por gastar… TIC-TAC. TIC-TAC.
Estava um frio invernal por isso aconchegou o cachecol e entrou no carro com gelo no para brisa. Não apreciou o sorriso que uma criança trazida pela mão do pai lhe deitou, não teve tempo pois olhava o relógio na tentativa, sempre falhada, de chegar a horas. Que tirânico objeto que lhe roubava a vida sem que ela se importasse… não tinha tempo.  Não olhou um sem abrigo que se tentava aconchegar no seu buraco frio e húmido, nem ajudou uma  velhinha a atravessar a rua, ia tão apressada para salvar o mundo. TIC-TAC. TIC-TAC.
Não ouviu os risos adolescentes, nem apreciou no céu de inverno um sol tímido a despontar, não correspondeu ao bom-dia do padeiro – nem tampouco lhe apreciou o cheiro de pão quente acabado de fazer – não. Apenas gastava a corda olhando um futuro distante e prometedor enquanto deixava escapar o presente, por entre uns dedos frementes de uma vontade louca de viver, vontade essa sempre adiada pela força do pequeno e constante TIC-TAC. TIC-TAC.



quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Esquizofrenias

Toca o sino, mia o gato, viraram-me  os sapatos : quem vem lá para me  matar? Que  incompreensão, quem me irá salvar?  Já não sou quem era, quem naquela esquina me espera? Vejo ao longe alguém espreitar… quem me quer tramar? Nada é como era dantes. Porque está tudo tão mudado, tudo fora do lugar? O céu desceu, a árvore caiu, o mar desapareceu… e eu… saí da hibernação. É hora de  lutar, todos me aguardam em loucos anseios, vejo o sol  em brasa que se vai deitar.
Não paro, não posso parar! Aguarda-me o mundo para o salvar. Quem me levou o meu eu? Quem me roubou os sentimentos, os pensamentos, como tudo o que era se foi… estranho mundo que mudou, quem eu era; já não sou… foi o vento que o levou. Ponho asas e em loucura procuro o rumo, não sei se fico, não sei se vou. Sei que foi por mim que tudo isto mudou; não há chão para caminhar, está tudo fora do lugar, do lugar, do lugar… coisa estranha, este vazio, tenho calor, tenho frio, estou feliz, alegre, triste, que verdade me assiste?
Que dizes? Deliro eu? Quem és tu? De onde vens, porque vieste? É que este espaço é meu, tudo é meu, tudo é  meu, meu, meu…vejo atrás daquela porta alguém para me matar, quem me salva deste inferno? Deste agror, deste temor. Verto sangue, verto dor, quem me levou o meu eu, eu, eu… estereotipias verbais? Que dizes?  Estarás louco? Vou-me, o mundo espera para que eu o vá salvar.

Devolvam-me os pensamentos! Devolvam-me os sentimentos! Quero voltar a ser eu. Quero o mundo como sempre: céu azul, céu cinzento, cores garridas nas janelas; quero a árvore erguida, o sol no mesmo lugar; foi-se a lua foi-se tudo. Quem me quer voltar a matar? Já morri, apodreço… tudo fora do lugar… toca o sino, mia o gato, viraram-me os sapatos, sapatos, sapatos… vem alguém para me matar, quem me devolve ao meu lugar?

Lembra-te

Que histórias te contas para te embalares
 quando as horas dos ventos tempestuosos
 só te querem derrubar?

Que versões da tua história guardas
 e pincelas de cores brilhantes para te mimares?
Que te dizes? Que te contas dos teus feitos
das vitórias já passadas; ainda te lembras?
E, quando as dores te abrasavam, persististe.
Ainda te recordas, das horas tristes?

E, quando chorar era inelutável
E de mãos trementes as lágrimas enxugavas
Para degustares  o mel por detrás do sal,
que as tempestades amainam e o sol aguarda…



quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Incongruências pias

Perguntava-me amiúde porque não eram elas tão  púdicas por dentro como por fora. Saias protegendo dos desejos pecaminosos da carne, pesados véus a cobrir os cabelos, que numa, eram de um ruivo de fazer inveja a muitas que tinham de lutar pelo amor de um homem, mas ela não, já tinha o seu eterno e fiel e fizesse ela o que fizesse nunca a renegaria como esposa; e aí reside todo o mal pois não tendo um marido a quem dar satisfações para quem seria ela melhor pessoa? Um marido virtual não tem a mesma força de persuasão apesar de tudo. Sempre me perguntei por que não eram as freiras melhores pessoas do que todos os outros; não era o voto de amor ao próximo a característica mais essencial da sua profissão? Incongruências pias pois lá tempo nas ladainhas de rosários passavam elas muito… mas não se lhe viam que surtissem efeito pois até me parece que em termos de percentagem, lá dentro do lar de meninas carenciadas a que presidiam, elas se saiam mal no que às características de um bom coração diz respeito. E isso afastou-me da religião. Não iria eu a um médico que não soubesse medir a tensão, ou a um sapateiro que me deixasse as solas dos sapatos rotas….
Estas incongruências sempre me incomodaram e sempre desconfiei por isso mesmo de epítetos e etiquetas que se colam deixando que se ajuíze da conduta de alguém antes de lhe conhecer os atos: são perigosos. São-no porque causam enganos. Um desses enganos é quando somos pouco mais do que crianças e vemos tanto aparato santo junto, se um destes expoentes máximos da moral e bons costumes nos diz que não valemos grande coisa temos tendência a acreditar na mentira; mesmo quando nos obrigam a passar nove horas por dia a fazer rendas finíssimas com que as madames da sociedade disfarçam as angústias casamenteiras e com que nós furamos os dedos, nós acreditamos que é para nosso extremo bem mesmo que não ganhemos um chavo e tenhamos de pedinchar para ter direito a um champô… meses e anos assim, passei-os eu porque apesar de tudo tinha um teto e um prato de massas com umas gorduritas a boiar; ah, é que o filet mignon ficava no andar de baixo, covil das lobas, que tinham feito voto de pobreza, mas deviam na altura estar a pensar em nós…
Se queríamos vê-las rabear fazendo esvoaçar o véu era quando o padre vinha lá ao lar: espalhavam-se odores que sempre me pareciam afrodisíacos e os sorrisos rasgavam-se, as vozes amansavam e as mãos aproximavam-se dos terços numa devoção fingida e beata que já não convencia ninguém. A cada uma delas lhe conhecíamos o cavaleiro de carne e osso porque o virtual no que toca a desejos e anseios muito humanos deixa muito a desejar.
Assim se foi a réstia de esperança que eu pudesse ter em salvações impingidas por outrem, se alguém me anuncia a salvação em taças sebosas de pecado só posso desatar a rir com tal disparate, é que isto de ser padeiro e deixar o pão para os outros amassarem não traz clientes com fome…




sábado, 26 de outubro de 2013

Avô

Sentavas-te a meu lado e nada dizias, talvez só por vezes te saíssem as palavras: “Minha carochinha” num amansar da alma carinhoso enquanto me asseguravas ser a tua neta favorita de entre nove; nada mau, pensava eu enquanto te olhava a figura pequena onde transparecia uma alma enorme que abarcava a minha curta vida. Tinhas sido mau, diziam-me, quando te entregavas à bebida, mas eu que não vi, nunca acreditei nas más línguas, ou talvez não quisesse acreditar que pudesses ter desvarios e tivesses com eles maltratado alguém; logo tu, o mais doce que jamais conheci. Coisa engraçada essa da minha vida, os parentes fingidos são os que mais gosto pois diziam-me que não eras mesmo meu avô de sangue. Que importa isso? Para sempre recordarei o teu sorriso, e a tua ternura perdurará nas lembranças de alegrias raras numa infância maltratada .  O homem da casa era ela, a minha avó, habituada aos rigores dos  verões alentejanos, rude e sem carinho tinha-me chamado “o trambolho” quando a mãe lhe dissera estar grávida de mais um filho sem pai. Ela dera-me o sangue,  tu a alma. Recordo os risos ao dizeres que tinhas entrado no Portugal dos Pequenitos sem pagar bilhete porque te confundiram com um garoto, baixaste a cara e só viam a tua figura de miúdo reguila que libertava depois gargalhadas quando te punhas a contar essas piadas. E bem lembro que ao longe também eu te confundia com um que a avó trouxesse pela mão para nos fazer uma visita, numa das raras ocasiões que se libertava da vergonha de ter uma filha doente e cinco netos de três pais diferentes e nos entrava porta adentro com o ar de tudo querer pôr em ordem, e não é que ela fosse maior do que tu avô, mas era a postura, a força daquela personalidade dura e rude que te fazia parecer ainda mais criança. Como se deixava ela guiar por ti montada na  lambreta na qual passeavam por toda a Espanha estou eu para saber, só sei que as raras ocasiões das visitas coincidiam muitas vezes com a chegada de onde era comum trazer sacadas de caramelos para adoçar os beiços e quando te sentavas e me acompanhavas nas guloseimas com algum chupa- chupa na boca, nem eras para mim um adulto, quanto mais um avô, eras simplesmente um amigo, uma outra criança que partilhava um doce às escondidas enquanto os adultos se entregavam a assuntos mais sérios. Só repetias: “ Minha carochinha”. E as palavras adoçavam mais do que o caramelo que tinha na boca…


segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Saboreia-me

Saboreia-me
como se eu fosse  chocolate,
em lentas lambidelas para me extraíres o sabor;
como faz o colibri nas pétalas da flor
como quem não quer parar
sem todo o  doce acabar.

Beija-me, encanta-me,
com lábios de sofreguidão,
mas sorve-me  gota a gota e se o prazer se esgotar,
fecha os olhos e sente,
que mesmo sem estar presente deixo-me saborear.

Não te apresses,
vai descendo lentamente  
e deixa que o sal da pele tempere o amor crescente,
sente um pouco de cada vez…
Sente o calor aumentar numa onda,
num suspiro, num vaivém ondulatório
em vibrações de prazer
que só sente quem espera o momento
em que o arrebatamento se impõe
e deixa de fazer sentido a espera.

Enrola-te a mim devagar,                                                
vai chegando e num abraço apertado
cura-me a dor do mundo
para dele me desligar;
sente o pulsar ritmado,
vê-me os passos inseguros vê-te no meu olhar.

Que te dizem os meus olhos?
Que não te escondem segredos,
que te aguardam em degredos
 com medo da solidão que se instala
 sempre que é longa a espera.
 E os sentidos? Sem o teu aroma, o teu cheiro
que se espalhava pelo quarto
são inúteis, vãos, efémeros,
foram-se, aliás; correm ao teu encalce
deixando-me a mim para trás.


domingo, 13 de outubro de 2013

Onde para o amanhã? ( Contos de luz & trevas)



Pegou-me na mão e com uma voz poderosa ordenou: “Escreve!”. Olhei em volta, mas não consegui ver a origem do som, aquele som metálico que com estalidos assustadores me dava tal ordem, nem tampouco avistei quem me pegava na mão que obedientemente começou a gatafunhar primeiro a medo, depois com uma fluência de torrentosas palavras que assustava, uma verborreia assim não era comum, mas assenti ouvir e contar a história que a voz tanta necessidade tinha de contar, deixei sair pelas pontas dos meus dedos as palavras que se lhe soltavam como se soltá-las fosse a missão da sua vida.
                                                             
                                                                    *
Assomou à janela, mas o cenário devastador impeliu-a com violência para dentro. O primeiro a ruir tinha sido o farol, a falta da sua luz orientadora tinha sido a primeira manifestação da catástrofe iminente e sem que nada pudesse fazer Inês viu-o desmoronar levando atrás todas as outras coisas até ali importantes, imprescindíveis mesmo, para continuar a viver. O céu cinzento de inverno e o gelo que lhe ameaçava os ossos frágeis obrigaram-na a voltar a enrolar-se na cama, os caminhos labirínticos estavam cada dia mais intrincados e sem o farol jamais conseguiria sair dali. Também já não tinha importância, sair para onde? Para quê?  Sem encontrar sentido nas próprias questões que ficavam sem resposta e com um cansaço que se origina só no próprio ato de pensar fixou o olhar sem brilho no teto e assim ficou sem nem mesmo saber as horas ou os dias que se sucediam numa cadência igual, inúteis e lentos, todos seguidos uns aos outros como contas de um rosário que alguém manuseasse entre os dedos num ritual de  oração repetitiva. Era como se o tempo e espaço fossem reticências perenes onde a vida aguardava a vez…
Ouvia os passos da  mãe pela casa e se pudesse sentiria pena dela, mas já nem isso era capaz. A compaixão já não morava dentro dela, aliás nem isso nem outra coisa qualquer, estava oca, tão oca quanto o tronco seco e infértil da velha árvore que jazia agora sem folhas no jardim abandonado que se podia avistar da janela, oca como todos os que a rodeavam estavam como se o que os preenchesse fosse o amor que outrora nutrira por eles; talvez que as cores, sabores e substância das coisas se adquira somente quando lhes dedicamos amor…
Sem o farol andava, andava , mas só em círculos viciosos e voltava sempre ao ponto de partida sendo que a cada volta dada era uma profecia autorrealizada do insucesso da viagem: jamais conseguiria sair dali, não sabia como lá tinha ido parar, mas também não tinha importância, jamais voltaria a ter amanhã para caminhar… então, sendo o esforço em vão e o cansaço que acompanhava cada tentativa extremo, a cada viagem  que falhava mais desanimada ficava.
A mãe, por estes dias, esforçava-se por lhe trazer todos os petiscos que sempre lhe tinham agradado, por lhe aromatizar o quarto, pôr música suave, dava-lhe carícias prolongadas e trazia-lhe livros que se iam amontoando na mesinha de cabeceira juntamente com a comida que não comia porque sabia a papel e era áspera arranhando-lhe a garganta. O mundo já não era mundo, nem havia qualquer substância nele pois o sol tinha morrido e só o cinzento e o frio se espalhavam sob a pele insensível às carícias e entranhava-se nos ossos e na própria alma. Porque a acarinhava a mãe, pensava Inês, não saberia que ela não poderia sentir as carícias pois flutuava agora sem substância numa contradição aparente onde, aqui, era precisamente a falta de matéria que lhe pesava como chumbo?  Como poderia o nada pesar desta forma paralisando-lhe os movimentos que se tornavam trôpegos e inúteis?
Ouvia, por vezes, vozes distorcidas que lhe chegavam de muito longe como se fossem vozes sem dono, sons insignificantes, mas que pareciam martelar-lhe o cérebro :
- Ela está muito mal, mal, mal, mal… tem de a obrigar a comer, é urgente, urgente, urge… que se interesse ou deseje alguma coisa. É urgente que ame, só o am…or a poderá salv…ar. Não precisa ser amor romântico, pode ser amor a um projeto, uma paixão, paixão, paixão, …xão qualquer. Continue a dar-lhe a medicação.
Seguidamente ouvia o choro baixinho da mãe, os passos arrastados pela casa e uma emoção de desesperança invadia-a. Porque estava ainda ali? Porque se arrastavam os dias sem esperança?
Tinha sido uma rapariga cheia de vida e projetos com uma força de vontade incrível.
 - Mamã, vou para a faculdade.
 - Tens média para entrares, filha? Olha que as nossas posses não são muitas não te conseguiremos pagar as propinas, a privada é impossível só se entrares na pública.
 - Não te chateies com isso, mãe. Sou eu que quero, tenho de lutar por isso.
Ia e fazia. Era assim, não havia entraves nem obstáculos capazes de a impedir. Tinha uma luz, um caminho, tinha um futuro…
A energia que exalava influenciava os que privavam com ela, sempre disposta a fazê-los acreditar nos sonhos, a nunca desistir sem tentar.
Saía para grandes caminhadas depois de vestir a indumentária dos artistas, colocava os olhos de poeta para observar a própria essência das coisas não sem antes se aperaltar com o espírito de turista sempre curioso e atento a tudo o que se passa. Voltava tarde depois de ouvir o marulhar das ondas no seu monólogo perpétuo, de observar o voo picado das aves, mas voltava sempre rejuvenescida, serena e confiante. Não naquele dia de finais de Abril, um dia que tinha amanhecido a ameaçar chuva, mas sem que a mãe a conseguisse demover da caminhada pois como ela própria tinha referido queria ser castigada pela chuva, cheirar a terra molhada e a hortelã e viver como se não houvesse amanhã, tal como os insetos que só vivem um dia. Já tinha anoitecido há muito quando a mãe conseguiu convencer o pai a sair à sua procura:
 - Ela nunca tarda tanto, vai lá homem e traz-me a pequena.
   - Qual pequena qual quê? Já sabe bem o que faz, deixa-a estar e que venha quando quiser – replicou o pai coçando um bigode de vassoura que parecia ter sido pintado com uma pincelada distraída de algum artista amador sem experiência pois a alvura exagerada dava-lhe um ar de caricatura. A mãe não o deixou descansar os ossos e obrigou-o a sair de lanterna na mão montanha acima à procura da filha. Só ouviu a ambulância umas horas mais tarde a subir a ladeira quando a ralação já lhe carcomia as entranhas por tardarem as notícias. Inês  tinha sido encontrada seminua, encharcada até à medula e semi-inconsciente. Os indícios eram de ter sido violada e torturada. Estava em estado de choque só  tremia muito e agarrava-se ao pescoço do pai com um grito de desespero travado na garganta.
Nunca falou do sucedido, disse sempre de nada se lembrar e o médico do hospital tinha dito que muitas vitimas sofriam de amnésia após um trauma daquela natureza. As palavras que não disse pareciam querer sair-lhe por todos os lados menos pela boca: pelos olhos que perderam o brilho, pelos membros que perderam tonicidade e consistência, pelos cabelos baços e quebradiços e a pele sem viço. A  inercia instalou-se e nunca mais teve alegria. Deixou a faculdade, deixou os amigos que a pouco e pouco iam desistindo de lhe ligar para saírem; mergulhava cada vez mais fundo nos terrores que trazia dentro e a cama era o único e último lugar onde permanecia longos dias e noites sem pedir nem querer nada anunciando um desfecho trágico para tanta juventude que se tinha perdido há pouco mais de um ano atrás. Nenhuma medicação parecia surtir efeito, a mãe até desconfiava que não a tomava avessa que sempre tinha sido a químicos que como sempre dizia nos tornam escravos das indústrias farmacêuticas que açambarcam chorudas quantias à conta da nossa falta de ponderação . E não comia. A mãe lá conseguia a custo que bebesse alguns sumos nutritivos, mas a boca cerrava-se-lhe para tudo o que fosse comida consistente e o corpo outrora de porte atlético devido ao desporto que sempre teimava em praticar era agora uma sombra pouco fiel da figura do passado recente.
O pai um dia na brincadeira tinha-lhe dito que nunca arranjaria namorado pois os homens gostam de mulheres femininas e frágeis e ela tinha os músculos bem torneados e desenvolvidos pela prática persistente e consistente de desporto pelo que ela respondia que também não lhe interessava um cobarde qualquer; tinha de ser bem homem aquele que conquistaria o seu coração.  Seria como ela, amante dos desportos e de metas, amaria a justiça e honestidade e acima de tudo amá-la-ia preenchendo-lhe as lacunas e dando-lhe existência como só um grande amor é capaz.
Todos esses sonhos tinham ficado lá atrás, perdidos nos labirínticos processos mentais e já não faziam parte nem do passado nem do presente, enredado que este estava agora e que se desmoronava trazendo atrás todos os castelos e príncipes e princesas que lá tinham habitado, desmoronava-se também a esperança de um curso superior em belas artes onde desenvolveria a sua vocação de artista capaz de ver para além do que os olhos veem e do que os sorrisos disfarçados encobrem; mesmo o futuro que sendo impalpável e inexistente é crucial para que exista algo mais que uma verborreia corporal a indicar que estamos vivos, essencial para que façamos uma pequena ideia para onde nos encaminharmos e como um clarão nos indica o caminho, tinha desaparecido. Esse amanhã sempre presente para que possamos viver e sonhar tinha-se desmoronado em primeiro lugar por não ser possível acreditar num  mundo onde as pessoas não são pessoas, mas monstros à espreita para nos devorar, onde sendo primavera ou verão os invernos são contínuos e o ar rareia, onde só faz frio, onde o sol se foi deixando um breu eterno no seu lugar, onde os pássaros não cantam nem têm asas para voar, num lugar desses não pode haver amanhã porque pensá-lo é já vivê-lo com todos os seus terrores à espreita, assim onde havia amanhã existe agora um  presente perpétuo , horrendo e incompleto para viver.
Eram esses pensamentos que assombravam a mente de Inês nesses dias e noites que passava inerte só à espera que o terror passasse enquanto se adensava, enquanto a mãe se arrastava sombria e angustiada pela casa e o pai definhava de impotência. Ah, se ele soubesse quem tinham sido os autores de tamanha barbaridade, encarregar-se-ia ele próprio de os degolar; mas a sua menina nada dizia apenas morria aos poucos, soçobrava como um navio naufragado que apenas serve de poiso às gaivotas.
Acordou Inês sobressaltada naquela noite e uma força que parecia surgir do nada, porque ainda não comera, fê-la precipitar-se escadas abaixo e sair para o frio da madrugada. Surgia uma luz muito ténue que parecia emergir dos confins da terra e que a convidavam a sair do labirinto que tantas e tantas vezes tinha pretendido atravessar sem nunca o alcançar. Tateou o caminho e tropeçava a cada passo, mas persistia com uma réstia da determinação de outros tempos, caía e as roupas rasgavam-se nos galhos secos dos arbustos que circundavam a casa. Os ruídos noturnos assombravam-lhe as memórias e num relampejo de consciência viu a nuca aterrorizadora do seu violador. Fraquejou aterrorizada, mas ouvia a voz que serena, mas firmemente a incitava a continuar o caminho que ia subindo agora com o algoz ao seu encalce. Corria agora mais depressa e as pedras debaixo dos pés descalços feriam-lhos enquanto o som longínquo de uma coruja a fazia tremer. Embrenhava-se mais e mais no ébano bosque com a crescente visão de uma luz ao fundo e qual inseto que se deixa seduzir, prosseguia com o coração descompassado pela corrida, os cabelos baços dos meses bolorentos que tinha passado sem sair agora desgrenhados e emaranhados pelo vento e pela corrida, tropeçava mais e mais mas mantinha a visão da luz que parecia crescer. Olhava em volta e os olhos habituados agora à luz noturna vislumbravam perfis de figuras fantasmagóricas e quando a vontade de voltar para trás, para o porto seguro dos braços da mãe era maior do que a vontade de chegar ao farol uma voz calma e quente orientava-a com segurança para a liberdade. Os passos do perseguidor faziam-se ouvir como se viessem de um tempo já passado que se tornasse presente num gesto inusitado de prestidigitador, martelavam o chão num som que ecoava do passado para o presente e à medida que se aproximava um cheiro intenso ia-lhe ofendendo as narinas, um cheiro acre e nauseabundo penetrava-lhe as entranhas que se dilaceravam na aproximação do perigo iminente e somente aquela voz, qual sopro de anjo lhe assegurava que continuar era o melhor a fazer.
Repentinamente um clarão de luz, intenso e vibrante que quase a cegava fê-la ver o rosto quase desfigurado da figura ameaçadora que se tinha aproximado o suficiente para que  a visse e que  tinha durante tanto tempo perseguido sem se deixar ver. Era um rosto grotesco, assente num pescoço gordo e seboso de verdugo, pele castigada por mil sois, um lábio leporino e uns olhinhos de rato de esgoto; as mãos calejadas das muitas labutas rasgavam-lhe as roupas com sofreguidão enquanto a figura se ia adensando e  consubstanciando na figura dos terrores noturnos que nunca se deixavam ver pela luz diurna. Era forte e tinha-a dominado sem dificuldade, deixava sair pela boca deformada uns grunhidos que nada tinham de palavras.
De repente transformou-se em dois e depois três, multiplicava-se em visões meio distorcidas e ria descontroladamente com uns dentes de hipopótamo amarelos e castanhos  ponteados numa boca que subitamente se tornava atraente e a espuma de besta selvagem desaparecia para dar lugar a um rosto de jovem bem parecido e mais um e outro… As sombras fantasmagóricas tinham-se tornado nos rostos que eram agora nítidos, todos conhecidos seus. Riam muito, embriagados,  e investiam toda a sua fúria animal nela enquanto a apalpavam no corpo todo com dedos que a desvirtuavam invadindo-a sem consentimento.
Inês tentou levantar-se e fugir novamente mas os ramos secos tinham-se transformado em garras que lhe agarravam os braços, rasgando-lhe a roupa deixando os seios jovens descobertos que ela tentava tapar,  arrancaram-lhe as calças e cuecas de uma só vez e sentiu-se penetrada com violência uma, duas, dez  vezes, milhões de vezes… O seu corpo agora era a encarnação de todos os corpos e todas as violações que já tinham acontecido e que viriam a acontecer consubstanciavam-se nele e já não havia fronteiras entre ela e todas as violadas, eram uma só, e essa jazia submissa completamente dominada. (Os médicos que posteriormente a tinham observado no hospital tinham dito que devido à violência do ato não poderia nunca ter filhos.)
E de repente começaram a surgir mais, uns velhos outros jovens, alguns bem vestidos, outros esfarrapados; eram todos bestas do inferno, mas eram todos os violadores que já alguma vez tinham existido ou que viriam a existir. Por fim, começou a vê-los de lado, por trás, do avesso e lançavam centelhas vindas do interior e ela conseguiu vislumbrá-los por dentro e conseguiu enxergar que também eles de alguma forma eram vitimas… Inês sentia-lhes o arfar, a transpiração deles na pele dela e o nojo fê-la vomitar e engasgar-se no vómito fazendo-os sair de cima dela  não sem antes a deixarem quase inconsciente de dor ao espancarem-na enquanto gritavam barbaridades: « sua puta, tinhas a mania que eras boa, não eras para mim, aguenta-te agora», os outros aplaudiam e numa galhofa pegada entravam e saiam dela deixando-a esventrada, maltratada em todas as dimensões em que uma mulher o pode ser, de dor e de humilhação, mas também de vergonha que a partir desse dia a perseguiu e fazia com que sentisse como se todos os holofotes estivessem focados em si, como se todos a olhassem julgando os seus movimentos e a desnudassem com um olhar ficando somente a mácula no lugar de vestido; por isso se escondeu e não mais ergueu os olhos. Ficou também a culpa como se as vítimas tivessem uma propensão inexplicável para se culpabilizarem dando um prémio aos criminosos pelo crime cometido, transportam um fardo que não deveria ser seu carregando, qual canga, o mundo às costas, um peso que paralisa e torna tudo sórdido e mau.
 As capas pretas dos trajes jaziam num chão molhado da chuva que ia lavando todos os indícios do horrendo crime às quais se juntavam agora trajes de polícia, bombeiro, advogado, professor, padre e todas indumentárias possíveis de imaginar… trajes de gente comum como o são quase todos os violadores.
A luz que a guiara até ao terror de todos os terrores aumentava e Inês levantou-se agora estranhamente mais calma e recomeçou a correr enquanto os soluços que tinham ficado presos na garganta saíam agora livremente sacudindo-a enquanto a libertavam, os olhos deixaram a primeira lágrima tímida cair abrindo espaço para que agora caíssem grossas umas por cima das outras inundando-lhe as faces e lavando-lhe a alma torturada; corria cada vez mais perto da luz que surgia com um brilho intenso e ouvia a voz , a mesma qua a tinha guiado para os seus pesadelos profundamente enterrados e recalcados, ouvia-a surgir no meio mesmo da luz para onde se precipitou caindo num abismo  para o qual  não hesitou em saltar para ir de encontro a ela. Sentiu-se mais liberta do que nunca enquanto caía no abismo rodando, rodando, os soluços ainda desprendendo a dor acompanhados das lágrima e uma voz que lhe dizia  agora com estalidos metálicos que estava a missão acabada.
- Foi muito bem Inês, muito corajosa. Agora descanse.

                                                              *
O meu rosto iluminou-se um pouco ao reparar que o meu corpo se encontrava menos oco, assim como o da minha mãe, que ensaiava um sorriso tímido no canto do quarto:
 - Vais ficar bem meu anjo, agora descansa.
Tinha envelhecido muitos anos num só, amarrava o cabelo com desmazelo para que lhe desse maior liberdade de movimento, as rugas que antes apenas se insinuavam eram agora regos profundos que o sofrimento tinha sulcado nela e os olhos estavam vazios de alma como estão todos os olhos de quem não espera nada do amanhã. Tinha encurvado e o corpo franzino parecia querer encontrar-se com a terra numa entrega ou rendição total como se lutar fosse despropositado.
 Levantei-me um pouco cambaleante e assomei à janela para presenciar um cenário tantas vezes ignorado: o jardim florescia numa manhã linda de primavera, a árvore, uma velha nespereira que me parecera morta estava carregada de pequenas flores esbranquiçadas e o sol tinha voltado dando-me  apetite para lhe beber sofregamente umas quantas gotas.
Aos poucos com a ajuda da terapia fui reconstruindo o mundo que me tinha sido roubado, voltaram os castelos, príncipes e princesas que talvez já não tivessem tanta candura, mas sorriam com sinceridade, as papilas gustativas começaram a dar os primeiros saltos, depois de muitos meses, pela excitação de voltarem a sentir os sabores que se intensificaram pelo longo tempo de hibernação, voltei a ver e sentir o sol que com uma caricia tépida me faz sentir viva, voltaram os sons de sempre, a voz dos meus pais agora menos angustiadas, e principalmente começaram a desfazer-se os labirínticos processos mentais que me faziam desejar morrer sem saber porquê sentindo-me perdida para sempre num caminho que se desenrolava e voltava a enrolar em sucessivos círculos concêntricos vindo sempre ter ao início sem levar a lugar algum, onde sentimentos de impotência e desmerecimento embotavam a viagem.
Depois de muito tempo sentia o peito respirar sem o chumbo habitual que me acinzentava e pesava o ar que entrava agora livremente e à medida que  me ia amando de novo e ganhando consistência, largando a forma oca que durante os últimos meses me tinha caracterizado, tornava-me também mais leve e menos opaca. Também todos os outros à minha volta, amados que eram agora ficavam preenchidos pelo amor que recomeçava a surgir. Os monstros que me povoavam os sonhos desapareciam também tornando o amanhã numa espera aceitável.
O presente já não era apenas construído pulsação a pulsação em milésimos de segundo separados uns dos outros como se se unissem sem nenhum propósito além de manter vivo um corpo que não o queria estar, estava unido por finos fios de seda diáfanos  a um passado que se ia curando, um ontem repleto de sofrimento, mas que à medida que era obrigado a emergir das profundezas ia perdendo  a tonalidade aterrorizadora,  e a um futuro, que se ia desenhando no horizonte, um amanhã que trazia a promessa de ser irrepetível. Renascia.  Via surgir novamente a beleza que só existe para quem consegue vislumbrar para além do hoje, o prelúdio do amanhã que nunca existindo como realidade existe como um pensamento imanente que orienta e dá entusiasmo para um caminho que será percorrido sempre no presente; o velho farol lá estava, como sempre estivera, indicando- me que apesar de tudo haveria amanhã…
                                                              *
  Podes descansar os dedos não te vou importunar tão cedo – disse-me a voz cujo som não era, como de início, tão duro nem os estalidos tão assustadores.  – Cumpriste a tua missão, mas nunca mais voltes a calar o teu passado . Assenti agradecendo à voz que me tinha libertado de uma existência negada, cujos contornos se revelavam agora menos sombrios e, acima de tudo me tinha libertado de uma culpa que não era minha, mas que tinha transportado comigo durante todo este tempo. E a vergonha? Sim, porque tinha vergonha. Uma vergonha que me corroía a alma e ensombrava os dias que me faziam querer fugir de um corpo cujo estigma me acompanhava onde quer que fosse. Ah, se ao menos fosse possível livrar-me dele nem que por instantes. Mas não, não era possível. Ele não era descartável. Ele era eu, a minha própria essência estava da mesma forma manchada.
As folhas escritas estavam espalhadas pelo chão do quarto, ainda húmidas das lágrimas que se soltaram, limpando a tortura, dos meses, ou seriam anos?
Respirava agora com uma leveza desconhecida para mim – ou pelo menos esquecida – e todo o peso do mundo que transportava aos ombros tinha aliviado à medida que mais e mais palavras iam saindo pelas pontas dos dedos, ditadas por uma voz que tinha conseguido calar, mas que só esperava uma oportunidade em que a vigilância enfraquecesse para poder sair, não pelos lábios, mas pelas palavras que tinha garatujado, deixando agora o testemunho de um ato, muitos atos,..

















                                    FIM