Dançar à chuva, alegria infantil que se esquece quando adultos, mas que
causa lembranças de tempos em que o sofrimento se evitava com recurso à
imaginação. Há sempre alegria quando se tem imaginação porque a segurança com
que se sabe que tudo passará, que tudo é efémero, que saber aproveitar o que se
tem é sinal de sapiência. Porque se perde, ao crescer, esta sabedoria gostava
eu de saber…
Não importava, no momento em que eu e a minha irmã, nos ríamos dançando sob
as pingas que caíam de um telhado cansado de abrigar histórias humanas que ele
ameaçasse soçobrar a qualquer instante, deixando-nos soterradas; o que
importava era tomar banho de chuva e rir, rir muito. Agradeço todos os dias não
ter perdido ainda a capacidade de rir na chuva e se me virem a correr debaixo
de um temporal acreditem que por dentro estarei a sorrir mesmo que me apeteça um
banho quente, há que aproveitar enquanto há chuva!
Dizem que as casas só se tornam um lar depois de lá morarem muitas pessoas
impregnando o ar com os seus melodramas, as suas angustias, sonhos, esperanças…
dizem que só então são capazes de ser acolhedoras com as histórias que tiveram
o privilégio de partilhar, ficando as suas paredes escritas com versos sentidos
e por isso exalando um perfume suave feito de emoções vividas; por isso eu era
feliz naquele que era um prédio que ameaçava ruir a qualquer instante. A minha
irmã também. As histórias pairavam no ar, como espíritos que se desprendessem e
passassem nas frestas das portas desengonçadas que chiavam com o menor sopro e
a curiosidade também se desprendia para recriar
as vidas que ali se tinham entrelaçado, dado nós e desenlaçado.
Porque queremos casas novas quando as antigas são muito mais ricas de
imaginação? Talvez só sejam úteis a quem se aventura a entrelaçar vidas pelas
palavras e a mais ninguém. A verdade é que quando nos avisaram que tínhamos de
sair porque a qualquer momento o velho contador de histórias poderia cair,
despedi-me com tristeza das minhas amigas de aventuras, amigas da minha imaginação
que tinham a minha idade e vinham tomar
um chá, feito por mim com pingas de chuva e que à tardinha se aventuravam no
sótão onde as tábuas partidas deixavam entrever as outras divisórias, onde o
vento se debatia em cada esquina para fazer parte do encontro, onde o sol vinha
visitar-nos pelas frestas fazendo lindos desenhos e até arco-íris pessoais.
Esta velha morada que ruiu depois de termos saído, levou com ela as nossas
próprias histórias, de pobreza, mas nunca de sofrimento ou miséria. Histórias onde
coube um velhote que nos fazia companhia quando não tinha mais lugar para
dormir, pedindo desculpa com a humildade que só um sem-abrigo tem e que , na
primeira visita assustou a minha mãe fazendo-a empunhar ameaçadora um velho
canivete com que cortava um pedaço de pão envelhecido, de recém-nascido ao
colo. Veio outras vezes, mas já não nos importávamos por partilhar aquele
espaço enorme, com quartos aos montões e até lhe sentíamos a falta quando
passava muitos dias sem vir, pensando que talvez já se tivesse despedido desta
vida, dura e sem sentido porque a ele já faltava a imaginação…
Sem comentários:
Enviar um comentário