terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Maneirismos

Víamo-la chegar e acomodar-se no seu canto, o seu canto há mais de trinta anos. Pelo canto do olho apreciávamos os mesmos maneirismos, o mesmo tom afetado de voz, agora um pouco mais rouca, é certo, mas reconhecíamos-lhe todas as tonalidades; continuava um génio, em decadência, mas um génio. As mãos displásicas e o queixo caído – não de espanto, mas de nascença – seguravam um eterno cigarro aceso que umas vezes fumava outras não, reconhecíamos-lhe o encanto na decadência. Era certo que o vestido encarnado aos quadrados pretos e brancos não lhe assentava como outrora, nas noites a fio que passava a defender ideias progressistas e ideais impossíveis de concretizar, exceto na sua mente prodigiosa de jornalista, mas dava-lhe um ar de inconformismo acentuado pela leveza com que declinava a oferta do garçon quando já lhe adivinhava os desejos: “ Uma Margarita, senhora?” Odiava ser previsível por isso logo se apressava em pedir outra coisa que rapidamente lhe passasse na ideia. Adorava a bajulação, sorria disfarçando perceber o cheiro a  falso quando a cumprimentavam os cavalheiros de ego destruído nos artigos cáusticos feministas das suas crónicas semanais; eram preferíveis, contudo, aos cochichos das senhoras bem casadas… claro que ela nunca casou, dispensava atilhos desses e ia-se aconchegando como podia nunca lhe faltando macho – algum corajoso – principalmente nos frios invernos parisienses.
Era um pouco triste, vê-la agora, tantas vezes a falar sozinha, ou quem sabe para algum fã invisível mais persistente, enquanto se via o ar descuidado com que tinha calçado as meias de vidro onde dantes não se lhes vislumbrava um vinco. « Merrrci, mon chérrrri», vincava os “r”(s) mais que o necessário para vincar uma personalidade única onde uns cabelos negros e curtos marcavam a rebeldia de uma juventude boémia e ativista e quando se levantava cansada do seu canto onde tinha deixado a frescura perdida caminhava encurvada pelos anos de luta, mas não perdia os maneirismos com os quais segurava o cigarro, sempre aceso para lembrar que a alma, essa não se curvaria nunca…

Maria João Varela


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