Olhando a pequena face adormecida apercebeu-se da
urgência e secretismo com que teria de levar a cabo a sua missão. Não podia
levantar suspeitas e também não poderia contar com ninguém, teria de elaborar o
plano sozinha, o que não poderia deixar era que fizessem mal ao seu anjo.
Francisco respirava profundamente e aligeirou um sorriso – talvez algum sonho
bom lhe povoasse a mente inocente; com que sonham os bebés de dois anos? Talvez
com algum colo acolhedor, um seio transbordante de leite morno ou quem sabe um
sorriso sincero ao qual retribuiu dormindo. Não se cansava de observá-lo e protege
- lo por isso ficava acordada grande parte da noite enquanto João, seu marido,
dormia profundamente e quase tão inocentemente quanto o filho… não acreditava
que o bebé corresse perigo ou pelo menos era o que dizia para acalmá-la, mas a
verdade é que tinha trazido os pais lá para casa para ficarem a tomar conta
dele – “mais quatro olhos é sempre melhor…” tinha-lhe dito.
Deitou-se. Esgueirou-se para dentro dos finos
lençóis sem fazer barulho, o corpo franzino
à procura do calor masculino; mas não adormecia. Magicava formas de
levar a cabo os seus intentos sem levantar suspeitas; era difícil porque a casa
agora estava sempre cheia de gente, não percebia como podia o marido achar que
estava melhor com os sogros, eles na verdade eram parte do problema só que
aceitava ser difícil para um filho perceber o quanto os pais são perigosos...
também a ela custou acreditar.
Ficou ainda por um largo período de tempo a
relembrar a conversa que tinha tido com o seu contacto para esta missão denominada “anéis de saturno”. Claramente
os russos tinham uma implicação, “estavam embrenhados na coisa até aos cabelos”
nas palavras dele… mas não acreditava que fossem só os russos; os americanos nestas
missões têm sempre a última palavra a dizer… tinha de salvar o seu menino,
aliás tinha de salvar a humanidade. Virou-se uma vez mais, não conseguia dormir.
As palavras do homem de óculos escuros,
jornal debaixo do braço e cachimbo invadiam-lhe os pensamentos, juntamente com
as baforadas do seu cachimbo. Podia sentir agora o intenso cheiro a enxofre que
invadia o quarto. Levantou-se de uma penada. Não queria acordar o marido, mas
ele estava ali de certeza… o cheiro, aquele cheiro que lhe tornava as inspirações
dolorosas não deixava margem para nenhuma dúvida.
Ele ali estava, de pé, encostado ao umbral da
porta da sala, inseparável do seu cachimbo, “por que raio nem ali deixava de
exalar o maldito fumo?” Pensou. Ainda iria acordar a família. Parecia não se
incomodar com questões mesquinhas. “ Tem de ser ainda esta noite, sussurrou.
Amanhã será demasiado tarde. “ Mas…” quis continuar, foi interrompida
abruptamente : “não pode haver “mas”, sempre que há “mas”, sempre que há a mais
pequena hesitação, a mínima dúvida ou um leve gaguejar, a missão aborta, é isso
que queres? “ Não, claro que não”
Respondeu. “…tenho de salvar a humanidade, tenho de salvar o meu menino…”. “
Então fazes assim: “вы получаете отсюда немедленно!” Quê? Então agora
falava-lhe numa língua desconhecida? Que vinha a ser isto? Enquanto pensava já
ele se tinha afastado saindo pelas traseiras deixando-lhe um envelope nas mãos
e o cheiro insuportável pela casa.
Era urgente levar a cabo a missão. Abriu o
envelope com o coração galopante e viu a foto dos sogros, a prova de que sem
sombra de qualquer dúvida se encontravam com o inimigo, já não podia confiar em
ninguém e até mesmo o marido estava debaixo de suspeita apesar do seu contacto
lhe ter garantido que ele era inocente. Apressou-se. Na pressa pisou o rabo do
gato que deu um grito em “gatês” : “ miauuuuu”, cravando-lhe as unhas na cara e
fazendo-a inadvertidamente dar um salto. O marido lançou um profundo suspiro e
virou-se para o outro lado. Cristela tremeu de medo, mas a imagem da bravura
dos seus antepassados fê-la reagir. Tinha de continuar a sua missão tinha de
fazer jus ao nome que tinha herdado e dar continuidade à gloria dos seus
antepassados. Pegou no bebé que dormia no
berço e aconchegando-o ao colo bem embrulhado na manta saiu para a noite escura
sem olhar mais para trás. Dizia repetidamente que tinha de ser assim; tinha de
obedecer e o contacto tinha ordenado que fosse ainda esta noite…
- Mãe, mãe!
Viu a Cristela?
- Não,
filho. Porquê? Que se passa? Levantou-se à pressa enfiando o robe e os chinelos
quase tropeçando.
- Já corri
a casa toda, não está, nem ela, nem o Francisco. Ai, mãe! Temo, temo o que
possa ter acontecido… não levou nada, acho que foi de pijama e chinelos… nem
sei que faça da vida se me fizer mal ao menino. Sentou-se com as mão no rosto
desolado enquanto o pai enfiava já umas calças e com os cabelos grisalhos todos
desalinhados chamava o 112.
- Não sei,
já disse que não sei, mandem alguém depressa! Sim, e um psiquiatra também com
uma injeção que faça dormir, quero é ter sossego durante muito tempo para ver
se nos dá algum descanso - desabafou.
Olhavam agora o pequeno berço vazio e uns para os
outros, sentindo-se culpados. A culpa é o primeiro sentimento a assolar-nos
quando sabemos que se podia ter feito de outra maneira e não se fez. Na
consulta a psiquiatra tinha claramente dito que ela não podia ficar sozinha, enquanto
a medicação não começasse a surtir efeito não poderia deixar de ficar debaixo
de olho nunca. Tinham descurado os conselhos, ela nunca dera problemas até há pouco tempo atrás quando começou a falar
sozinha, por vezes rindo, por vezes gritando, parecendo muitas vezes que
respondia a alguém. Depois, repentinamente, começou a desconfiar de todos, até
da educadora infantil que vigiava largos minutos depois de deixar o filho na
creche. Acabava por chegar tarde ao trabalho tendo cansado o patrão que a despediu com justa causa pois no
testemunho de alguns clientes ela tinha conversas totalmente despropositadas “
…as ligações a Saturno são o mal da
humanidade… vê esta caneta que apanhei aqui? É dele e é a prova de que a
energia cósmica anda por aqui… você, você também tem ligações a saturno, não é?…”
.
Eram quatro da tarde quando a polícia partiu com
dois cães peritos em buscas. Tinha sido difícil convencê-los a procurarem-na
antes de vinte e quatro horas passadas, só quando a psiquiatra deu o parecer
clínico foi possível ultrapassar esse obstáculo. A família estava inconsolável,
acreditavam agora que Cristela com os seus delírios poderia ter provocado algum
mal à criança.
Francisco chorava inconsolável no colo da mãe, ela
embalava-o enquanto lhe assegurava com voz doce que não deveriam demorar para
os virem buscar para um lugar seguro. Deu-lhe o seio que o acalmou por momentos
pelo contacto porque o leite há muito tinha secado. O barracão abandonado tinha
sido o local escolhido por Cristela para se abrigar, mas o frio intenso que se
fazia sentir tomava conta dos dois e ameaçava de morte mãe e filho. Sentiu
passos, há muito que o filho não se queixava, sentia-o inerte nos braços e
embalava-o desesperada, mas a luz ao fundo e o que lhe pareceram latidos
redobraram-lhe a esperança. Ouviu o seu nome e quis dizer: “ sim, sou eu, estou
aqui.”, Mas a voz teimava em não se fazer ouvir, as forças abandonavam-na pelos
dias que teimara em não comer pois nas suas palavras a sogra envenenava-lhe a
comida. “ Não vê que ela me põe tóxicos no pão, na sopa, na fruta? Como quer
que eu coma a comida dela?” Abanou o filho agora com mais força, mas nada, ele
enregelava e já não deixava sair pela pequena boca rosada nenhum lamento. Temeu
o pior. Quis levantar-se e pedir auxílio às vozes e aos latidos que se
afastavam mais e mais, mas as pernas fraquejaram e caiu. Um breu intenso
abateu-se sobre ela…
João olhava através do vidro da porta o filho que
brincava no quarto de hospital. Sorriu. Tinha escapado por pouco. O pequeno
corpo estava inerte ao lado do da mãe e ele, com a esperança perdida dos dois
dias intensos de buscas, quando os avistou pensou tê-los perdido para sempre. O
filho estava agora recuperado e teria alta nesse mesmo dia, quanto a Cristela
tinha acabado de vê-la, na visita das quatro, e recuperava bem. Conseguiam
agora que comesse depois de lhe tirarem o soro e a deixarem ver preparar a
comida. João ganhava nova esperança, a medicação logo, logo faria efeito e
desta vez a mulher só sairia do hospital quando os seus delírios passassem.
A enfermeira veio avisar que o horário das visitas
tinha acabado. Viu chegar Cristela com os pais, felizmente que a mulher tinha
parado com as implicâncias davam-se bem os três. Viu sorrirem-lhe e
aproximaram-se. Estavam todos vestidos como se fossem sair, até mesmo Cristela;
já teria alta?
- Até amanhã meu querido! Voltamos amanhã.
Cristela sorriu-lhe, um sorriso encantador como há muito não tinha.
João confuso viu repentinamente a sua imagem refletida no vidro e esta
atingiu-o como se de um raio se tratasse: estava magro e a barba de dias
dava-lhe um ar ainda mais abatido, uma olheiras profundas circundavam os olhos
azuis que tinha herdado do pai. Olhou-os e viu os três já de costas saindo pela
porta principal. Não compreendeu. Porque não esperavam por ele? Olhou novamente
a sua imagem no vidro, olhou o pijama largo dentro do qual balançava um corpo
que mais parecia um esqueleto, os chinelos de quarto estavam também bailando
nuns pés demasiado pequenos só para lembrar que os pés também emagrecem…
Maria João Varela
Maria João Varela
Sem comentários:
Enviar um comentário