E se hoje eu fosse como sou? Se me
deixasse conhecer em toda a minha humanidade tão frágil e trágica quanto
deliciosamente única e esplendorosa? Porque insisto em me esconder, resisto a mostrar o que me faz única e ao mesmo tempo igual? Se ao menos eu soubesse que também tu
tremes perante o desconhecido; se imaginasse que também tu te perdes e esvazias
de sentido, talvez me deixasse ver por dentro.
Num relampejo de coragem
apetece-me descobrir-me do manto pesado e negro que me cobre da ameaça do
mundo. E se eu me abrisse? E se eu deixasse descobrires o tesouro tão bem
guardado que possuo e que só eu conheço? Ah, mas primeiro, teria de te mostrar
a casa dos terrores, dos medos inconfessáveis, dos monstros amordaçados, das
léguas por percorrer; teria de dar nome ao deserto da alma e convidar-te a atravessá-lo
comigo… quererias tu? Dar-te-ias ao incómodo de partilhares os horrores para
descobrires o tesouro?
Foi-se a fugaz coragem, e
deixo-me estar assim, envolta na névoa da desconfiança ;querendo falar,
calando; querendo mostrar, tapando ;
querendo ser eu, disfarçando. E o tempo vai passando, esqueço-me do eu que
sou e passo a ser o eu que penso que queres que eu seja. E tu? Tu fazes o mesmo
e, embora nos toquemos por ínfimos instantes, esculpimos abismos, cada dia que passa, mais e mais escarpados, nunca nos descobrimos nem encontramos.
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