Lembro-me como se fosse hoje o
brilho que eles refletiam, do alto da prateleira, alegrando o meu rosto miúdo. Eram
os primeiros, não os primeiros que calçava, mas o primeiro par de sapatos
novinhos em folha, virgens que não conheciam outros pés…
Eram vermelhos, de um vermelho
escuro e raro o único vermelho que cai bem em sapatos. Tinham um pequeno salto
de alguns centímetros que fazia crescer o ego adolescente sempre que os calçava…sentia-me
outra e era outra; era mulher.
A minha avó que, ferozmente,
sempre negociara os sapatos usados que
até ali eu sempre tinha usado, desdenhava deles dizendo que não eram lá grande
coisa. Gostava do papel de ter de passar pela mesma barraca da feira da ladra
até que finalmente o vendedor, cansado de tanto alarde, acedesse ao valor que
ela estava disposta a pagar por eles. Era tiro e queda ela saía de lá feliz com
a compra eu vinha amuada.
Mas com aqueles era diferente. Os
meus primeiros sapatos novos tinha sido eu a escolher, ninguém nem mesmo a
minha mãe tinha opinado a respeito. E lá saí eu do armazém do Chiado de peito
estofado, sapatos novos calçados, como se mais alguém neste mundo que não eu
pudesse saber o quanto tinha crescido em importância durante os poucos minutos
que separavam a minha antiga da minha nova condição.
Esses sapatos vermelhos haveriam
de ter formas mas só dos meus pés que habituados que estavam a ser sempre eles a ter
de se adaptar às formas dos sapatos que outros pés primeiro tinham moldado aguentavam, assim, bravamente,
as bolhas que iam surgindo por terem sido escolhidos pela aparência. Vingava-me
desta forma da mesma lenga- lenga que tinha crescido a ouvir dizer sempre que
me escolhiam uns sapatos: “que sejam fortes e feios.” Estes eram lindos e não
prestavam, mas tinham o privilégio de serem os primeiros, novos, que eu tinha e
como tudo o que é primeiro ganha uma relevância que de outro modo não teria,
uma relevância tal que ainda hoje passados que vão tantos anos, ainda os
recordo com carinho embora me tenham massacrado os pés.
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