quarta-feira, 16 de abril de 2014

Lambe botas ou chinelos

Ar pimpão, pequena corcunda devida ao esforço de anos e anos de vénias chega apressado quase fazendo saltar as banhas de umas calças de terylene;  é sempre, há mais de 40 anos,  o primeiro a fazer rodar a chave na fechadura para quando o doutor chegar já o encontrar no seu cubículo a que orgulhosamente chama escritório. Não se lhe conhece outros interesses se não viver de língua esticada, húmida e sempre a postos para lamber as botas ao patrão; e mesmo quando este traz sapatos lambe-os de igual modo que lambedor que se preze não discrimina calçado.
 Comprou mesmo umas joelheiras porque com o passar da idade, ajoelhar e lamber botas tornou-se doloroso para as desgraçadas rótulas que de tanto roçarem o asfalto já levam umas contusões que não são de desprezar e, então, quando vê o “dono” ao longe, tira-as disfarçadamente do bolso e protege-se com elas. Já a língua não tem tanta sorte e, de tanto lamber, porquanto não haja para ela resguardo, começam-lhe a aparecer umas fístulas. Tem futuro. Este espécime muito apreciado lambe à esquerda e à direita, segundas, terças e sextas, não se cansa de lamber e mesmo ao fim de semana, extremoso e cumpridor sem dar sossego à língua, ignorando os lamentos e uivos de dor dá, se a isso for chamado, lambidelas demoradas nas botas de algum superior.
Passou-lhe pela ideia ganhar uns trocos a mais e abriu um curso para ensinar os truques e manhas que os anos de serviço que leva de lambedor bem lhe atestam a valência. Começaram aos jorros as candidaturas e após poucas semanas pululavam já os acessórios, organizados num kit, com que se faz acompanhar um verdadeiro lambe botas   : as famosas joelheiras – de várias cores que também há muitas mulheres a fazer o curso – uma escovinha de tirar a caspa do casaco dos superiores, um dicionário de bolso com milhares de bajulações para cada estação, um repressor de opinião própria, um artefacto interessante que solta um bip de cada vez que o lambedor se lembra de opinar; lambedor profissional não tem opinião, papagueia a do patrão…

O sucesso foi tal que mais do que o francês, o inglês, o alemão ou o mandarim tornou-se desígnio nacional ser um bom lambedor. Os lambedores são já tantos que em pouco tempo houve a necessidade de hierarquizar o curso havendo lambedores de chinelos, pantufas, sapatos de camurça ou pele verdadeira e finalizando então nas botas, com vários níveis  também de modo que quem chegue  ao topo – embora com a língua toda lixada, as rótulas esgaçadas e a corcunda proeminente – é certo e direitinho ter o seu futuro assegurado.

Maria João Varela



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