sábado, 21 de dezembro de 2013

Conto de natal

Cambaleava. Ligeiramente, mas cambaleava. As luzes de natal já há muito se tinham apagado e ele, de roupas húmidas por cima do corpo gélido procurava. Era cedo ainda, aqui e ali via-se o alaranjado das lareiras cujo fogo era mantido a noite toda, num alegre crepitar deixando perceber o conforto dos lares, quentes e cheios de gente. O olhar triste e abandonado era, por estes dias, mais triste e mais abandonado ainda, o contraste com as festas familiares que se viviam nas casas de mesas  abundantes era mais gritante que nos dias comuns. Ele sabia que dentro de dois dias é que os caixotes do lixo abririam as bocarras a abarrotar dos restos que os outros, cansados de tanto comer, atiravam fora, enquanto isso ia fazendo a ronda na tentativa de chegar aos restos primeiro que os seus rivais; é que aqui também se compete, pela comida que não tenha ainda sido contaminada por outros lixos menos comestíveis.
Sentou-se cansado. Nada. Não havia nada ainda, bem sabia que na noite de natal quase ninguém saía do seu conforto para despejar o lixo; teria de esperar, mas o estômago quase colava às costas de tanta fome e os sapatos rotos deixavam à mostra um dedão do pé com uma unha negra de sujidade de meses, mas fê-lo lembrar de outros natais, onde também tinha sentido o conforto da família, isto antes do desemprego o empurrar para as ruas… nesses tempos também ele não saía na noite de natal para despejar o lixo, costumava ficar a ver a lareira apagar-se aos poucos enquanto a ia mantendo em lume frouxo até de manhã, quando as crianças trementes de excitação não conseguiam ficar na cama e procuravam na lareira, ainda quente, pelo seu sapatinho recheado de uma prenda muito desejada; um sapato não como os dele, sapatos a valer, novos para o dia de natal. Onde estariam os filhos agora? Esfregou com os dedos enrugados e encardidos nos olhos que deixavam cair as lágrimas de meses. ”Por que raio custa tanto nestes dias? Por que raio não me leva a morte que ceifa tantas vidas prazerosas?”
Ouviu passos. Alegrou-se. Talvez houvesse afinal quem se aventurasse na noite fria de dezembro para trazer o lixo. Não. Era somente um polícia na sua ronda. “Pobre polícia” pensou. “Talvez tenha engolido à pressa a posta de bacalhau para ir cumprir o seu dever numa noite em que até os ladrões parecem ter direito à consoada.”  O agente afastou-se sem nem dar por ele, estava realmente frio e ia-se abrigar na esquadra, estava tudo calmo àquela hora. O relógio da torre batia 3 horas da madrugada: Tlim, tlão. Tlim, tlão. Tlim, tlão – também cumpria a sua obrigação.  
Recolheu-se no seu canto agora mais gelado ainda pela sua breve ausência. Irra, não conseguia adormecer de tão gelado. A pele agora mais enrugada ainda, o estômago às golpadas de dor pela ausência de comida, a alma abandonada e triste pelas agruras da vida e da solidão. Nem o gorro preto que enfiava na cabeça  o conseguia aquecer. Tinha, contudo, um desejo de natal: paz.
 - Hora do óbito? – perguntou à médica legista com cara de enfado pelo incómodo de ter de declarar um óbito no dia de natal.
 - 3 horas da madrugada.
 -  Não pode ser passei por aqui na ronda e não estava ninguém, com o frio que estava tê-lo ia recolhido…



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