Moviam-se. As sombras brancas, diáfanas e incorpóreas
faziam movimentos ondulatórios, numa espiral ascendente criando um ambiente
propício ao delírio. É verdade então que existe vida após a morte, pensei. Não conseguia
ver mais nada para além dos movimentos de um lado para o outro. Senti. Então aqui
também se sentia dor… Senti uma dor cortante na garganta que descia até ao
estômago onde era mais e mais insuportável. Um dos anjos aproximou-se, mas não
lhe descortinei as asas; somente nas pontas de uns dedos peritos uma luz forte
que aproximou dos meus olhos enquanto gritava: “ Acordou, já acordou”. Os
outros anjos aproximaram-se e um começou a falar comigo. Então era assim, e eu
que sempre tinha pensado que no outro mundo comunicaríamos com o pensamento e
não por palavras, tantas vezes enganadoras daquilo que se sente.
Pudesse eu não ter aquela dor difusa que além do
corpo obnubila a alma e não estaria agora ali, se eu pudesse não ter perdido o
aroma das rosas, ou o sabor de uma maçã madura… como eu gostaria de não ter
perdido o teu sorriso quando me desejavas bom dia, mas por que pensava ainda no
que tinha ficado lá atrás? Ninguém sentiria
a minha falta, que diferença faria ao mundo a minha ausência, um fracasso de
mulher que nem uma alegria era capaz de dar aos filhos?
-
Consegue-me ouvir? Disse-me um dos anjos que se tinha aproximado ainda mais. Quis
responder, mas a voz estava presa, parecia que ficava na caixinha dos
pensamentos sem se despegar. Mas saiu-me a custo um “sim” numa voz que não
parecia a minha, uma voz desconhecida e fraca aos soluços.
- Vamos
levantá-la um pouco está bem? E pegaram-me dois anjos puxando-me até que fiquei
recostada numas almofadas que via agora pela primeira vez, começando aos poucos
a ver uma sala com muitas máquinas; uma sala de cuidados intensivos de um
hospital.
Se eu
pudesse não te roubar o sorriso… mas o sol apesar de tudo continuaria a
brilhar, apesar dos muitos sorrisos que todos os dias se apagam. Como eu amava, num tempo longínquo quem nunca
me amou a mim. Que importava tudo isso agora? Só queria descansar; a lassidão
tomava conta de um corpo que insistia em se fazer presente, o mundo virava
negro, nem negro se podia dizer que era, mais um cinzento, sem cheiros nem
coloridos, tomara eu não te roubar a alegria…
Dormia e acordava no que parecia uma eternidade, e
a cada acordar tudo se ia consubstanciando, tornado real, uma realidade a que
quisera fugir por não ter mais forças para lutar. Não tinha morrido, nem
tampouco estava no céu cheio de anjos, tinha falhado a única coisa que me
sentia com forças para fazer. Morrer.
As mãos desencontradas tentavam levar a colher à
boca na tentativa de lá enfiar uma colherada de iogurte que a enfermeira bem-intencionada,
com uns olhos enormes de bondade, me tinha dado para ver se eu conseguia comer
sozinha. Teria de reaprender a comer e a andar nos próximos tempos; conseguiria
reaprender a lutar?
Se ao menos os teus olhos não me olhassem com
reprovação, pudesse eu escolher e não te daria o desgosto de me olhares
sabendo-me capaz de me ir sem te dizer adeus…
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