Por detrás da pequena janela
orlada a verde, um verde de tinta rasca, mas com um encanto assombroso,
assomava uma pequena cabeça de fios prateados muito atenta ao que se passava em
baixo. Sempre que por lá passava, lá
estava a cabeça como se tivesse existência própria, sem mais nada que a
suportasse : sem corpo, sem membros, só uma cabeça. Nunca conheci o resto da
dona, só uns olhinhos curiosos como se não houvesse no mundo nada mais
importante do que observar as pessoas que passavam, os carros, esses monstros
de metal que era suposto facilitarem-nos a vida, um gato preguiçando no umbral
da escola infantil, onde bandos de crianças chegavam, enchendo de alegria a
rua…
Uma velha e encardida cortina de
renda grosseira de má qualidade preenchia o buraco negro de uma velha casa à
antiga onde se podia adivinhar o cheiro a solidão e naftalina, numa combinação
por demais usual, roçando uma lei física qualquer - talvez a própria naftalina tenha na sua
estrutura química algum componente que a par de afastar a traça, ajude também a
afastar a outra praga maior, mas adiante. Um velho e escuro buraco, talvez o
vislumbre de um vazio na alma, apenas preenchido por aquele tempo que passava à
janela.
Não me lembro já a primeira vez
que reparei nela, talvez num daqueles poucos momentos em que, embrenhados no
nosso próprio eu levantamos os olhos do chão para contemplar outras paisagens,
apenas me lembro de que achei uma perda de tempo aquele passatempo, um tanto ou
quanto antiquado, de observar quem passa. Ignorância a minha, poderá haver
alguma coisa mais proveitosa do que observar, sem ser observado, os nossos
semelhantes?
Comecei sem querer a ver pelos
seus olhos: o que pensaria de mim, ao
ver-me olhar de esguelha em vez de diretamente, sem subterfúgios, o meu reflexo
no espelho para ajeitar a indumentária; um par de turistas de mochila às
costas, faltando a uma em curvas o que sobrava na outra completando-se numa
harmonia perfeita; uns sapatos de salto alto gingando com a dona em cima,
perigosamente, equilibrada dando ao andar uma vaidade sem motivo e fazendo
balancear as bolas vermelhas da blusa; uma negra de cores garridas vestida criando
uma simetria de cores perfeita, apenas interrompida pelo leve coxear… sempre
sem querer apanhei-lhe o mesmo vício.
Pelo que foi uma tristeza quando
a cabeça desapareceu no buraco negro fazendo morrer a janela provando o
sucedido umas tábuas brancas e carrancudas, a fazer as vezes da lápide,
fechando hermeticamente lá dentro todas as histórias que a cabeça nunca se deu
ao trabalho de contar ao mundo.
A única lembrança de que algum
dia lá habitou alguém foi a cortina, velha testemunha das histórias
observadas, ligeiramente afastada para um lado, como se uma mão fantasmagórica
ainda a segurasse para que uns olhinhos curiosos observassem o mundo de uma
pequena abertura, mas com enorme alcance…
(imagem do artista Melro)
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