domingo, 1 de setembro de 2013

As sopas da avó Ermelinda


Era uma mulher de aspeto, à primeira vista, rude e desleixado; dessas que se esquecem de cuidar de si para cuidar dos outros. As rugas já faziam pregas na pele torrada pelo sol impiedoso, embora não devesse na altura ter mais de cinquenta anos, um andar atarefado e enxuto como que a desincentivar conversa fiada. A sua figura, mediana e desenvolta era o pilar de uma família de cinco filhos verdadeiros mais uns quantos emprestados.
Durante muitos e muitos anos não me lembrei dela, mas agora que a passagem dos anos me levam a valorizar o repositório das memórias de infância, ela surge uma e outra vez sedimentando uma lembrança cálida e amorosa que jazia perdida, sabe Deus onde, pelos labirínticos caminhos da mente. Lembro-me da casa feita de tábuas de madeira com um pequeno acrescento onde existia um velho e sujo fogão, permanentemente, ou a mim me parecia, em funcionamento; era lá que se cozinhavam as sopas que alimentavam as muitas bocas que sempre pairavam por ali. Eram sobretudo crianças como eu e os meus irmãos que tantas e tantas vezes lá matávamos a fome : de comida e de carinhos… coisas que nunca faltavam. Ganha, aqui, contornos reais a fábula da multiplicação dos pães, sendo que no caso em apreço teria mais a ver com sopas: de legumes, de feijão, de café…
 Que saudades das sopas de café acabado de fazer numa velha e grande cafeteira amolgada onde ela deitava colheradas do pó, comprado  a granel, em cartuxos feitos de folhas de jornal. Gostava de vê-la mexendo a cafeteira, calcando as borras que teimavam em subir abanando os quadris, enquanto o aroma se espalhava pelo pequeno alpendre e eu esperava, olhos postos nela, pacientemente, por mais uma refeição. A avó Ermelinda, acabada de confecionar a frugal refeição, entrava na divisão principal espantando da cama os filhos que por ocultos motivos chamávamos irmãos numa salgalhada de laços familiares incompreensíveis; uns adolescentes tardios, cujo cheiro a chulé e a hormonas desreguladas impregnava o ambiente sendo mitigado, apenas, pelo aroma do café fervente servido em malgas onde boiavam pedaços de pão antigo.
Na ausência da verdadeira, esta avó emprestada fazia as vezes da outra  e ajudou a criar-nos sem fazer distinção entre nós e os próprios filhos; parece-me até que muitas vezes lhes tirou da boca alguns mimos porque já estavam quase criados – uns marmanjões, como lhes chamava – para me dar a mim e aos meus irmãos que éramos uns franganotes. Nestes tempos difíceis, faltava tudo menos a imaginação; recurso precioso para poder continuar a viver.

Aqui aprendi o valor das coisas simples que rareavam: o pão fresco e a manteiga, a carne e o peixe e lembro-me até que um dos meus sonhos de menina era ter um tanque de azeite para lá poder molhar o pão tal era a falta. Mas a coisa mais importante que aprendi foi a importância da generosidade e solidariedade que abundavam embora faltasse tudo o resto. A importância de fazer o bem onde ele for preciso, sem restrições, num entendimento profundo, quase carnal, que somos todos igualmente importantes, todos farinha do mesmo saco, trazendo dentro a urgência da vida. Sem esta avó eu não teria sobrevivido.

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