- Camila,
olha só o que te trouxe? Anda, diz alguma coisa. Gostas? Lúcia olhava a irmã expectante.
Esperava vê-la arrancar-lhe o pacote das mãos como fazia em miúda para abrir a
prenda que lhe tinha comprado pelo seu aniversário.
- Espera. Agora não posso, pousa em cima da mesa
que já o abro.
- Que se passa contigo, Camila? Porque estás a
chorar? A irmã aproximou-se e Camila não teve outro remédio se não pegar no
embrulho. As mãos tremiam como um bêbedo em ressaca e as lágrimas caiam agora
livremente pelas faces. Lúcia reparou agora mais pormenorizadamente no rosto da
irmã e reparou que tinha emagrecido muito; começou deveras a ficar preocupada.
- Olha,
anda. Vamos jantar fora – disse-lhe, enquanto lhe arrancava o embrulho das
mãos; abres depois, agora vamos comer uma pizza que também é preciso
desanuviar, que dizes? Vamos comemorar o teu aniversário.
- Na… na…
não posso – gaguejou. Estou à espera de uma pessoa – mentiu.
- Uma
pessoa? Quem? Já não me dizes as coisas? Que se passa contigo, hein?
- Agora não
posso dizer-te – replicou – Depois conto-te. Agora vai peço-te.
Lúcia despediu-se da irmã, desejando-lhe uma vez
mais um feliz aniversário e saiu do pequeno apartamento onde moravam juntas desde
que se tinha mudado para Coimbra para estudar medicina. Camila viu-a afastar-se
da janela onde tinha ido espreitá-la. Conseguiu vê-la virar a esquina
certificando-se de que se afastava de vez pois como tinha a chave do
apartamento poderia sempre voltar atrás… Correu para a casa de banho e lavou as
mãos repetidas vezes. O coração batia descompassadamente dando a impressão que
ia saltar-lhe do peito. Respirava com dificuldade enquanto olhava o pacote que
a irmã tinha pousado em cima da mesa da sala de jantar. A curiosidade com o
presente dela fê-la levantar-se e dirigir-se ao armário da sala repleto de
objetos de limpeza assim como variadíssimos detergentes. Gastava uma fortuna em
escovas e escovinhas, esfregões de cores e formatos variados, espanadores
grandes e pequenos que pudessem aceder a todos os recantos da casa. A ansiedade
começava agora a diminuir enquanto calçava um par de luvas descartáveis
começando a abrir o pacote.
A irmã, sempre atenta aos seus gostos , tinha-lhe
oferecido uma camisola que tinha cobiçado num dos poucos passeios que davam
juntas aos domingos. – Vê, Lúcia, esta ficava bem com as minhas calças pretas,
hei de vir experimentá-la. Mas nunca chegou a ir por culpa daquele medo insano
que teimava em aumentar…
Até uma
viagem à sua aldeia natal – perto de Castro D’Aire - tinha passado um mês inteiro
a planear: como faria para se sentar,
para entrar na camioneta sempre cheia de gente que respirava, sempre uns para
cima dos outros. Estávamos já no Inverno e o perigo de um vírus que a
contagiasse aumentava pelo que tinha usado uma máscara que tinha tido o efeito
esperado de fazer com que ninguém se atrevesse a sentar-se a seu lado. O pior
foi mesmo em casa dos pais com o cão e dois gatos que passeavam à vontade pela
casa largando o pelo nojento por todo o lado. E se lhe entrasse algum pelo na garganta? E se
os excrementos dos gatos se agarrassem às patas quando eles as usavam para tapar o cocó e transportassem as
bactérias para o sofá onde gostavam de passar as tardes quentinhos junto da
lareira? Então sem que ninguém visse pegava nas toalhitas desinfetantes que
tinha trazido consigo e limpava à socapa
todos os lugares por onde visse que eles se encostavam…Mas durava pouco a
tranquilidade porque logo entrava alguém – era uma casa da aldeia sempre de
portas abertas para toda a gente – e ela ficava com uma vontade louca de
desinfetar o chão onde tinham pousado os pés infestados de micróbios. Tinha
jurado tão cedo não pôr lá os pés quando a mãe lhe perguntou porque passava o
fim de semana de luvas calçadas e spray desinfetante sempre à mão.
Pôs a camisola na máquina a lavar e foi-se deitar.
Sabia que o sono não viria tão depressa, mas sentia-se exausta e sozinha. Desde
que Eduardo se tinha ido que tudo tinha piorado, dantes pelo menos dormia
quatro ou cinco horas por noite porque o aconchego dele dava-lhe algum
conforto, mas desde a sua partida, há seis meses atrás, tudo tinha piorado e as
horas dormidas eram só duas ou três o que se começava a notar já nas rodelas
negras à volta dos olhos, outrora grandes e expressivos, e as roupas que
dançavam ao sabor do seu caminhar de tão largas que estavam… “ Não aguento mais
isto” tinha-lhe ele dito numa voz que
não se alterava nunca, sempre doce, sempre meiga. “Desculpa, mas estás a pôr-me
louco e se não te tratas ao menos tenho de me salvar a mim.” E ela tinha-o
deixado partir. No fundo sabia que os seus medos eram exagerados, estúpidos
até, mas a verdade é que por mais que quisesse não conseguia deixar de repetir
os mesmo rituais dia após dia, semana após semana, mês após e isto há
sensivelmente de há um ano para cá; os medos comandavam-lhe a vida.
Quando Eduardo chegava a casa ela esperava-o de
aspirador na mão para assim que ele se dirigisse à casa de banho para tomar
banho – exigência dela – ela aspirasse os pós trazidos do exterior e
desinfetasse de seguida todo o pavimento. Depois, ainda de luvas calçadas,
pegava-lhe na roupa enfiando-a na máquina e acionando a lavagem, isto todos os
dias, a cada chegada dele. Sabia, ela bem sabia ser este comportamento
despropositado, absurdo, mas simplesmente não o controlava mais. Desde que a
empresa a tinha dispensado passava o dia em casa nisto. O seu trabalho tinha,
aos poucos, sido posto em segundo plano em prole de um escritório imaculado. O
seu escritório de arquitetura já não continha desenhos espalhados, enrolados
uns nos outros, nem as obras pelas quais era responsável recebiam mais as suas
visitas de capacete enfiado por cima dos caracóis negros, agora enfiava a
máscara, calçava as luvas e limpava o escritório. Quando foi chamada ao
escritório do gerente nem estranhou muito a conversa:
- Camila,
tenho imensa pena, mas neste momento vamos ter de fazer uma remodelação no
pessoal e os seus serviços não nos serão necessários. Assim, friamente, como se
ela não tivesse trabalhado lá três longos anos…
Eduardo tinha dito que precisava ser tratada, mas
tratada de quê? Perguntava-se ela. Era tudo uma questão de limpeza, não podia
dizer a um médico que era zelosa demais, senão ainda a internavam e depois
havia os porcos que nem para comer lavavam as mãos e ninguém lhes apontava um
dedo. Mas também havia o tempo, todo o
tempo gasto a lavar a esfregar, esfregar, lavar, sem tempo pergunta ao tempo quanto tempo o tempo tem, não tem tempo,
que pergunta ao tempo quanto tempo o tempo tem… tempo tem tempo… adormeceu
por fim, exausta , pelas lengas lengas e pelos próprios pensamentos que não lhe
davam descanso. Que pior inimigo do que este que habita dentro mesmo dos próprios
pensamentos e sempre sem parar, noite e dia, massacra, tortura, enlouquece e puxa os cordelinhos da mente de quem já não é
dono de si?
Dava já voltas na cama há duas horas, desde que a
irmã tinha chegado, sensivelmente pelas três da manhã. Levantou-se a custo. O
corpo dorido do sofrimento psíquico e das noites mal dormidas, a cabeça confusa
e um medo, um medo enorme, incomensurável de perder tudo o que lhe restava, que
era já muito pouco. Tinha, em pouco mais de um ano, perdido o seu companheiro,
amante e amigo, tinha perdido o emprego e perdia peso de uma forma assustadora,
estava um farrapo humano. Nada mais era do que uma sombra pouco fiel da mulher
glamorosa de há pouco tempo atrás. As unhas bem cuidadas estavam quebradas dos
detergentes abrasivos e das horas de lavagens a que eram submetidas, no entanto
no resto mantinha a aparência debaixo do olho critico.
Os chinelos
lá estavam, como os tinha deixado na véspera, alinhados milimetricamente.
Recomeçou um ritual repetido todos os dias, exaustivamente. Calçou-os e descalçou-os;
calçou-os e descalçou-os três vezes. Dirigiu-se à casa de banho. Largou os
chinelos que trazia calçados para enfiar os da casa de banho que lá se
encontravam, também eles, alinhados numa posição específica, sempre igual, dia
após dia não mudavam de lugar. Este era, aliás uma das discussões diárias que
tinha com Eduardo que às vezes na pressa de ir trabalhar não os deixava
alinhados como lhe pedia. “ Julgas que tenho o teu tempo? Que importância pode
ter mais um pouco para a direita ou mais um pouco para a esquerda? Estás a
ficar louca…” . De início achava-lhe piada, mas à medida que foi aumentando o
número de exigências de sua parte a paciência dele foi sendo cada vez menor…
tomou duche; três vezes se secou, três vezes se enfiou na banheira; três vezes
se vestiu, três vezes se despiu; três vezes lavou os dentes, três vezes acendeu
e apagou a luz. A cabeça começou a rodar: três, três, três… girava, girava,
girava. Um enorme número três aproximava-se e ameaçava engoli-la: três, três,
três.
- Camila, Camila, Camila. Acorda, acorda, acorda.
Que tens amor? Tremes toda, estás a ter um pesadelo?
- Não,
amor. Estava a ter o sonho mais belo, tu ainda aqui estás, ainda me amas… olha,
decidi-me. Hoje mesmo vou procurar ajuda. Vou-me tratar desta obsessão que me
mina a vida.
- Que bom, amor. Agora anda senão ainda te atrasas
para o trabalho. Já pus a mesa exatamente como gostas. A chávena está virada
para baixo, tens três colheres, três colheres, três colheres…
Fim
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