6.45. TIC- TAC, TIC-TAC. Começou o dia já
atrasada, como sempre começava. Mal se olhou ao espelho enquanto se enfiava já
debaixo do chuveiro para espantar a preguiça que teimava dia após dia em
fazer-lhe companhia à mesma hora da manhã. Não sentiu a água morna que lhe
acariciava a pele, nem a espuma macia e menos ainda o cheiro do perfume suave
que lhe penetrava as narinas. Por que razão corria? Havia tanto a fazer, tanto
caminho a desbravar, ou seria somente medo de parar e se olhar? Não pensava
nisso. Não tinha tempo, não tinha tempo… mas, e se simplesmente abdicasse dos
dias repartidos, se simplesmente pousasse de vez essa máquina de contar vidas,
que reparte o tempo em frações tão ínfimas que parece que nos escapa, tal como escapa
a areia de uma ampulheta. TIC-TAC. TIC-TAC.
Não via interesse nas deambulações mentais
matinais, era somente a sua incessante mente nas suas conhecidas distrações, mas a verdade
é que quanto mais corria mais tinha de correr e até o lenhador sabe que, por
vezes, é preciso afiar o machado para continuar a cortar a lenha.
Por esta altura estava já a enfiar pela garganta
abaixo sem sequer saborear o seu pequeno almoço, se é que se pode chamar isso a
uns flocos mal amanhados sabe-se lá contendo o quê e corria batendo a porta do
pequeno apartamento enquanto deixava o gato a lambuzar-se pachorrento com o seu
filet mignon. Sorte a dele de ser
gato e não ter de salvar a sua espécie; cada um salvava-se por si só,
inteligente espécie esta. Mas ela não
teve tempo nem de lhe passar a mão no
pelo cinzento nem de lhe sentir a suavidade
felina ou sequer de lhe apreciar as
formas de gato pois avançava já
escadaria abaixo enquanto enfiava a manga do casaco pois o elevador, como sempre que o esperava,
roubava-lhe mais uns segundos. TIC-TAC. TIC-TAC. Saiu.
A corda com que lhe tinham dotado a existência
continuava na sua marcha lenta e inexorável a reduzir-lhe os dias e, este
boneco de corda que, por acaso se chamava Maria, nem se dava conta de que ao
acelerar a marcha também a corda, na necessidade premente de corresponder ao
esforço, se gastava na fugacidade dos dias ainda por gastar… TIC-TAC.
TIC-TAC.
Estava um frio invernal por isso aconchegou o
cachecol e entrou no carro com gelo no para brisa. Não apreciou o sorriso que
uma criança trazida pela mão do pai lhe deitou, não teve tempo pois olhava o
relógio na tentativa, sempre falhada, de chegar a horas. Que tirânico objeto que lhe roubava a vida sem que ela se importasse… não tinha tempo. Não olhou um sem abrigo que se tentava
aconchegar no seu buraco frio e húmido, nem ajudou uma velhinha a atravessar a rua, ia tão apressada
para salvar o mundo. TIC-TAC. TIC-TAC.
Não ouviu
os risos adolescentes, nem apreciou no céu de inverno um sol tímido a
despontar, não correspondeu ao bom-dia do padeiro – nem tampouco lhe apreciou o
cheiro de pão quente acabado de fazer – não. Apenas gastava a corda olhando um
futuro distante e prometedor enquanto deixava escapar o presente, por entre uns
dedos frementes de uma vontade louca de viver, vontade essa sempre adiada pela
força do pequeno e constante TIC-TAC. TIC-TAC.
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