quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Não digas adeus

Moviam-se. As sombras brancas, diáfanas e incorpóreas faziam movimentos ondulatórios, numa espiral ascendente criando um ambiente propício ao delírio. É verdade então que existe vida após a morte, pensei. Não conseguia ver mais nada para além dos movimentos de um lado para o outro. Senti. Então aqui também se sentia dor… Senti uma dor cortante na garganta que descia até ao estômago onde era mais e mais insuportável. Um dos anjos aproximou-se, mas não lhe descortinei as asas; somente nas pontas de uns dedos peritos uma luz forte que aproximou dos meus olhos enquanto gritava: “ Acordou, já acordou”. Os outros anjos aproximaram-se e um começou a falar comigo. Então era assim, e eu que sempre tinha pensado que no outro mundo comunicaríamos com o pensamento e não por palavras, tantas vezes enganadoras daquilo que se sente.
Pudesse eu não ter aquela dor difusa que além do corpo obnubila a alma e não estaria agora ali, se eu pudesse não ter perdido o aroma das rosas, ou o sabor de uma maçã madura… como eu gostaria de não ter perdido o teu sorriso quando me desejavas bom dia, mas por que pensava ainda no que tinha ficado lá atrás?  Ninguém sentiria a minha falta, que diferença faria ao mundo a minha ausência, um fracasso de mulher que nem uma alegria era capaz de dar aos filhos?
 - Consegue-me ouvir? Disse-me um dos anjos que se tinha aproximado ainda mais. Quis responder, mas a voz estava presa, parecia que ficava na caixinha dos pensamentos sem se despegar. Mas saiu-me a custo um “sim” numa voz que não parecia a minha, uma voz desconhecida e fraca aos soluços.
 - Vamos levantá-la um pouco está bem? E pegaram-me dois anjos puxando-me até que fiquei recostada numas almofadas que via agora pela primeira vez, começando aos poucos a ver uma sala com muitas máquinas; uma sala de cuidados intensivos de um hospital.
 Se eu pudesse não te roubar o sorriso… mas o sol apesar de tudo continuaria a brilhar, apesar dos muitos sorrisos que todos os dias se apagam.  Como eu amava, num tempo longínquo quem nunca me amou a mim. Que importava tudo isso agora? Só queria descansar; a lassidão tomava conta de um corpo que insistia em se fazer presente, o mundo virava negro, nem negro se podia dizer que era, mais um cinzento, sem cheiros nem coloridos, tomara eu não te roubar a alegria…
Dormia e acordava no que parecia uma eternidade, e a cada acordar tudo se ia consubstanciando, tornado real, uma realidade a que quisera fugir por não ter mais forças para lutar. Não tinha morrido, nem tampouco estava no céu cheio de anjos, tinha falhado a única coisa que me sentia com forças para fazer. Morrer.
As mãos desencontradas tentavam levar a colher à boca na tentativa de lá enfiar uma colherada de iogurte que a enfermeira bem-intencionada, com uns olhos enormes de bondade, me tinha dado para ver se eu conseguia comer sozinha. Teria de reaprender a comer e a andar nos próximos tempos; conseguiria reaprender a lutar?
Se ao menos os teus olhos não me olhassem com reprovação, pudesse eu escolher e não te daria o desgosto de me olhares sabendo-me capaz de me ir sem te dizer adeus…

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