domingo, 1 de dezembro de 2013

TIC-TAC

6.45. TIC- TAC, TIC-TAC. Começou o dia já atrasada, como sempre começava. Mal se olhou ao espelho enquanto se enfiava já debaixo do chuveiro para espantar a preguiça que teimava dia após dia em fazer-lhe companhia à mesma hora da manhã. Não sentiu a água morna que lhe acariciava a pele, nem a espuma macia e menos ainda o cheiro do perfume suave que lhe penetrava as narinas. Por que razão corria? Havia tanto a fazer, tanto caminho a desbravar, ou seria somente medo de parar e se olhar? Não pensava nisso. Não tinha tempo, não tinha tempo… mas, e se simplesmente abdicasse dos dias repartidos, se simplesmente pousasse de vez essa máquina de contar vidas, que reparte o tempo em frações tão ínfimas que parece que nos escapa, tal como escapa a areia de uma ampulheta. TIC-TAC. TIC-TAC.
Não via interesse nas deambulações mentais matinais, era somente a sua incessante mente  nas suas conhecidas distrações, mas a verdade é que quanto mais corria mais tinha de correr e até o lenhador sabe que, por vezes, é preciso afiar o machado para continuar a cortar a lenha.
Por esta altura estava já a enfiar pela garganta abaixo sem sequer saborear o seu pequeno almoço, se é que se pode chamar isso a uns flocos mal amanhados sabe-se lá contendo o quê e corria batendo a porta do pequeno apartamento enquanto deixava o gato a lambuzar-se pachorrento com o seu filet mignon. Sorte a dele de ser gato e não ter de salvar a sua espécie; cada um salvava-se por si só, inteligente espécie esta.  Mas ela não teve tempo  nem de lhe passar a mão no pelo cinzento nem de lhe sentir a  suavidade felina ou  sequer de lhe apreciar as formas de gato  pois avançava já escadaria abaixo enquanto enfiava a manga do casaco  pois o elevador, como sempre que o esperava, roubava-lhe mais uns segundos. TIC-TAC. TIC-TAC.  Saiu.
A corda com que lhe tinham dotado a existência continuava na sua marcha lenta e inexorável a reduzir-lhe os dias e, este boneco de corda que, por acaso se chamava Maria, nem se dava conta de que ao acelerar a marcha também a corda, na necessidade premente de corresponder ao esforço, se gastava  na fugacidade dos dias ainda por gastar… TIC-TAC. TIC-TAC.
Estava um frio invernal por isso aconchegou o cachecol e entrou no carro com gelo no para brisa. Não apreciou o sorriso que uma criança trazida pela mão do pai lhe deitou, não teve tempo pois olhava o relógio na tentativa, sempre falhada, de chegar a horas. Que tirânico objeto que lhe roubava a vida sem que ela se importasse… não tinha tempo.  Não olhou um sem abrigo que se tentava aconchegar no seu buraco frio e húmido, nem ajudou uma  velhinha a atravessar a rua, ia tão apressada para salvar o mundo. TIC-TAC. TIC-TAC.
Não ouviu os risos adolescentes, nem apreciou no céu de inverno um sol tímido a despontar, não correspondeu ao bom-dia do padeiro – nem tampouco lhe apreciou o cheiro de pão quente acabado de fazer – não. Apenas gastava a corda olhando um futuro distante e prometedor enquanto deixava escapar o presente, por entre uns dedos frementes de uma vontade louca de viver, vontade essa sempre adiada pela força do pequeno e constante TIC-TAC. TIC-TAC.



Sem comentários:

Enviar um comentário