quarta-feira, 4 de setembro de 2013

O Hulk em mim

Há assuntos na vida que nos moldam o caráter sem que nos apercebamos disso a não ser longos anos mais tarde. Passei a acreditar sem reservas na máxima «quanto mais a gente se baixa mais o cu se vê» tinha por volta dos 11 anos de idade e uma história já longa de bullying e rejeição que levou muitos anos a exorcizar.
Naquela época, a casa pia era um misto de colégio interno, externo e um meio termo entre os dois e , embora eu estivesse no meio, nem era externa nem interna, tinha dos dois lados inimigos figadais que se revelaram logo após o primeiro dia em que fui uma espécie de atração de circo porque já ia a meio o período das aulas e a professora fez questão de que toda a turma me desse as boas vindas. A partir daí as boas vindas acabaram e começou o que para mim foram longos anos de tortura.
A pobreza extrema e a falta de condições sanitárias condignas fazia com que os piolhos tivessem sido a minha companhia mais fiel de infância e afastassem de mim as amiguinhas para brincar. A culpa era toda de umas empenhadas funcionárias que chegavam qual exterminadoras implacáveis rompendo a meio das aulas com a sentença: «Vamos lá vasculhar essas cabeças e ver quem tem piolhos»; eu começava logo a tremer pois já sabia que os meus hóspedes indesejáveis não me largavam os cabelos e que isso era o suficiente para ser posta de lado como um pária o resto de semestre. E assim era, mal davam conta dos fiéis habitantes, estas bestas sem empatia saíam vitoriosas com a sensação do dever cumprido , e a mim restava-me apenas a companhia de outra desgraçada como eu que mais ninguém queria, pelo que juntávamos as desgraças sendo amigas uma da outra num afinco de fazer inveja aos mais populares da escola.
A minha mãe que nunca foi de meias medidas, assim que era avisada da minha condição de piolhosa tomava logo uma de duas medidas drásticas: ou me rapava o cabelo pondo um lencinho no lugar dos caracóis ou o ensopava em petróleo, insensível aos meus apelos e queixumes e inconsciente para o perigo de tal medida. Tornava-me assim na   cúmplice involuntária de tais bestiolas onde um sentimento dúbio nos unia: por um lado queria-os mortos por outro tentava salvar-lhes a vida aplacando-me os ardores do petróleo e do rabear aflito deles enfiando a cabeça em água fria.
Quando a primeira medida era a opção, os meus perseguidores habituais tinham com o  que se rir  a bandeiras despregadas ao verem-me careca depois de me arrancarem o lenço. Do bando, destacava-se o líder que só pelo nome dá para perceber não ser boa rês: chamavam-lhe o Fatela, não sei se se chamava mesmo assim ou se seria também ele vitima de alguma alcunha que colou. Sei apenas que foi um dos meus maiores torturadores de infância que apenas recuava perante a sanha justiceira da minha irmã quatro anos mais velha. Um dia, cansada de tanto intervir, deixou-me entregue à sorte com a resolução: « A partir de hoje tens de aprender a defender-te!»
Ficava muitas vezes sem ir ao recreio, espreitando o rufião que se pavoneava com a comandita atrelada, para fugir a sarilhos, mas quanto mais me escondia mais ele me encontrava fazendo uma dupla inesquecível qual Tom & Jerry  com a história ao contrário: ele encontrava-me sempre saindo vitorioso com alguma malvadeza que se lembrasse de me fazer.
Não encontro explicação para o que aconteceu naquele dia, que tudo levava a crer seria mais um dia típico de bullying : empurrões, achincalhamento público, roubo do lanche, apalpões; só sei que levava eu os livros na mão, já andava no sexto ano e tinha os meus 11 anos, quando com ar de valentão me empurrou ao chão espalhando os livros pelo corredor e as risadas pelas caras colegiais. Acordou o Hulk adormecido em mim, feito de um misto de ódio acumulado durante anos com uma necessidade animal de justiça: mandei-o para a enfermaria com os tomates esmagados e a alma vingada.
Desfeita a dupla, ele nunca mais me procurou nem eu nunca mais o evitei, tinha-me tornado outra pessoa: admirada, elogiada e temida pelos inimigos de outrora e que agora me carregavam nos braços para me fazerem ver que tinham esperado por este desfecho toda a sua curta vida escolar. Acabavam, assim, anos de tortura física e psicológica, um jogo em que os dois lados cumprem um papel igualmente importante, um a  de vítima outro a de carrasco, mas antes que me acusem de pôr culpas nos desgraçados que levam todos os dias na escola confesso que o desenlace final muito se ficou a dever ao meu crescimento precoce numa altura em que o dele deveria estar estagnado. Que cada um se meta com os do seu tamanho, cobardolas infames!


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