A alma escapou-se-lhe . Vagueou deixando para trás
a prisão de um corpo que lhe limitava os passos; não queria ficar mais presa a
conceitos que lhe confinavam as ideias, sentia um desejo premente da liberdade
que perdera quando crenças e hábitos alheios lhe tolhiam os sentidos. Não podia
deixar que lhe sugassem a vida. Sentiu-se leve, leve e sem os constrangimentos
de um corpo, sentiu-se tudo e nada ao mesmo tempo e à medida que as fronteiras do
concreto se desfaziam tudo parecia ir ficando mais pequeno enquanto ela própria
se agigantava. Andou, voou, nem sabia como se movimentava sem membros, mas a
verdade é que nunca tinha sentido uma tal leveza, um inebriamento feito de infindas
possibilidades… Deu por si num cemitério. Um lusco fusco caía já, como um manto de neblina densa e
húmida pelo que sentiu um arrepio – como a alma se arrepiava não entendia ela –
que a fez aconchegar mais a capa ao corpo ausente. Cada passo ecoava pelo
eterno silêncio que pairava tornando o ar pesado e a alma apreensiva. Os jazigos
lançavam suspiros por entre as brumas de memórias intemporais e por entre as
teias de aranha que insistiam em instalar-se, alheias a toda a dor, alheias à
angustia das armadilhas da existência
humana. Olhava. Via nomes e datas, datas e nomes. Uns tinham partido cedo, cedo
demais deixando inconsoláveis pais e avós, desmembrados para sempre, até quando
a morte se lhes juntasse os pedaços. De repente, algo lhe chamou a atenção para
além dos crucifixo e das fotografias esvanecidas pelo tempo; as datas. As datas
não condiziam. Segundo as indicações tinham passado mais de cento e cinquenta
anos. Poderia ter vagueado assim tanto? Quis voltar para trás, assustada agora
com o que via, mas algo mais forte impelia-a obrigando-a a lançar-se para a frente. O que outrora tinham
sido homens e mulheres jaziam nas frias tumbas e o único indício de terem
vivido eram agora os nomes e as duas datas – uma delas desconhecida dos
próprios – a do início e a do fim. Arrepiou-se de novo. Que estava ali a fazer?
Teria morrido e não sabia onde era agora a respetiva tumba? Repentinamente um
nome chamou-lhe a atenção “ Maria Eduarda Valério” seguida da sua data de
nascimento e outra que não sabia – seria então que teria morrido com oitenta e
oito anos? O que mais a espantava eram as outras datas todas cento e muitos
anos à frente da sua… chorou… queria saber como tinha ido ali parar e porque
estava a sua campa tão abandonada à vista das outras. Reparou agora melhor e lá
estavam os nomes dos seus entes queridos, todos mortos já. Viu uma fresta
aberta e esgueirou-se por lá para assistir ao espetáculo mais aterrador: lá estavam
os seus restos mortais e junto deles todos os seus desgostos e desejos, todos
os seus problemas e anseios – que pareciam agora à vista de toda a sua família,
também ela morta, passados cento e cinquenta anos, ridículos. Saiu do túmulo
levando agarrada à face uma teia de aranha pegajosa, o vento uivava deixando o
local mais desolado ainda enquanto o corpo parecia voltar-lhe à alma deixando-a
agora mais aterrorizada pois os passos eram agora mais pesados e o eco mais
ruidoso. Correu. As brumas densas aos poucos abrindo espaço a um raio de luz
luminoso ténue e tímido de início para se tornar tão forte que a cegava… “
Acorde, acorde…” A voz do médico sobressaltou-a. As batas brancas giravam num
rodopio de tarefas para cumprir. Tinha acordado da anestesia…
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