segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

O que é que tu vês? ( Contos de luz & Trevas)

Os passos do cão no andar de cima estavam a pôr-lhe os nervos em frangalhos. Eram lentos, calmos, calmos demais até. Podia ouvir perfeitamente as unhas a raspar o soalho de madeira enquanto se passeava como quem se passeia num domingo soalheiro. Só lhe apetecia subir as escadas e apertar-lhe o gasganete, aquela acalmia toda não combinava nada com o seu estado de espírito.
Pela enésima vez veio-lhe à mente a discussão da véspera. Tinham acabado, nem acreditava ainda, mas ele tinha feito as malas e tinha mesmo saído de casa. Tinha outra, só podia ser isso se não teria tido um pouco mais de paciência com ela que estava sempre pronta para lhe ceder aos caprichos. O cão esganiçou lá em cima, talvez o irritante pirralho, o seu dono mais novo, lhe tivesse pisado o rabo. “… também gorda como estou, mais cedo ou mais tarde iria trocar-me por outra, olha só para isto…” E agarrou na gordura que tinha alojada nas ancas enquanto se olhava ao espelho e contorcia a cara num esgar de desprezo.
“ - Dá cá o telemóvel! Proíbo-te de lhe pegares. Chega, estou farto disto!”  “ -  Deixa cá ver, quem é esta Mafalda? Hein? Andas a trocar mensagens com as amiguinhas, não é?”  E atirou o aparelho contra a parede numa fúria desproporcionada fazendo as peças espalharem-se pelos quatro cantos do quarto, desagregando o que antes estava unido; tal como eles também tinham estado outrora… Pensava na discussão que o tinha feito sair de casa, voltaria a vê-lo?  A vinda para Coimbra não tinha sido a decisão mais acertada. Viverem juntos depois de dois anos de namoro adolescente tinha- a desestabilizado. Teria de conviver com ele diariamente, expor-lhe os recantos tantas vezes disfarçados por roupas largas num estilo que se quer próprio mas que só visa o disfarce. Ele vê-la-ia despida, vê-la-ia ao acordar com os cabelos frisados no ar,  com os olhos inchados, o hálito noturno… não, não e não. Mas por outro lado não o queria à solta, com os colegas pelos bares e praxes, sabe-se bem o que se faz com uns copos a mais…
A mãe tinha resistido muito à ideia. “ – Estás maluca, Sara? Achas que te vou deixar ir viver tão cedo com um rapaz? Tira mas é o curso primeiro, depois logo se verá”.  O pai tinha-se abstido, como aliás sempre fazia no que diz respeito a decisões complicadas: “ – Vá lá Sarita, pensa melhor, tira o curso e goza agora a vida.” Mas ela estava decidida e quando se instalou no apartamento que os pais tinham na Conchada, o Tiago foi  viver com ela. A mãe quando descobriu dois meses depois ameaçou tirá-la do curso “ – Pensas o quê? Pensas que vou andar a sustentar os dois?”  “– Mas mãe, o apartamento é só para mim mesmo, ele não gasta as paredes. A luz e água ele ajuda a pagar.” Não havia volta a dar, o mal pior já estava feito e a mãe não teve outro remédio senão assentir.
“ – Que estás aqui a fazer, Sara? As aulas ainda não acabaram, já é a segunda vez que cá vens hoje.” “ – Não vês que tenho saudades tuas estúpido? E tratas-me assim, como se visses um fantasma? Já não me amas?”  “  - Sabes bem que sim! Vem cá!” E espetou-lhe um beijo apaixonado. “ – Agora tenho de ir para as aulas. Até logo.” “ Amas-me? Amas-me?”- gritou-lhe ela deixando-o embaraçado ao pé dos amigos. “ Até logo “ e virou-lhe as costas entrando na faculdade de matemática onde era caloiro. Ela também era caloira na faculdade de farmácia, mas raros eram os intervalos em que não passava pela faculdade dele para ver se o descobria a falar com alguma desamparada que se lhe quisesse amparar no ombro.
O Cão tinha parado de esgravatar o chão, devia estar descansando agora ou talvez roesse um daqueles ossos que servem para limpar os dentes depois das refeições. Irritou-se com o silêncio. Viria ele ainda? Voltaria para ela?  Levantou-se e foi até à janela. O reflexo no vidro fê-la recuar. Estava gorda, como é que ele voltaria para uma gorda e horrível como ela? Não prestava para nada, nem uma dieta era capaz de seguir para manter a linha. “olha-me só para este cu, está enorme, está mesmo grande e estou toda carregada de celulite. És uma pessoa horrível e nem o Tiago nem outro qualquer vai voltar para ti…” Começou a chorar. Estava mesmo de rastos, os pensamentos estavam agora totalmente dominados por tudo o que de mal havia nela, por todos os fracassos, todos os desgostos, todas as insatisfações com o corpo. Vinham rápido sem nenhum esforço como se tivessem estado à espreita de um momento de fraqueza seu para a assaltarem de dúvidas quanto à sua própria pessoa. Avançou até à cozinha. No frigorífico estavam ainda dois hambúrgueres que lhes teria servido de jantar, mas a discussão acabou por deixá-los esquecidos. Aqueceu-os no micro-ondas e come-os aos dois juntamente com um pacote de batatas fritas que abriu. Sentiu-se culpada. “vês burra de merda porque é que ele não te quer? Só comes merdas que engordam”. Chorava e a ansiedade crescia à medida que recomeçava mais um episódio de empanturramento. Quem não visse não acreditava que alguém pudesse enfiar para dentro tanta quantidade de comida. Mesmo a terapeuta que tinha ,contrariada, consultado no hospital se tinha chocado. “ …agora também não vale a pena, perdida por cem, perdida por mil…” aumentava agora o frenesim com que levava à boca e quase sem mastigar engolia tudo o que ia apanhando por cima da mesa: um pedaço de queijo, um pacote de  Oreos  quase cheio, o resto das batatas fritas do pacote. Depois foi a despensa que levou com o seu apetite devorador: dois pacotes de Dóritos , uma torta da Dan Cake, barritas, …. Não parou durante meia hora, as lágrimas tinham parado, só comia, tanto que lhe doíam os maxilares. Ia engordar dois quilos só hoje. E se ele voltasse? Repararia de certeza que estava mais gorda. Correu para a casa de banho e num gesto cada vez mais repetido levou os dedos à boca e devolveu à sanita,  num esforço que lhe arrancava o estômago do lugar e quase lhe faziam os olhos saltar das órbitas, o conteúdo do estômago feito bolo alimentar. Os vómitos ouviam-se pela casa afora: “HuggghtHugght… HugghtHugght… HugghtHugght…” no final só um silêncio e uns soluços baixinhos, sentidos e a noite que invadia a casa de banho e o resto do apartamento.
Tiago não veio naquela noite, nem na seguinte. A verdade é que não veio mais. Este desfecho era mais do que óbvio, a terapeuta que uma amiga -  a única que se mantinha ao seu lado -  tinha insistido para que procurasse tinha-a alertado: “ – Não vê Sara, que o Tiago não vai aguentar as suas perseguições por muito mais tempo?” “ - Eu sei doutora, mas que quer, eu não consigo parar! Estou muito bem e de repente penso que ele pode estar a falar com outra e tenho de ir verificar. Sabe, é mesmo mais forte do que eu… que hei de fazer? Há dias encontrei-lhe uma mensagem no telemóvel, disse ser de uma colega, disse-me que era para um trabalho de grupo.” “ -   A Sara sabe que há muitos trabalhos de grupo, é normal que esteja a falar verdade.” “ – Eu sei como isso é! Primeiro um trabalho de grupo depois um copo e pimbas. Com tantos rapazes no curso e tinha logo de fazer os trabalhos de grupo com raparigas? Não. Agora já o fiz prometer-me que não falava mais com ela.” “ –  Só quero que saiba que isso não vai resultar, ele vai acabar por se fartar das suas imposições.” “  - Que posso eu fazer, então?” “ -  A única coisa é aprender a viver na incerteza…” Tinha dito aquilo assim, com aquela naturalidade, saberia ela o que era a incerteza? Como se pode viver na incerteza? De certeza que a doutora não sabia o que era desconfiar de alguém. E também desconfiar não era bem o termo, até acreditava que o namorado gostasse dela – pelo menos antes de ter engordado até ficar aquela baleia. Mas era mais como se pudesse prevenir alguma tentação que ele pudesse algum dia vir a ter.
Acordou, tinha adormecido no chão da casa de banho embalada pelos soluços. Pareceu ouvir um barulho e correu para a porta na esperança de vê-lo entrar, mas tudo se mantinha em silêncio.
“  - Acabou, Sara, já te disse, desta vez passaste todos os limites. Enxovalhaste-me ao pé dos meus amigos, deste um estalo à Mariana que não fez nada de mal…” “ – Estava-se a atirar a ti que eu bem vi! Não passa de uma p…a! Vê bem como ela se veste, aquelas meias rendilhadas, as mamas quase de fora e bem vi que ias ao perfil dela ver-lhe as fotos, andas a toda a hora a ver-lhe o perfil do facebook.” “ – Que sabes tu disso? Acaso espias-me o computador? Eh, pá, esta gaja faz-me mesmo passar dos cornos! Sai-me da frente senão passo-te e ferro”. E tinha ido fazer as malas deixando-a num pranto sem que tivesse o mínimo pingo de piedade.
Aos poucos as visitas dela à faculdade tinham aumentado de ritmo. Ia uma, duas, três vezes até que chegou uma altura que Tiago já sabia que quando saísse para o intervalo ela estaria à sua espera. Os colegas e amigos tinham até dito na brincadeira que lá estava a mãe dele para o vir buscar com medo que ele se perdesse no caminho. Foi piorando sempre, revolvia-lhe o telemóvel à procura de indícios de conversas com outras raparigas, via-lhe os bolsos, controlava cada passo dele e agora por último invadia-lhe o computador. Ligava-lhe a toda a hora e se não atendia logo era porque estava com outra; fazia mesmo birra como as crianças: amuava, ficava sem lhe falar e já nem o deixava aproximar-se e fazer-lhe um carinho.  Depois, ultimamente tinha perdido aquele encanto de quem tem autoestima, passava a vida a pôr-se em baixo: “ Vês com estou horrível? Olha só estas banhas! Não me toques, tenho de perder uns kilos primeiro. Ele chegou mesmo por algumas vezes ouvir um ruído na casa de banho “HuggghtHugght…” e suspeitou que andasse a vomitar para manter a linha que estava já no limite, tão magra estava. Falou então com a sua melhor amiga que era de Viseu – como eles – e que se mantinha apesar de tudo ao seu lado. Fê-la prometer que a levaria ao hospital e que não lhe diria ter sido ele a propor-lhe o tratamento porque senão ainda se punha com coisas. Ele desconfiava que ela tivesse bulimia essa epidemia dos tempos modernos, acreditava que se aproximava já de estar anorética, mas ela achava-se gorda. Mas porque é que ela não entendia que, para ele, ela era muito mais do que um corpo? Contava as calorias, passava horas sem comer, nunca tomava o pequeno almoço e quando vieram as praxes e os jantares aí então é que ficou paranoica: “ -  Já viste amor, agora vamos para aqueles restaurantes que só sabem servir aquelas carnes cheias de gordura. Esta semana estava a correr tão bem a dieta, só estava a comer coisas saudáveis”  “  - Depois continuas, são só uns dias…” “ – Isso dizes tu, mas vai-se já notar nas calças. Como posso aparecer depois ao pé das minhas amigas, todas elegantes…” “  - Fonix Sara, tu deves andar a ver mal, és a mais elegante de todas.” “ Oh, és mesmo um fofo! E deu-lhe um beijo lento e apaixonado. Mas isso tinha ficado muito lá atrás e ele agora não aguentava mais as desconfianças infundadas dela.
Acordou. Acordou gelada a meio da madrugada e com um sabor acre na boca, ou seria o cheiro do vomitado que ainda não tinha limpo? Era também doce; um sabor agridoce era mais correto dizê-lo. Levantou-se cambaleando. Tinha dores de estômago, bastante intensas agora que estava completamente acordada. Gemeu e dirigiu-se ao espelho para ver uma cara completamente cadavérica, não era ela, não podia ser, ela estava gorda, gordíssima… gemeu novamente, as dores agora eram insuportáveis. Tossiu e quando se foi lavar viu que tinha sangue na boca, aí estava a origem do sabor: sangue misturado com o resto do vómito que nem tinha retirado da cara. Já não era gente. Viu-se ao espelho por inteiro e pela primeira vez conseguiu vislumbrar o esqueleto em que se tinha tornado. Bem lhe diziam os amigos, bem lhe dizia ele, o seu amor perdido para sempre… cambaleante foi-se arrastando até ao quarto a custo, tirou um cartão que tinha guardado há uns tempos e que dizia que podia ligar a qualquer momento em caso de urgência. Ligou.
- Estou? Sim? Quem fala? Estou? Sara? Pode falar, sim? Vou já enviar alguém. Sara? Sara?...

                                                       Fim
Maria João Varela





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