Em face do sofrimento é que se veem quem são os
Homens – dizem – e têm razão. Quando a máscara das aparências se vai para
encararmos a dor na sua pujança é que se veem quem são os Homens, quem são os
que se aguentam à bronca e não se lhes vacila as pernas; ou mesmo que vacilem
quase não se nota porque para além da sua dor, outra muito maior se lhes assoma
o leito de morte: o terror de ferirem quem amam.
Era assim, no leito de morte, o meu avô: “ Sabes quem sou, Rosa?” – dizia para a minha
avó. “ sou o teu esqueleto preferido”. Sempre até ao fim a tentar dizer piadas
que lhe saiam juntamente com algum gemido que escapasse… “ Olha para isto que
já não tenho carne, já não sou o teu Carlos”… e tentava sorrir, mas só saia um
esgar na face que se tinha tornado em esqueleto antes de entrar na cova. E é
assim esta doença, a morte apossa-se da vitima ainda em vida e quando ela se olha
ao espelho consegue-a reconhecer, e ela compraz-se com o terror que vê
estampado, um terror ainda mesclado de uma ponta de esperança. Mas ele sabia
que não sairia da aventura vivo, mas disfarçava na tentativa de poupar a
família à dor da perda. “ Oh, Rosa! Olha o teu esqueleto favorito…”
A minha avó, que sempre tinha sido uma mulher de
armas ralhava-lhe: “ Não digas isso Carlos,
estás aí para as curvas”. Mas pegava-lhe como se ele fosse uma criança
para vesti-lo e não lhe pesava, as peles flácidas, da magreza forçada, no interior
das pernas não dava azo a grandes prognósticos, mas ela nunca lho disse. Só
dizia: “ Vá lá Carlos tens de comer a sopa”. E ele comia para a vomitar de
seguida: “ Vês como sou o teu bebé?”. Aguentava-se à bronca. E ela também. Enquanto
ele viveu ela mantinha-se rija e com a força de comandante que sempre a
caracterizara e só depois da sua morte chorou e lhe vacilaram as pernas; nunca
mais foi a mesma força, embora até tenha casado outra vez...Era um Homem a
valer, ela…
E quando a morte vem e nos tira o avô à descarada,
dá vontade de a matar. Era pelo menos isso que eu sentia quando olhava a cara
de sofrimento dele e via a dela que já se alimentava dele, sem subterfúgios,
dizendo sem palavras: ele agora é meu. E perante este facto inexorável, esta
revolta que nos alimenta as tripas nós só temos que nos aguentar à bronca e
mostrarmos que somos Homens, nem que não passemos de crianças…
Maria João Varela
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