sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

O meu beijo?

“O meu beijo?” Esticavas os lábios num pedido eloquente tão carente de afeto, tão despojado do falso orgulho que outrora te tornara numa das personagens mais imponentes que tinha conhecido; ademais eras uma figura atemorizadora. Gostavas de arrebatar corações com as tuas paixões que não admitiam oposição e parecias invencível, qual fortaleza que tenha sobrevivido às intempéries dos séculos e sanha destruidora da época moderna. Eras tão sóbrio de espírito com uma clareza de ideias a toda a prova que desmontava argumentos opositores como uma criança desmonta, ao fim do dia, os seus brinquedos de lego. “ O meu beijo?” – repetias agora até que eu te fizesse a vontade e me levantasse pela enésima vez para te acariciar e beijar as faces cujo relampejo durava apenas um segundo para voltar ao embotamento que agora se  te ia colando às pregas fundas de uma pele tanto menos atrativa quanto mais necessitada de beijos. Mantinhas teimosamente a lucidez para nos privares do consolo de te saber inconsciente da tua condição de velho, retiravas-nos essa tranquilidade de consciência para que nos acercássemos de ti para nos poderes pedir o beijo.
Passavas agora os dias a olhar por uma janela aberta para o infinito, num vazio existencial sem finalidade nem propósito que não ver passar as visitas que se aventuravam a testemunhar-te a queda. Muitos não vinham só para não terem de te encarar nas tuas fraquezas como se ao testemunharem-no fossem também eles cúmplices de tamanha injustiça. Não nos ensinam a perder; viver é ganhar, é subir, é crescer, mas é também cair e isso ninguém ensina, ou somos nós que não aprendemos…

 Nunca nos preparamos para este devir, nunca fazemos planos para este tempo em que o tempo deixa de ser parcelado e passa a um continuum onde a única coisa que destoa,  para além do dia e da noite, que quebra a monotonia da paisagem de dias monótonos, iguais entre si, será  a presença de afeto. Quem se prepararia para o inferno? Preparar-se seria já viver  o tédio da espera, de alguém que se lembre da morada de um velho sombrio, quando as luzes de mil atratividades chamam a esquecer esse dia, o nosso dia de pedir o beijo que não vem…

Maria João Varela


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