Entediados como só pode estar
quem passa pela eternidade sem nada para fazer, os deuses menores dirigiram-se
ao Deus Mor para lhe pedir algo que os distraísse do inferno do tédio a que o
paraíso os tinha condenado. Deus Mor compadecido, consentiu que criassem um
mundo com seres animados que os pudessem distrair mas, tinha de obedecer a
algumas regras para poder ser divertido senão, poderia simplesmente ficar sem
graça, como aquele onde viviam pois embora fossem deuses muito diferentes uns
dos outros, pelas próprias regras de um paraíso nada de interessante se podia
passar ali; era uma mesmice.
A primeira regra que o mandão
ditou foi que o mundo , depois de criado jamais voltasse a ser tocado; tivessem
pois atenção que, assim como o fizessem assim se manteria.
A segunda era mais complexa:
esses seres teriam de viver em companhia uns dos outros, com uma necessidade
vital recíproca sem, no entanto, se entenderem completamente, teria de haver
sempre conflito para que o dinamismo daí proveniente fosse suficiente para
aplacar o desejo desenfreado dos deuses
menores por novidade – coisa inexistente por aquelas paragens.
Por último, a receita da sua
confeção jamais poderia ser-lhes acessível pelo que deveria ficar num tal
esconderijo onde nunca se lembrassem de procurar. Era melhor precaverem-se contra uma eventual desvirtuação da receita.
Depois das recomendações
seguiu-se uma luta renhida pois cada um
dos deuses menores queria deixar o seu cunho na criação; nenhum abdicava de ter
a sua imagem refletida nos seres que com tamanho empenho ajudavam a criar e
que, pela primeira vez, os fazia sentir úteis. Surgiu então o deus da sabedoria
e com a já sua conhecida capacidade de ponderação sugeriu que os indivíduos
fossem de tal forma que contivessem dentro um pedaço de cada um deles e que a luta
que agora ali tinha lugar se passasse a fazer dentro de cada um dos indivíduos;
assim se pensou, assim se fez…
O assunto resolvido, logo outro
de complexidade semelhante se pôs: como deveria ser o lugar onde eles ficariam?
Quais as suas características para que todas as recomendações do Deus Maior
fossem respeitadas? Aí, a melhor
sugestão surgiu mesmo do deus da confusão : o lugar seria de uma tal forma flexível
que cada um deles – dotados de uma quantia nada modesta de maneiras de
apreender o mundo ( os cinco sentidos ) –
veria, sentiria e ouviria coisas distintas pois a juntar-se à flexibilidade do
mundo inventaram uma característica
deveras interessante que fazia com que, com os sinais provindos do mundo
exterior, houvesse uma capacidade inata dos seres em conjugarem esses sinais de
infinitas formas diferentes tal qual um excêntrico e talentoso pintor com a sua
paleta de cores limitadas consegue criar nuances de rara beleza e, foi assim, que se criou de uma assentada um mundo
simples e complexo além de extremamente
divertido para os criadores pois como é bom de ver se torna suscetível de gerar conflitos entre os seres assim criados.
Discussões aparte, o processo até
corria bem aos deuses que agora se entusiasmavam pela primeira vez na sua eterna
e aborrecida vida não fosse … há sempre algo que foge ao controle, até
aos deuses, não fosse este mundo – e o outro pelos vistos também – cheio de percalços.
É que um dos deuses, matreiro e sabido esperou pelo último milissegundo depois da criação estar aprovada e confecionada para
lhe acrescentar uns pozinhos, nada de especial, mas como deus da liberdade que
é, fez a diferença, toda a diferença. Foi preciso, ainda assim, esperar 3,5 mil milhões de anos, mais milhão menos
milhão para que se conseguisse manifestar a sua traquinice, o que para um deus
menor não é nada visto que tem todo o tempo do mundo. Quando os outros deuses
começaram a ver que a criação estava a ficar esquisita e já não tão instável e
divertida quanto antes aperceberam-se logo qua ali tinha mão do idealista. Verificaram que as coisas saiam do controle e
que o produto atual das primeiras partículas que tão divertidamente tinham visto evoluir para
moléculas, células, seres pluricelulares assexuados e sexuados que se comem se
rejeitam se juntam e se separam numa dança da vida cheia de movimento e cor tomava, a pouco e pouco, a sua vida em mãos e que já não lhes davam tanto espaço
para se manifestarem neles como bem entendiam mas, antes, equilibravam essas
forças dentro deles e usavam-nas em seu favor para florescerem e eles, os
deuses, sentiam que novas forças surgiam dessa conjugação de forças e que se
reduziam agora a uma insignificância cruel e insuportável.
Ah, os humanos, não todos mas
alguns, enfureciam os deuses pela sua capacidade de se recriarem, aprenderem e
ensinarem, planearem e controlarem ir para sul quando o suposto era o norte, e
até intuitivamente tinham conseguido encontrar o segredo tão bem guardado, bem
no interior de si mesmos e sabiam agora com que ingredientes eram feitos podendo
então alterar a receita.
Uma esperança mantinha ainda os
deuses alegres, é que poucos humanos pareciam apreciar ir contra a corrente,
parecia dar muito trabalho, era necessário praticar muito, refletir, parar e
relaxar e eles pareciam gostar mais de divertimento – quem sai aos seus não
degenera. Estavam, apesar de tudo, preocupados. É que o deus da liberdade por
ter sido o último e não terem dado por ele não tinha rival direto, bastava que
os humanos quisessem e o mundo era deles: poderiam aprender a lidar bem uns com
os outros apesar das diferenças, a pensarem e pararem antes de agir, a estarem
mais conscientes e, assim, numa maior
sintonia, mais atentos às forças que se digladiam
dentro de si retirando-lhes o seu poder; enfim, um tédio só!
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