domingo, 15 de dezembro de 2013

Memorial do túmulo

A alma escapou-se-lhe . Vagueou deixando para trás a prisão de um corpo que lhe limitava os passos; não queria ficar mais presa a conceitos que lhe confinavam as ideias, sentia um desejo premente da liberdade que perdera quando crenças e hábitos alheios lhe tolhiam os sentidos. Não podia deixar que lhe sugassem a vida. Sentiu-se leve, leve e sem os constrangimentos de um corpo, sentiu-se tudo e nada ao mesmo tempo e à medida que as fronteiras do concreto se desfaziam tudo parecia ir ficando mais pequeno enquanto ela própria se agigantava. Andou, voou, nem sabia como se movimentava sem membros, mas a verdade é que nunca tinha sentido uma tal leveza, um inebriamento feito de infindas possibilidades… Deu por si num cemitério. Um lusco fusco  caía já, como um manto de neblina densa e húmida pelo que sentiu um arrepio – como a alma se arrepiava não entendia ela – que a fez aconchegar mais a capa ao corpo ausente. Cada passo ecoava pelo eterno silêncio que pairava tornando o ar pesado e a alma apreensiva. Os jazigos lançavam suspiros por entre as brumas de memórias intemporais e por entre as teias de aranha que insistiam em instalar-se, alheias a toda a dor, alheias à angustia das armadilhas da  existência humana. Olhava. Via nomes e datas, datas e nomes. Uns tinham partido cedo, cedo demais deixando inconsoláveis pais e avós, desmembrados para sempre, até quando a morte se lhes juntasse os pedaços. De repente, algo lhe chamou a atenção para além dos crucifixo e das fotografias esvanecidas pelo tempo; as datas. As datas não condiziam. Segundo as indicações tinham passado mais de cento e cinquenta anos. Poderia ter vagueado assim tanto? Quis voltar para trás, assustada agora com o que via, mas algo mais forte impelia-a obrigando-a a  lançar-se para a frente. O que outrora tinham sido homens e mulheres jaziam nas frias tumbas e o único indício de terem vivido eram agora os nomes e as duas datas – uma delas desconhecida dos próprios – a do início e a do fim. Arrepiou-se de novo. Que estava ali a fazer? Teria morrido e não sabia onde era agora a respetiva tumba? Repentinamente um nome chamou-lhe a atenção “ Maria Eduarda Valério” seguida da sua data de nascimento e outra que não sabia – seria então que teria morrido com oitenta e oito anos? O que mais a espantava eram as outras datas todas cento e muitos anos à frente da sua… chorou… queria saber como tinha ido ali parar e porque estava a sua campa tão abandonada à vista das outras. Reparou agora melhor e lá estavam os nomes dos seus entes queridos, todos mortos já. Viu uma fresta aberta e esgueirou-se por lá para assistir ao espetáculo mais aterrador: lá estavam os seus restos mortais e junto deles todos os seus desgostos e desejos, todos os seus problemas e anseios – que pareciam agora à vista de toda a sua família, também ela morta, passados cento e cinquenta anos, ridículos. Saiu do túmulo levando agarrada à face uma teia de aranha pegajosa, o vento uivava deixando o local mais desolado ainda enquanto o corpo parecia voltar-lhe à alma deixando-a agora mais aterrorizada pois os passos eram agora mais pesados e o eco mais ruidoso. Correu. As brumas densas aos poucos abrindo espaço a um raio de luz luminoso ténue e tímido de início para se tornar tão forte que a cegava… “ Acorde, acorde…” A voz do médico sobressaltou-a. As batas brancas giravam num rodopio de tarefas para cumprir. Tinha acordado da anestesia…

 Maria João Varela

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