domingo, 9 de fevereiro de 2014

Praxe - Tradição respeitável ou abuso de poder? (texto de participação no jornal da Faculdade "O claustro")

Sempre, desde que me conheço, questionei o que está instituído e pensava, na minha inocência, antes de entrar na faculdade, que o ensino superior seria  o meu habitat natural, o  local  ideal de debates de ideias entre alunos, pensamento crítico, questionamento das normas e regras em vigor; nada mais ilusório, porém, e apercebi-me disso logo no meu ano de entrada quando na página dedicada aos caloiros “ousei” sugerir uma praxe diferente onde se canalizasse a imensa energia presente para ações úteis para a sociedade – à semelhança daquilo que outras Faculdades  já fazem como ações de voluntariado com recolha de alimentos, por exemplo. Vi com estupefação que, a par de outras esferas da sociedade também na Faculdade as pessoas se refugiam em termos como tradição, regras e normas de uma forma que sempre repudiei e que tem a ver com a falta total de espírito critico. Direi que a forma como o administrador da página resolveu o assunto foi pura e simplesmente retirar o meu comentário - O meu  simples "porquê?" quando me disse não pôr os "seus" caloiros  a fazer isso ( recolha de alimentos) - sem se dignar a responder-me .  Não sou contra tradições, regras ou normas sem as quais a sociedade não teria como se organizar, mas sou contra uma posição  acrítica de quem não questiona, quem não ousa pensar a sociedade onde está inserido por forma a melhorar o que está  incorreto.
Acontece que tenho observado certas práticas que vão contra os valores que me são mais queridos e que, por uma triste infelicidade, vieram a ser discutidos em praça pública com a crescente exaltação de quem defende a praxe como se se tratasse do seu clube de futebol ou religião e com uma argumentação parca e sobejamente denegatória dos factos que todo o bom observador pode constatar quando observa muitas das ditas práticas praxísticas. Contrariamente ao que se possa pensar não sou contra todas as práticas de praxe, embora rejeite liminarmente o código que lhe subjaz  e que acredito, poucos dos que se lhes submetem conhecerão, e rejeito desde logo porque numa sociedade “dita” democrática, práticas, normas, regras – grandemente violentas -  ditadas por quem não é eleito democraticamente, que têm de ser cegamente seguidas sem direito a apelo, onde abundam castigos para os detratores das mesmas, é-me completamente abominável. Para além de me preocupar sobremaneira a aceitação de hierarquias arbitrárias onde quem mais manda é quem tem mais matrículas e não por mérito , em alguma área do saber , reconhecido publicamente... Poderia citar muitos exemplos para ilustrar o meu repúdio , mas escolhi este artigo do código de praxe:
Artigo 103º
As trupes ordinárias, à excepção das trupes de Fitados, poderão levar consigo um caloiro que servirá de “cão de fila” e às quais se aplicam os seguintes preceitos:
a) O caloiro não poderá dirigir-se a alguém mas só apontar;
b) Enquanto a trupe estiver a aplicar uma sanção, o caloiro ficará automaticamente fora dela, podendo ser, entretanto, apanhado por outra trupe;
c) Se a trupe não rapar nenhum “animal” o caloiro “cão de fila” será rapado antes desta se desfazer.
d) Para efeitos do disposto no artigo 94º o caloiro não conta como elemento.
Dizem-me que as pessoas, neste caso os novos alunos –  denominados caloiros ou “bestas” -  têm a liberdade de escolher se querem ou não ser praxados, mas para mim, quando muito são impelidas para um dilema e convenhamos, a não ser que a coragem seja a sua maior virtude, é quase impossível chegar a um lugar sem conhecer ninguém, muitas vezes longe da família pela primeira vez , com necessidade de ser acolhido, querido, passível de ser aceite, numa instituição com o peso brutal das tradições que com tanto orgulho nos dizem ser  centenárias, onde todos à sua volta dizem sim, erguer a trémula voz e dizer um não redundante; mais a mais quando nos fazem crer -  explicita ou implicitamente – que para podermos aceder a toda a vida académica, convívios, festas, teremos que passar primeiro pelo crivo dos “doutores”. Convenhamos, é preciso força hercúlea para se opor a isto, sendo que, logo de seguida, quando entrosado no meio, a pessoa passa a defender a causa que foi coagido a aceitar por não conhecer outra forma de integração. Penso que outras áreas de conhecimento até poderão aceitar o tal argumento da liberdade de escolha, já em psicologia, com os estudos sobre influência maioritária em psicologia social por exemplo, entre outros, será descabido defendê-lo. Assusta-me ainda a ideia de haver jovens com medo, medo de falar, medo de se queixar - Como a Drª Catarina Martins referiu no debate Prós e Contras - com medo de sair à rua e serem praxados, ou direi antes : humilhadas, gozadas, castigadas? 

 “Só  pode falar da praxe quem a vive por dentro” ; “  São brincadeiras e nós divertimo-nos” ; “ Na minha faculdade não é assim, não fazemos estas coisas”… Oiço estas e outras “argumentações” e quanto à primeira defendo precisamente o contrário, ou seja, só quando se está a uma distância significativa - dissociado do grupo -  se pode avaliar um fenómeno imparcialmente, além do mais só quem não cumpre as ditas normas fica a conhecer o peso do castigo, assim como só quem lutava pela liberdade de expressão, pela democracia ,sofria o castigo da PIDE… Quanto ao “argumento” da diversão nada tenho a opor, sou a favor da livre expressão e do direito à livre associação embora tenha sérias reservas e me cause estupefação adultos divertirem-se com linguagem, bastas vezes, imprópria, ofensiva para si próprio e para os outros, com discurso de cariz sexual e escatológico – próprio de idades mais precoces – adotando posições de submissão ou simulando atos sexuais… ad infinitum. Causa-me, ainda, espanto as autoridades tudo permitirem desde barulho pela noite dentro que põe em causa o descanso alheio, num completo desrespeito pela lei do ruído, além de me enojar vomitado por ruas e ruelas, vandalismo variado que observo sobretudo pela altura da queima das fitas quando saio pela manhã, antes de passarem os varredores – os mesmo que não dormiram e que limpam agora o esterco de quem de regras só parece obedecer às da praxe… Sei que muitos estudantes partilham a condenação destes atos, mas sei  por experiência própria que é difícil ser uma voz contrária àquilo que é seguido pela maioria, no máximo vão-nos "às unhas" no mínimo somos postos de parte; e se este mínimo assusta!
Quanto ao terceiro ponto, ainda bem que o próprio presidente da AAC, Ricardo Morgado não  pôs a Universidade de Coimbra de fora daquilo que são práticas correntes e transversais a toda a comunidade estudantil, com raríssimas exceções como tão bem ficou documentado no filme de Bruno Cabral.
Por tudo o que ficou dito atrás  sou por uma outra integração aos novos alunos, onde sejam inseridos através de práticas mais dignificantes da natureza humana, onde sejam ajudados pelos mais velhos a compreender os trâmites da nova vida que acabaram de abarcar com convívio de alto valor cultural como música, teatro, desporto, debates que desenvolvam o espírito crítico  – atividades presentes na AAC e tantas vezes quase desconhecidas. Cabe-nos a todos os que fazem parte da Universidade de Coimbra lutar por isso e até  promover mais debates para tentar perceber por que razão em pleno século XXI, num Portugal que se diz moderno este tipo de práticas - que lembram tempos idos -  tem tanta aderência por parte dos estudantes e tanta complacência por parte do resto da sociedade. 



Maria João Varela 

1 comentário:

  1. Esta é uma das Pessoas que tive o previlégio de conhecer desde a primeira hora da minha entrada na Faculdade de Psicologia, é sem duvida um exemplo de vida!!
    Obrigada por existires, e por tantas vezes me dares força, coragem e motivação!! Na verdade as tuas "praxes" são essas!!

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