Lembro-me de subir umas escadas larguíssimas, em mármore, depois de passar por um átrio amplo com um teto tão alto que não se
adivinhava um fim, de haver um corrimão tão largo, também ele em pedra gasta
pelo tempo, onde era costume, longe da vista das funcionárias, escorregarmos e
partirmos um ou outro osso mais frágil, ou amolgar a armação dos óculos – para os
pouco afortunados que os usavam- ; sim porque usar óculos nessa altura era uma
pouca sorte só comparável ao que é hoje não ter um tablet…
O colégio da Casa Pia de Lisboa secção de S.ta
Clara ficava, e fica ainda, penso eu, junto ao Panteão Nacional para onde me
pisgava, às vezes, para ir ler para a biblioteca, quando faltava às aulas por
nunca ter gostado que me impusessem aquilo que deveria estudar; quem sabe aí me
inspirassem as almas já partidas a trilhar um caminho só meu… quem sabe me
sussurrassem, sem que eu ainda soubesse, que do outro lado é que nos costumamos
arrepender de não termos sido verdadeiramente livres e que só isso conta; não
sei, talvez fosse isso que me desse força para subir aquelas escadas, apinhadas
de alunos, nas horas em que chegavam, pela manhã, num borbulhar humano
inigualável, e começavam a desaparecer, aos poucos, pelas salas de aulas cujas
portas se iam fechando dando início a mais um dia de aprendizagens.
Lembro-me de entrar, também eu, na sala de aulas
cujos bancos compridos de madeira de mogno se encontravam já pejados de
crianças enfileiradas e aprumadas e de, ao fundo, observar a professora de
música, uma mulher raquítica de nariz curvilíneo e um pé tão grande como jamais
voltei a ver na vida… o enorme pé balançava ao compasso da música que se começava a
ouvir, aumentando em muito o seu tamanho, numa ilusão de ótica que
tem a ver com o hipnotismo da cena que em tudo lembra os romances infantis
onde as bruxas mais terríveis habitam e, talvez por tantos desses romances ter
lido, me pareça agora, com a longa
distância que vai do acontecimento à lembrança, cujas contingências de tempo
não podem ser negligenciadas, não ser ela tão má como me parecia à altura. Lembro-a assim muito por culpa dos imensos
castigos que me esperavam – a crer nos testemunhos horrorizados dos colegas que
assistiam a cena- que, segundo creio, a mesma nunca se imaginou a infligi-los simplesmente por nunca se ter dado ao trabalho de
observar comportamento tão pouco provável ; é que ao
som do hino nacional, quando a música enchia o espaço com a sua melodia que
inspirava o patriotismo, aquela hora em que todos sabiam o que fazer: levantar-se
e com o ar orgulhoso de pertencer à Pátria Mãe – ou somente porque todos faziam
o mesmo – cantar a plenos pulmões “ Contra os canhões, marchar, marchar…” ,
só eu me mantinha sentada e de boca teimosamente calada…
É esta a primeira experiência que me lembro de
desobediência, de não ajustamento, de não integração. Muitas outras se foram
seguindo, ao longo dos anos. O temido castigo nunca se seguiu à infração, pelo
menos nesta altura não, mas sempre me mantive na disposição de arcar com as
consequências de tamanho ato de insubordinação.Maria João Varela
Sem comentários:
Enviar um comentário