Ar pimpão, pequena corcunda devida ao esforço de
anos e anos de vénias chega apressado quase fazendo saltar as banhas de umas calças
de terylene; é sempre, há mais de 40
anos, o primeiro a fazer rodar a chave
na fechadura para quando o doutor chegar já o encontrar no seu cubículo a que
orgulhosamente chama escritório. Não se lhe conhece outros interesses se não
viver de língua esticada, húmida e sempre a postos para lamber as botas ao
patrão; e mesmo quando este traz sapatos lambe-os de igual modo que lambedor
que se preze não discrimina calçado.
Comprou mesmo
umas joelheiras porque com o passar da idade, ajoelhar e lamber botas tornou-se
doloroso para as desgraçadas rótulas que de tanto roçarem o asfalto já levam
umas contusões que não são de desprezar e, então, quando vê o “dono” ao longe,
tira-as disfarçadamente do bolso e protege-se com elas. Já a língua não tem
tanta sorte e, de tanto lamber, porquanto não haja para ela resguardo, começam-lhe
a aparecer umas fístulas. Tem futuro. Este espécime muito apreciado lambe à
esquerda e à direita, segundas, terças e sextas, não se cansa de lamber e mesmo
ao fim de semana, extremoso e cumpridor sem dar sossego à língua, ignorando os
lamentos e uivos de dor dá, se a isso for chamado, lambidelas demoradas nas
botas de algum superior.
Passou-lhe pela ideia ganhar uns trocos a mais e
abriu um curso para ensinar os truques e manhas que os anos de serviço que leva
de lambedor bem lhe atestam a valência. Começaram aos jorros as candidaturas e
após poucas semanas pululavam já os acessórios, organizados num kit, com que se
faz acompanhar um verdadeiro lambe botas : as
famosas joelheiras – de várias cores que também há muitas mulheres a fazer o
curso – uma escovinha de tirar a caspa do casaco dos superiores, um dicionário
de bolso com milhares de bajulações para cada estação, um repressor de opinião
própria, um artefacto interessante que solta um bip de cada vez que o lambedor
se lembra de opinar; lambedor profissional não tem opinião, papagueia a do
patrão…
O sucesso foi tal que mais do que o francês, o
inglês, o alemão ou o mandarim tornou-se desígnio nacional ser um bom lambedor.
Os lambedores são já tantos que em pouco tempo houve a necessidade de hierarquizar
o curso havendo lambedores de chinelos, pantufas, sapatos de camurça ou pele
verdadeira e finalizando então nas botas, com vários níveis também de modo que quem chegue ao topo – embora com a língua toda lixada, as
rótulas esgaçadas e a corcunda proeminente – é certo e direitinho ter o seu futuro
assegurado.
Maria João Varela
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