quinta-feira, 29 de agosto de 2013

A dama de lilás

Dir-se-ia saída de algum baú da história, talvez inglesa mais condizente com sua altivez. Tinha um “je ne sais quoi”, uma aura emanando de uma mistura de naftalina e alfazema que impelia a que se a olhasse. Vi que não era a única que reparava nela pois embora aparentasse ser já septuagenária chamava a atenção pelo que irradiava; como se tivesse a força da juventude aprisionada dentro e o aspeto exterior contrariasse a sua  firmeza de caráter que se revelava no andar.
Exceto a rede preta que lhe apanhava os cabelos, ralos e raiados de prata, sem estarem pintados, todo o resto da sua indumentária era lilás; de todas as tonalidades possíveis. Os sapatos, esculpidos por mãos hábeis e experientes de algum sapateiro à antiga cuja perfeição se observa em cada ponto dado, apresentavam, de todo o conjunto, o lilás mais escuro do espectro: tinham uma mimosa flor que ornamentava o peito do pé, um pouco deformado pela idade, mas que sustentavam uma figura digna de nota, digna de ser imortalizada.
O corpo denotava já uma ligeira corcunda que o tailleur de bom corte permitia disfarçar, também ele lilás, não tão escuro como os sapatos, nem tão claro como a mala que sendo grande se encaixava no conjunto criando uma harmonia inesperada. Da extremidade das mangas sobressaiam umas mãos finas de veias salientes e uma pele branca sem marcas , contrastando com um pescoço, este sim, traindo a idade sem deixar que se aproximasse nenhum bisturi das artes modernas; plásticas com certeza.
 Tinha um sorriso gentil, embora firme, e uns olhos vivos de uma lucidez encantadora que hipnotizaram quem a atendia na repartição pública pois reparei na deferência com que foi, subtilmente, passada à frente de quem já lá se encontrava e, também eu ,enfeitiçada que estava a observar a figura, não me incomodei com tal desplante que noutra altura qualquer me faria reclamar com indignação: ninguém se pareceu incomodar, aliás.
Ali fiquei eu, no meu anonimato, sendo transportada para um qualquer romance do século XIX que uma pincelada de contemporaneidade tornava inaudito, sendo reduzida à inexistência por quem me lembrou de imortalizar sem pedir consentimento. Mas é que é digno de registo a observação de coisas que o apetite voraz do tempo não consegue devorar. Mulheres! Não temeis, que o tempo pode consumir o corpo, mas não consome o espírito sem autorização.  

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