sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Delirium

Olhando a pequena face adormecida apercebeu-se da urgência e secretismo com que teria de levar a cabo a sua missão. Não podia levantar suspeitas e também não poderia contar com ninguém, teria de elaborar o plano sozinha, o que não poderia deixar era que fizessem mal ao seu anjo. Francisco respirava profundamente e aligeirou um sorriso – talvez algum sonho bom lhe povoasse a mente inocente; com que sonham os bebés de dois anos? Talvez com algum colo acolhedor, um seio transbordante de leite morno ou quem sabe um sorriso sincero ao qual retribuiu dormindo. Não se cansava de observá-lo e protege - lo por isso ficava acordada grande parte da noite enquanto João, seu marido, dormia profundamente e quase tão inocentemente quanto o filho… não acreditava que o bebé corresse perigo ou pelo menos era o que dizia para acalmá-la, mas a verdade é que tinha trazido os pais lá para casa para ficarem a tomar conta dele – “mais quatro olhos é sempre melhor…” tinha-lhe dito.
Deitou-se. Esgueirou-se para dentro dos finos lençóis sem fazer barulho, o corpo franzino  à procura do calor masculino; mas não adormecia. Magicava formas de levar a cabo os seus intentos sem levantar suspeitas; era difícil porque a casa agora estava sempre cheia de gente, não percebia como podia o marido achar que estava melhor com os sogros, eles na verdade eram parte do problema só que aceitava ser difícil para um filho perceber o quanto os pais são perigosos... também a ela custou acreditar.
Ficou ainda por um largo período de tempo a relembrar a conversa que tinha tido com o seu contacto para  esta missão denominada “anéis de saturno”. Claramente os russos tinham uma implicação, “estavam embrenhados na coisa até aos cabelos” nas palavras dele… mas não acreditava que fossem só os russos; os americanos nestas missões têm sempre a última palavra a dizer… tinha de salvar o seu menino, aliás tinha de salvar a humanidade. Virou-se uma vez mais, não conseguia dormir. As palavras  do homem de óculos escuros, jornal debaixo do braço e cachimbo invadiam-lhe os pensamentos, juntamente com as baforadas do seu cachimbo. Podia sentir agora o intenso cheiro a enxofre que invadia o quarto. Levantou-se de uma penada. Não queria acordar o marido, mas ele estava ali de certeza… o cheiro, aquele cheiro que lhe tornava as inspirações dolorosas não deixava margem para nenhuma dúvida.
Ele ali estava, de pé, encostado ao umbral da porta da sala, inseparável do seu cachimbo, “por que raio nem ali deixava de exalar o maldito fumo?” Pensou. Ainda iria acordar a família. Parecia não se incomodar com questões mesquinhas. “ Tem de ser ainda esta noite, sussurrou. Amanhã será demasiado tarde. “ Mas…” quis continuar, foi interrompida abruptamente : “não pode haver “mas”, sempre que há “mas”, sempre que há a mais pequena hesitação, a mínima dúvida ou um leve gaguejar, a missão aborta, é isso que queres?  “ Não, claro que não” Respondeu. “…tenho de salvar a humanidade, tenho de salvar o meu menino…”. “ Então fazes assim: “вы получаете отсюда немедленно!” Quê? Então agora falava-lhe numa língua desconhecida? Que vinha a ser isto? Enquanto pensava já ele se tinha afastado saindo pelas traseiras deixando-lhe um envelope nas mãos e o cheiro insuportável pela casa.
Era urgente levar a cabo a missão. Abriu o envelope com o coração galopante e viu a foto dos sogros, a prova de que sem sombra de qualquer dúvida se encontravam com o inimigo, já não podia confiar em ninguém e até mesmo o marido estava debaixo de suspeita apesar do seu contacto lhe ter garantido que ele era inocente. Apressou-se. Na pressa pisou o rabo do gato que deu um grito em “gatês” : “ miauuuuu”, cravando-lhe as unhas na cara e fazendo-a inadvertidamente dar um salto. O marido lançou um profundo suspiro e virou-se para o outro lado. Cristela tremeu de medo, mas a imagem da bravura dos seus antepassados fê-la reagir. Tinha de continuar a sua missão tinha de fazer jus ao nome que tinha herdado e dar continuidade à gloria dos seus antepassados. Pegou no bebé que dormia no  berço e aconchegando-o ao colo bem  embrulhado na manta saiu para a noite escura sem olhar mais para trás. Dizia repetidamente que tinha de ser assim; tinha de obedecer e o contacto tinha ordenado que fosse ainda esta noite…
 - Mãe, mãe! Viu a Cristela?
 - Não, filho. Porquê? Que se passa? Levantou-se à pressa enfiando o robe e os chinelos quase tropeçando.
 - Já corri a casa toda, não está, nem ela, nem o Francisco. Ai, mãe! Temo, temo o que possa ter acontecido… não levou nada, acho que foi de pijama e chinelos… nem sei que faça da vida se me fizer mal ao menino. Sentou-se com as mão no rosto desolado enquanto o pai enfiava já umas calças e com os cabelos grisalhos todos desalinhados chamava o 112.
 - Não sei, já disse que não sei, mandem alguém depressa! Sim, e um psiquiatra também com uma injeção que faça dormir, quero é ter sossego durante muito tempo para ver se nos dá algum descanso - desabafou.
Olhavam agora o pequeno berço vazio e uns para os outros, sentindo-se culpados. A culpa é o primeiro sentimento a assolar-nos quando sabemos que se podia ter feito de outra maneira e não se fez. Na consulta a psiquiatra tinha claramente dito que ela não podia ficar sozinha, enquanto a medicação não começasse a surtir efeito não poderia deixar de ficar debaixo de olho nunca. Tinham descurado os conselhos, ela nunca dera problemas até  há pouco tempo atrás quando começou a falar sozinha, por vezes rindo, por vezes gritando, parecendo muitas vezes que respondia a alguém. Depois, repentinamente, começou a desconfiar de todos, até da educadora infantil que vigiava largos minutos depois de deixar o filho na creche. Acabava por chegar tarde ao trabalho tendo cansado o  patrão que a despediu com justa causa pois no testemunho de alguns clientes ela tinha conversas totalmente despropositadas “ …as ligações a  Saturno são o mal da humanidade… vê esta caneta que apanhei aqui? É dele e é a prova de que a energia cósmica anda por aqui… você, você também tem ligações a saturno, não é?…” .
Eram quatro da tarde quando a polícia partiu com dois cães peritos em buscas. Tinha sido difícil convencê-los a procurarem-na antes de vinte e quatro horas passadas, só quando a psiquiatra deu o parecer clínico foi possível ultrapassar esse obstáculo. A família estava inconsolável, acreditavam agora que Cristela com os seus delírios poderia ter provocado algum mal à criança.
Francisco chorava inconsolável no colo da mãe, ela embalava-o enquanto lhe assegurava com voz doce que não deveriam demorar para os virem buscar para um lugar seguro. Deu-lhe o seio que o acalmou por momentos pelo contacto porque o leite há muito tinha secado. O barracão abandonado tinha sido o local escolhido por Cristela para se abrigar, mas o frio intenso que se fazia sentir tomava conta dos dois e ameaçava de morte mãe e filho. Sentiu passos, há muito que o filho não se queixava, sentia-o inerte nos braços e embalava-o desesperada, mas a luz ao fundo e o que lhe pareceram latidos redobraram-lhe a esperança. Ouviu o seu nome e quis dizer: “ sim, sou eu, estou aqui.”, Mas a voz teimava em não se fazer ouvir, as forças abandonavam-na pelos dias que teimara em não comer pois nas suas palavras a sogra envenenava-lhe a comida. “ Não vê que ela me põe tóxicos no pão, na sopa, na fruta? Como quer que eu coma a comida dela?” Abanou o filho agora com mais força, mas nada, ele enregelava e já não deixava sair pela pequena boca rosada nenhum lamento. Temeu o pior. Quis levantar-se e pedir auxílio às vozes e aos latidos que se afastavam mais e mais, mas as pernas fraquejaram e caiu. Um breu intenso abateu-se sobre ela…
João olhava através do vidro da porta o filho que brincava no quarto de hospital. Sorriu. Tinha escapado por pouco. O pequeno corpo estava inerte ao lado do da mãe e ele, com a esperança perdida dos dois dias intensos de buscas, quando os avistou pensou tê-los perdido para sempre. O filho estava agora recuperado e teria alta nesse mesmo dia, quanto a Cristela tinha acabado de vê-la, na visita das quatro, e recuperava bem. Conseguiam agora que comesse depois de lhe tirarem o soro e a deixarem ver preparar a comida. João ganhava nova esperança, a medicação logo, logo faria efeito e desta vez a mulher só sairia do hospital quando os seus delírios passassem.
A enfermeira veio avisar que o horário das visitas tinha acabado. Viu chegar Cristela com os pais, felizmente que a mulher tinha parado com as implicâncias davam-se bem os três. Viu sorrirem-lhe e aproximaram-se. Estavam todos vestidos como se fossem sair, até mesmo Cristela; já teria alta?
- Até amanhã meu querido! Voltamos amanhã. Cristela sorriu-lhe, um sorriso encantador como há muito não tinha.
João confuso viu repentinamente  a sua imagem refletida no vidro e esta atingiu-o como se de um raio se tratasse: estava magro e a barba de dias dava-lhe um ar ainda mais abatido, uma olheiras profundas circundavam os olhos azuis que tinha herdado do pai. Olhou-os e viu os três já de costas saindo pela porta principal. Não compreendeu. Porque não esperavam por ele? Olhou novamente a sua imagem no vidro, olhou o pijama largo dentro do qual balançava um corpo que mais parecia um esqueleto, os chinelos de quarto estavam também bailando nuns pés demasiado pequenos só para lembrar que os pés também emagrecem…

Maria João Varela


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