segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Os deuses devem estar loucos




Entediados como só pode estar quem passa pela eternidade sem nada para fazer, os deuses menores dirigiram-se ao Deus Mor para lhe pedir algo que os distraísse do inferno do tédio a que o paraíso os tinha condenado. Deus Mor compadecido, consentiu que criassem um mundo com seres animados que os pudessem distrair mas, tinha de obedecer a algumas regras para poder ser divertido senão, poderia simplesmente ficar sem graça, como aquele onde viviam pois embora fossem deuses muito diferentes uns dos outros, pelas próprias regras de um paraíso nada de interessante se podia passar ali; era uma mesmice.
A primeira regra que o mandão ditou foi que o mundo , depois de criado jamais voltasse a ser tocado; tivessem pois atenção que, assim como o fizessem assim se manteria.
A segunda era mais complexa: esses seres teriam de viver em companhia uns dos outros, com uma necessidade vital recíproca sem, no entanto, se entenderem completamente, teria de haver sempre conflito para que o dinamismo daí proveniente fosse suficiente para aplacar  o desejo desenfreado dos deuses menores por novidade – coisa inexistente por aquelas paragens.
Por último, a receita da sua confeção jamais poderia ser-lhes acessível pelo que deveria ficar num tal esconderijo onde nunca se lembrassem de procurar.  Era melhor precaverem-se contra uma  eventual desvirtuação da receita.
Depois das recomendações seguiu-se  uma luta renhida pois cada um dos deuses menores queria deixar o seu cunho na criação; nenhum abdicava de ter a sua imagem refletida nos seres que com tamanho empenho ajudavam a criar e que, pela primeira vez, os fazia sentir úteis. Surgiu então o deus da sabedoria e com a já sua conhecida capacidade de ponderação sugeriu que os indivíduos fossem de tal forma que contivessem dentro um pedaço de cada um deles e que a luta que agora ali tinha lugar se passasse a fazer dentro de cada um dos indivíduos; assim se pensou, assim se fez…
O assunto resolvido, logo outro de complexidade semelhante se pôs: como deveria ser o lugar onde eles ficariam? Quais as suas características para que todas as recomendações do Deus Maior fossem respeitadas? Aí,  a melhor sugestão surgiu mesmo do deus da confusão : o lugar seria de uma tal forma flexível que cada um deles – dotados de uma quantia nada modesta de maneiras de apreender o mundo  ( os cinco sentidos ) – veria, sentiria e ouviria coisas distintas pois a juntar-se à flexibilidade do mundo inventaram  uma característica deveras interessante que fazia com que, com os sinais provindos do mundo exterior, houvesse uma capacidade inata dos seres em conjugarem esses sinais de infinitas formas diferentes tal qual um excêntrico e talentoso pintor com a sua paleta de cores limitadas consegue criar nuances de rara beleza e, foi  assim, que se criou de uma assentada um mundo simples e complexo  além de extremamente divertido para os criadores pois como é bom de ver se torna  suscetível de gerar conflitos  entre os seres assim criados.
Discussões aparte, o processo até corria bem aos deuses que agora se entusiasmavam pela primeira vez  na sua eterna  e aborrecida vida não fosse … há sempre algo que foge ao controle, até aos deuses, não fosse este mundo – e o outro pelos vistos também – cheio de percalços. É que um dos deuses, matreiro e sabido esperou pelo último milissegundo depois  da criação estar aprovada e confecionada para lhe acrescentar uns pozinhos, nada de especial, mas como deus da liberdade que é, fez a diferença, toda a diferença. Foi preciso, ainda assim,  esperar  3,5 mil milhões de anos, mais milhão menos milhão para que se conseguisse manifestar a sua traquinice, o que para um deus menor não é nada visto que tem todo o tempo do mundo. Quando os outros deuses começaram a ver  que a criação estava a  ficar esquisita e já não tão instável e divertida quanto antes aperceberam-se logo qua ali tinha mão do idealista.  Verificaram que as coisas saiam do controle e que o produto atual das primeiras partículas que  tão divertidamente tinham visto evoluir para moléculas, células, seres pluricelulares assexuados e sexuados que se comem se rejeitam se juntam e se separam numa dança da vida cheia de movimento e cor  tomava, a pouco e pouco,  a sua vida  em mãos e que já não lhes davam tanto espaço para se manifestarem neles como bem entendiam mas, antes, equilibravam essas forças dentro deles e usavam-nas em seu favor para florescerem e eles, os deuses, sentiam que novas forças surgiam dessa conjugação de forças e que se reduziam agora a uma insignificância cruel e insuportável.
Ah, os humanos, não todos mas alguns, enfureciam os deuses pela sua capacidade de se recriarem, aprenderem e ensinarem, planearem e controlarem ir para sul quando o suposto era o norte, e até intuitivamente tinham conseguido encontrar o segredo tão bem guardado, bem no interior de si mesmos e sabiam agora com que ingredientes eram feitos podendo então alterar a receita.
Uma esperança mantinha ainda os deuses alegres, é que poucos humanos pareciam apreciar ir contra a corrente, parecia dar muito trabalho, era necessário praticar muito, refletir, parar e relaxar e eles pareciam gostar mais de divertimento – quem sai aos seus não degenera. Estavam, apesar de tudo, preocupados. É que o deus da liberdade por ter sido o último e não terem dado por ele não tinha rival direto, bastava que os humanos quisessem e o mundo era deles: poderiam aprender a lidar bem uns com os outros apesar das diferenças, a pensarem e pararem antes de agir, a estarem mais conscientes e, assim,  numa maior sintonia,  mais atentos às forças que se digladiam dentro de si retirando-lhes o seu poder; enfim, um tédio só!  


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