Há assuntos na vida que nos
moldam o caráter sem que nos apercebamos disso a não ser longos anos mais
tarde. Passei a acreditar sem reservas na máxima «quanto mais a gente se baixa
mais o cu se vê» tinha por volta dos 11 anos de idade e uma história já longa
de bullying e rejeição que levou muitos anos a exorcizar.
Naquela época, a casa pia era um
misto de colégio interno, externo e um meio termo entre os dois e , embora eu
estivesse no meio, nem era externa nem interna, tinha dos dois lados inimigos
figadais que se revelaram logo após o primeiro dia em que fui uma espécie de
atração de circo porque já ia a meio o período das aulas e a professora fez
questão de que toda a turma me desse as boas vindas. A partir daí as boas
vindas acabaram e começou o que para mim foram longos anos de tortura.
A pobreza extrema e a falta de
condições sanitárias condignas fazia com que os piolhos tivessem sido a minha
companhia mais fiel de infância e afastassem de mim as amiguinhas para brincar.
A culpa era toda de umas empenhadas funcionárias que chegavam qual
exterminadoras implacáveis rompendo a meio das aulas com a sentença: «Vamos lá
vasculhar essas cabeças e ver quem tem piolhos»; eu começava logo a tremer pois
já sabia que os meus hóspedes indesejáveis não me largavam os cabelos e que
isso era o suficiente para ser posta de lado como um pária o resto de semestre.
E assim era, mal davam conta dos fiéis habitantes, estas bestas sem empatia saíam
vitoriosas com a sensação do dever cumprido , e a mim restava-me apenas a
companhia de outra desgraçada como eu que mais ninguém queria, pelo que
juntávamos as desgraças sendo amigas uma da outra num afinco de fazer inveja
aos mais populares da escola.
A minha mãe que nunca foi de
meias medidas, assim que era avisada da minha condição de piolhosa tomava logo
uma de duas medidas drásticas: ou me rapava o cabelo pondo um lencinho no lugar
dos caracóis ou o ensopava em petróleo, insensível aos meus apelos e queixumes
e inconsciente para o perigo de tal medida. Tornava-me assim na cúmplice involuntária de tais bestiolas onde
um sentimento dúbio nos unia: por um lado queria-os mortos por outro tentava
salvar-lhes a vida aplacando-me os ardores do petróleo e do rabear aflito deles
enfiando a cabeça em água fria.
Quando a primeira medida era a opção,
os meus perseguidores habituais tinham com o que se rir a bandeiras despregadas ao verem-me careca
depois de me arrancarem o lenço. Do bando, destacava-se o líder que só pelo
nome dá para perceber não ser boa rês: chamavam-lhe o Fatela, não sei se se
chamava mesmo assim ou se seria também ele vitima de alguma alcunha que colou. Sei
apenas que foi um dos meus maiores torturadores de infância que apenas recuava
perante a sanha justiceira da minha irmã quatro anos mais velha. Um dia,
cansada de tanto intervir, deixou-me entregue à sorte com a resolução: « A partir
de hoje tens de aprender a defender-te!»
Ficava muitas vezes sem ir ao
recreio, espreitando o rufião que se pavoneava com a comandita atrelada, para
fugir a sarilhos, mas quanto mais me escondia mais ele me encontrava fazendo
uma dupla inesquecível qual Tom & Jerry
com a história ao contrário: ele encontrava-me sempre saindo vitorioso
com alguma malvadeza que se lembrasse de me fazer.
Não encontro explicação para o
que aconteceu naquele dia, que tudo levava a crer seria mais um dia típico de
bullying : empurrões, achincalhamento público, roubo do lanche, apalpões; só
sei que levava eu os livros na mão, já andava no sexto ano e tinha os meus 11
anos, quando com ar de valentão me empurrou ao chão espalhando os livros pelo
corredor e as risadas pelas caras colegiais. Acordou o Hulk adormecido em
mim, feito de um misto de ódio acumulado durante anos com uma necessidade
animal de justiça: mandei-o para a enfermaria com os tomates esmagados e a alma vingada.
Desfeita a dupla, ele nunca mais
me procurou nem eu nunca mais o evitei, tinha-me tornado outra pessoa: admirada,
elogiada e temida pelos inimigos de outrora e que agora me carregavam nos
braços para me fazerem ver que tinham esperado por este desfecho toda a sua
curta vida escolar. Acabavam, assim, anos de tortura física e psicológica, um
jogo em que os dois lados cumprem um papel igualmente importante, um a de vítima outro a de carrasco, mas antes que
me acusem de pôr culpas nos desgraçados que levam todos os dias na escola
confesso que o desenlace final muito se ficou a dever ao meu crescimento
precoce numa altura em que o dele deveria estar estagnado. Que cada um se meta
com os do seu tamanho, cobardolas infames!
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