Olhou para ambos, dormiam agora aconchegados pela
sopa quente que tinha conseguido pôr-lhes na mesa. Bernardo de 5 anos ainda
perguntara : “ E tu por que não comes mãe?” “ A mãe comeu antes de chegar a
casa, não tem fome…” mas o estômago doía-lhe, quase tanto quanto a alma,
impedia-se, no entanto, de dar parte de fraca com medo que os filhos
pressentissem como se sentia. João, dormia também com os caracóis louros
espalhados no travesseiro, a pele rosada dos seus 12 anos enregelava, Joana aproximou-se e cobriu o pequeno braço
que se encontrava destapado e que arrefecia devido à noite gélida e à falta de
aquecimento. Tinha fome, durante todo o dia só tinha comido um caldo verde que
a colega de escritório lhe tinha pago quase sem ela dar por isso para que não
se sentisse mal com o gesto “Depois pagas tu” – dissera-lhe a sorrir, mas Joana
tinha percebido a compaixão no seu olhar.
Quando a respiração dos seus dois anjinhos se
notava já mais profunda colocou as mãos entre o rosto e chorou, chorou… chorou como
ainda não tinha tido coragem de chorar, como se o choro, visto assim sob a luz
baça do candeeiro tornasse real o
sofrimento, como se testemunhasse a crueza da sua situação e se
consubstanciasse por fim. Hoje, no trabalho, algumas vezes se sentiu quase a
desmaiar, o patrão tinha notado e tinha dito que se assim continuasse tinha de
a despedir: eram as faltas de atenção, era a produção baixa, era a antipatia;
ou mudava rapidamente ou iria para o olho da rua, dissera-lhe.
Levantou-se.
Decidiu-se, por fim… Abriu o computador e começou a escrever um parágrafo: «Boa noite. Encontro-me numa situação muito
difícil. Sou empregada de escritório, divorciada, tenho dois filhos menores.
Para fazer face a todas as despesas (de água, luz, habitação) resta-me muito
pouco para a alimentação. Gostaria de saber quais as condições necessárias para
receber ajuda alimentar. Estamos a passar fome e
precisamos da vossa colaboração.»
Enquanto escrevia as lágrimas caiam molhando o
teclado. Lembrava-se que há um ano atrás seria impossível prever tal desfecho. O
marido tinha ficado desempregado e, sob o peso da responsabilidade tinha
preferido livrar-se deles e pedido o divórcio deixando-os com a prestação da
casa e do carro – que entretanto tinha entregue – sem nunca mais lhe ter dado a
mais pequena ajuda. A mãe ajudou enquanto pôde, mas também ela, doente terminal
tinha gasto todas as economias nos tratamentos até que, quando os deixou, ainda
lhe dissera: “ Pede ajuda, filha. Não tenhas vergonha, essa, que a tenham
aqueles que se consolam com o que nos roubaram…” Morrera amargurada ao ver a
situação da filha e dos netos, Joana desconfiava mesmo que o cancro de uma
progressão fulminante tinha sido causado por toda aquela situação, ou quem sabe
para a livrar de tanto sofrimento?
Fechava já a tampa do computador quando viu que
tinha um email, correu a abrir. Era a resposta! Nem queria acreditar, tão
rápido, tão solícito! Podia ir de manhã buscar o pequeno almoço das crianças,
depois se veria.
Deitou-se e a fome, agora, esbatia-se um pouco na
esperança, a esperança de um novo dia em que finalmente seguindo o conselho da
mãe deixara de ter vergonha e iria, como tantos antes dela tinham ido, pedir
uma ajuda que noutros tempos achara ser para quem não pode ou não quer
trabalhar… Mas ela trabalhava. Enxugou uma vez mais as lágrimas que corriam
agora umas atrás das outras, perdido o medo das lágrimas e a vergonha da fome.
De manhã, bem cedo, antes das crianças acordarem já
se encontrava na fila para ir buscar o leite e o pão prometidos na véspera
através de um email e viu, olhou e não quis acreditar: lá estava a sua vizinha
do 5º andar direito, a filha do Sr. António, o enfermeiro do centro de saúde, a
dona da sapataria; todos conhecidos seus, que há pouco tempo atrás tomavam o
pequeno almoço na mesma pastelaria – cujo dono na falta de clientes fechara e,
também se encontrava na fila à espera de caridade… “ Não se envergonhem que nós
não somos pobres, fomos foi roubados”…
Maria João Varela
Sem comentários:
Enviar um comentário