Cambaleava. Ligeiramente, mas cambaleava. As luzes
de natal já há muito se tinham apagado e ele, de roupas húmidas por cima do
corpo gélido procurava. Era cedo ainda, aqui e ali via-se o alaranjado das
lareiras cujo fogo era mantido a noite toda, num alegre crepitar deixando
perceber o conforto dos lares, quentes e cheios de gente. O olhar triste e
abandonado era, por estes dias, mais triste e mais abandonado ainda, o
contraste com as festas familiares que se viviam nas casas de mesas abundantes era mais gritante que nos dias
comuns. Ele sabia que dentro de dois dias é que os caixotes do lixo abririam as
bocarras a abarrotar dos restos que os outros, cansados de tanto comer,
atiravam fora, enquanto isso ia fazendo a ronda na tentativa de chegar aos
restos primeiro que os seus rivais; é que aqui também se compete, pela comida
que não tenha ainda sido contaminada por outros lixos menos comestíveis.
Sentou-se cansado. Nada. Não havia nada ainda, bem
sabia que na noite de natal quase ninguém saía do seu conforto para despejar o
lixo; teria de esperar, mas o estômago quase colava às costas de tanta fome e
os sapatos rotos deixavam à mostra um dedão do pé com uma unha negra de
sujidade de meses, mas fê-lo lembrar de outros natais, onde também tinha
sentido o conforto da família, isto antes do desemprego o empurrar para as ruas…
nesses tempos também ele não saía na noite de natal para despejar o lixo,
costumava ficar a ver a lareira apagar-se aos poucos enquanto a ia mantendo em
lume frouxo até de manhã, quando as crianças trementes de excitação não conseguiam
ficar na cama e procuravam na lareira, ainda quente, pelo seu sapatinho
recheado de uma prenda muito desejada; um sapato não como os dele, sapatos a
valer, novos para o dia de natal. Onde estariam os filhos agora? Esfregou com
os dedos enrugados e encardidos nos olhos que deixavam cair as lágrimas de
meses. ”Por que raio custa tanto nestes dias? Por que raio não me leva a morte
que ceifa tantas vidas prazerosas?”
Ouviu passos. Alegrou-se. Talvez houvesse afinal
quem se aventurasse na noite fria de dezembro para trazer o lixo. Não. Era somente
um polícia na sua ronda. “Pobre polícia” pensou. “Talvez tenha engolido à
pressa a posta de bacalhau para ir cumprir o seu dever numa noite em que até os
ladrões parecem ter direito à consoada.” O agente afastou-se sem nem dar por ele,
estava realmente frio e ia-se abrigar na esquadra, estava tudo calmo àquela
hora. O relógio da torre batia 3 horas da madrugada: Tlim, tlão. Tlim, tlão.
Tlim, tlão – também cumpria a sua obrigação.
Recolheu-se no seu canto agora mais gelado ainda
pela sua breve ausência. Irra, não conseguia adormecer de tão gelado. A pele
agora mais enrugada ainda, o estômago às golpadas de dor pela ausência de
comida, a alma abandonada e triste pelas agruras da vida e da solidão. Nem o
gorro preto que enfiava na cabeça o
conseguia aquecer. Tinha, contudo, um desejo de natal: paz.
- Hora do
óbito? – perguntou à médica legista com cara de enfado pelo incómodo de ter de
declarar um óbito no dia de natal.
- 3 horas
da madrugada.
- Não pode ser passei por aqui na ronda e não
estava ninguém, com o frio que estava tê-lo ia recolhido…
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