Os passos do cão no andar de cima estavam a
pôr-lhe os nervos em frangalhos. Eram lentos, calmos, calmos demais até. Podia
ouvir perfeitamente as unhas a raspar o soalho de madeira enquanto se passeava
como quem se passeia num domingo soalheiro. Só lhe apetecia subir as escadas e
apertar-lhe o gasganete, aquela acalmia toda não combinava nada com o seu
estado de espírito.
Pela enésima vez veio-lhe à mente a discussão da
véspera. Tinham acabado, nem acreditava ainda, mas ele tinha feito as malas e
tinha mesmo saído de casa. Tinha outra, só podia ser isso se não teria tido um
pouco mais de paciência com ela que estava sempre pronta para lhe ceder aos
caprichos. O cão esganiçou lá em cima, talvez o irritante pirralho, o seu dono
mais novo, lhe tivesse pisado o rabo. “… também gorda como estou, mais cedo ou
mais tarde iria trocar-me por outra, olha só para isto…” E agarrou na gordura
que tinha alojada nas ancas enquanto se olhava ao espelho e contorcia a cara
num esgar de desprezo.
“ - Dá cá o telemóvel! Proíbo-te de lhe pegares.
Chega, estou farto disto!” “ - Deixa cá ver, quem é esta Mafalda? Hein? Andas
a trocar mensagens com as amiguinhas, não é?” E atirou o aparelho contra a parede numa fúria
desproporcionada fazendo as peças espalharem-se pelos quatro cantos do quarto, desagregando
o que antes estava unido; tal como eles também tinham estado outrora… Pensava
na discussão que o tinha feito sair de casa, voltaria a vê-lo? A vinda para Coimbra não tinha sido a decisão
mais acertada. Viverem juntos depois de dois anos de namoro adolescente tinha-
a desestabilizado. Teria de conviver com ele diariamente, expor-lhe os recantos
tantas vezes disfarçados por roupas largas num estilo que se quer próprio mas
que só visa o disfarce. Ele vê-la-ia despida, vê-la-ia ao acordar com os
cabelos frisados no ar, com os olhos
inchados, o hálito noturno… não, não e não. Mas por outro lado não o queria à
solta, com os colegas pelos bares e praxes, sabe-se bem o que se faz com uns
copos a mais…
A mãe tinha resistido muito à ideia. “ – Estás
maluca, Sara? Achas que te vou deixar ir viver tão cedo com um rapaz? Tira mas
é o curso primeiro, depois logo se verá”. O pai tinha-se abstido, como aliás sempre
fazia no que diz respeito a decisões complicadas: “ – Vá lá Sarita, pensa
melhor, tira o curso e goza agora a vida.” Mas ela estava decidida e quando se
instalou no apartamento que os pais tinham na Conchada, o Tiago foi viver com ela. A mãe quando descobriu dois
meses depois ameaçou tirá-la do curso “ – Pensas o quê? Pensas que vou andar a
sustentar os dois?” “– Mas mãe, o
apartamento é só para mim mesmo, ele não gasta as paredes. A luz e água ele
ajuda a pagar.” Não havia volta a dar, o mal pior já estava feito e a mãe não
teve outro remédio senão assentir.
“ – Que estás aqui a fazer, Sara? As aulas ainda
não acabaram, já é a segunda vez que cá vens hoje.” “ – Não vês que tenho
saudades tuas estúpido? E tratas-me assim, como se visses um fantasma? Já não
me amas?” “ - Sabes bem que sim! Vem cá!” E espetou-lhe
um beijo apaixonado. “ – Agora tenho de ir para as aulas. Até logo.” “ Amas-me?
Amas-me?”- gritou-lhe ela deixando-o embaraçado ao pé dos amigos. “ Até logo “
e virou-lhe as costas entrando na faculdade de matemática onde era caloiro. Ela
também era caloira na faculdade de farmácia, mas raros eram os intervalos em
que não passava pela faculdade dele para ver se o descobria a falar com alguma
desamparada que se lhe quisesse amparar no ombro.
O Cão tinha parado de esgravatar o chão, devia
estar descansando agora ou talvez roesse um daqueles ossos que servem para
limpar os dentes depois das refeições. Irritou-se com o silêncio. Viria ele
ainda? Voltaria para ela? Levantou-se e
foi até à janela. O reflexo no vidro fê-la recuar. Estava gorda, como é que ele
voltaria para uma gorda e horrível como ela? Não prestava para nada, nem uma
dieta era capaz de seguir para manter a linha. “olha-me só para este cu, está
enorme, está mesmo grande e estou toda carregada de celulite. És uma pessoa
horrível e nem o Tiago nem outro qualquer vai voltar para ti…” Começou a
chorar. Estava mesmo de rastos, os pensamentos estavam agora totalmente
dominados por tudo o que de mal havia nela, por todos os fracassos, todos os
desgostos, todas as insatisfações com o corpo. Vinham rápido sem nenhum esforço
como se tivessem estado à espreita de um momento de fraqueza seu para a
assaltarem de dúvidas quanto à sua própria pessoa. Avançou até à cozinha. No
frigorífico estavam ainda dois hambúrgueres que lhes teria servido de jantar,
mas a discussão acabou por deixá-los esquecidos. Aqueceu-os no micro-ondas e
come-os aos dois juntamente com um pacote de batatas fritas que abriu. Sentiu-se
culpada. “vês burra de merda porque é que ele não te quer? Só comes merdas que
engordam”. Chorava e a ansiedade crescia à medida que recomeçava mais um
episódio de empanturramento. Quem não visse não acreditava que alguém pudesse
enfiar para dentro tanta quantidade de comida. Mesmo a terapeuta que tinha ,contrariada,
consultado no hospital se tinha chocado. “ …agora também não vale a pena,
perdida por cem, perdida por mil…” aumentava agora o frenesim com que levava à
boca e quase sem mastigar engolia tudo o que ia apanhando por cima da mesa: um
pedaço de queijo, um pacote de Oreos
quase cheio, o resto das batatas fritas do pacote. Depois foi a
despensa que levou com o seu apetite devorador: dois pacotes de Dóritos , uma torta da Dan Cake, barritas,
…. Não parou durante meia hora, as lágrimas tinham parado, só comia, tanto
que lhe doíam os maxilares. Ia engordar dois quilos só hoje. E se ele voltasse?
Repararia de certeza que estava mais gorda. Correu para a casa de banho e num
gesto cada vez mais repetido levou os dedos à boca e devolveu à sanita, num esforço que lhe arrancava o estômago do
lugar e quase lhe faziam os olhos saltar das órbitas, o conteúdo do estômago
feito bolo alimentar. Os vómitos ouviam-se pela casa afora: “HuggghtHugght…
HugghtHugght… HugghtHugght…” no final só um silêncio e uns soluços baixinhos, sentidos
e a noite que invadia a casa de banho e o resto do apartamento.
Tiago não veio naquela noite, nem na seguinte. A
verdade é que não veio mais. Este desfecho era mais do que óbvio, a terapeuta
que uma amiga - a única que se mantinha
ao seu lado - tinha insistido para que
procurasse tinha-a alertado: “ – Não vê Sara, que o Tiago não vai aguentar as
suas perseguições por muito mais tempo?” “ - Eu sei doutora, mas que quer, eu
não consigo parar! Estou muito bem e de repente penso que ele pode estar a
falar com outra e tenho de ir verificar. Sabe, é mesmo mais forte do que eu…
que hei de fazer? Há dias encontrei-lhe uma mensagem no telemóvel, disse ser de
uma colega, disse-me que era para um trabalho de grupo.” “ - A Sara sabe que há muitos trabalhos de grupo,
é normal que esteja a falar verdade.” “ – Eu sei como isso é! Primeiro um
trabalho de grupo depois um copo e pimbas. Com tantos rapazes no curso e tinha
logo de fazer os trabalhos de grupo com raparigas? Não. Agora já o fiz
prometer-me que não falava mais com ela.” “ –
Só quero que saiba que isso não vai resultar, ele vai acabar por se
fartar das suas imposições.” “ - Que
posso eu fazer, então?” “ - A única
coisa é aprender a viver na incerteza…” Tinha dito aquilo assim, com aquela
naturalidade, saberia ela o que era a incerteza? Como se pode viver na
incerteza? De certeza que a doutora não sabia o que era desconfiar de alguém. E
também desconfiar não era bem o termo, até acreditava que o namorado gostasse dela
– pelo menos antes de ter engordado até ficar aquela baleia. Mas era mais como
se pudesse prevenir alguma tentação que ele pudesse algum dia vir a ter.
Acordou, tinha adormecido no chão da casa de banho
embalada pelos soluços. Pareceu ouvir um barulho e correu para a porta na
esperança de vê-lo entrar, mas tudo se mantinha em silêncio.
“ - Acabou,
Sara, já te disse, desta vez passaste todos os limites. Enxovalhaste-me ao pé
dos meus amigos, deste um estalo à Mariana que não fez nada de mal…” “ – Estava-se
a atirar a ti que eu bem vi! Não passa de uma p…a! Vê bem como ela se veste,
aquelas meias rendilhadas, as mamas quase de fora e bem vi que ias ao perfil
dela ver-lhe as fotos, andas a toda a hora a ver-lhe o perfil do facebook.” “ –
Que sabes tu disso? Acaso espias-me o computador? Eh, pá, esta gaja faz-me
mesmo passar dos cornos! Sai-me da frente senão passo-te e ferro”. E tinha ido
fazer as malas deixando-a num pranto sem que tivesse o mínimo pingo de piedade.
Aos poucos as visitas dela à faculdade tinham
aumentado de ritmo. Ia uma, duas, três vezes até que chegou uma altura que
Tiago já sabia que quando saísse para o intervalo ela estaria à sua espera. Os
colegas e amigos tinham até dito na brincadeira que lá estava a mãe dele para o
vir buscar com medo que ele se perdesse no caminho. Foi piorando sempre,
revolvia-lhe o telemóvel à procura de indícios de conversas com outras
raparigas, via-lhe os bolsos, controlava cada passo dele e agora por último
invadia-lhe o computador. Ligava-lhe a toda a hora e se não atendia logo era
porque estava com outra; fazia mesmo birra como as crianças: amuava, ficava sem
lhe falar e já nem o deixava aproximar-se e fazer-lhe um carinho. Depois, ultimamente tinha perdido aquele
encanto de quem tem autoestima, passava a vida a pôr-se em baixo: “ Vês com
estou horrível? Olha só estas banhas! Não me toques, tenho de perder uns kilos
primeiro. Ele chegou mesmo por algumas vezes ouvir um ruído na casa de banho
“HuggghtHugght…” e suspeitou que andasse a vomitar para manter a linha que
estava já no limite, tão magra estava. Falou então com a sua melhor amiga que
era de Viseu – como eles – e que se mantinha apesar de tudo ao seu lado. Fê-la
prometer que a levaria ao hospital e que não lhe diria ter sido ele a
propor-lhe o tratamento porque senão ainda se punha com coisas. Ele desconfiava
que ela tivesse bulimia essa epidemia dos tempos modernos, acreditava que se
aproximava já de estar anorética, mas ela achava-se gorda. Mas porque é que ela
não entendia que, para ele, ela era muito mais do que um corpo? Contava as
calorias, passava horas sem comer, nunca tomava o pequeno almoço e quando
vieram as praxes e os jantares aí então é que ficou paranoica: “ - Já viste amor, agora vamos para aqueles
restaurantes que só sabem servir aquelas carnes cheias de gordura. Esta semana
estava a correr tão bem a dieta, só estava a comer coisas saudáveis” “ -
Depois continuas, são só uns dias…” “ – Isso dizes tu, mas vai-se já notar nas
calças. Como posso aparecer depois ao pé das minhas amigas, todas elegantes…”
“ - Fonix Sara, tu deves andar a ver
mal, és a mais elegante de todas.” “ Oh, és mesmo um fofo! E deu-lhe um beijo
lento e apaixonado. Mas isso tinha ficado muito lá atrás e ele agora não
aguentava mais as desconfianças infundadas dela.
Acordou. Acordou gelada a meio da madrugada e com
um sabor acre na boca, ou seria o cheiro do vomitado que ainda não tinha limpo?
Era também doce; um sabor agridoce era mais correto dizê-lo. Levantou-se
cambaleando. Tinha dores de estômago, bastante intensas agora que estava
completamente acordada. Gemeu e dirigiu-se ao espelho para ver uma cara
completamente cadavérica, não era ela, não podia ser, ela estava gorda,
gordíssima… gemeu novamente, as dores agora eram insuportáveis. Tossiu e quando
se foi lavar viu que tinha sangue na boca, aí estava a origem do sabor: sangue
misturado com o resto do vómito que nem tinha retirado da cara. Já não era
gente. Viu-se ao espelho por inteiro e pela primeira vez conseguiu vislumbrar o
esqueleto em que se tinha tornado. Bem lhe diziam os amigos, bem lhe dizia ele,
o seu amor perdido para sempre… cambaleante foi-se arrastando até ao quarto a
custo, tirou um cartão que tinha guardado há uns tempos e que dizia que podia
ligar a qualquer momento em caso de urgência. Ligou.
- Estou? Sim? Quem fala? Estou? Sara? Pode falar,
sim? Vou já enviar alguém. Sara? Sara?...
Fim
Maria João Varela
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