Víamo-la chegar e acomodar-se no seu canto, o seu
canto há mais de trinta anos. Pelo canto do olho apreciávamos os mesmos
maneirismos, o mesmo tom afetado de voz, agora um pouco mais rouca, é certo,
mas reconhecíamos-lhe todas as tonalidades; continuava um génio, em decadência,
mas um génio. As mãos displásicas e o queixo caído – não de espanto, mas de
nascença – seguravam um eterno cigarro aceso que umas vezes fumava outras não,
reconhecíamos-lhe o encanto na decadência. Era certo que o vestido encarnado aos
quadrados pretos e brancos não lhe assentava como outrora, nas noites a fio que
passava a defender ideias progressistas e ideais impossíveis de concretizar,
exceto na sua mente prodigiosa de jornalista, mas dava-lhe um ar de
inconformismo acentuado pela leveza com que declinava a oferta do garçon quando
já lhe adivinhava os desejos: “ Uma Margarita, senhora?” Odiava ser previsível
por isso logo se apressava em pedir outra coisa que rapidamente lhe passasse na
ideia. Adorava a bajulação, sorria disfarçando perceber o cheiro a falso quando a cumprimentavam os cavalheiros
de ego destruído nos artigos cáusticos feministas das suas crónicas semanais;
eram preferíveis, contudo, aos cochichos das senhoras bem casadas… claro que
ela nunca casou, dispensava atilhos desses e ia-se aconchegando como podia
nunca lhe faltando macho – algum corajoso – principalmente nos frios invernos
parisienses.
Era um pouco triste, vê-la agora, tantas vezes a
falar sozinha, ou quem sabe para algum fã invisível mais persistente, enquanto
se via o ar descuidado com que tinha calçado as meias de vidro onde dantes não
se lhes vislumbrava um vinco. « Merrrci, mon chérrrri», vincava os “r”(s) mais
que o necessário para vincar uma personalidade única onde uns cabelos negros e
curtos marcavam a rebeldia de uma juventude boémia e ativista e quando se
levantava cansada do seu canto onde tinha deixado a frescura perdida caminhava
encurvada pelos anos de luta, mas não perdia os maneirismos com os quais
segurava o cigarro, sempre aceso para lembrar que a alma, essa não se curvaria
nunca…
Maria João Varela
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