Dir-se-ia saída de algum baú da
história, talvez inglesa mais condizente com sua altivez. Tinha um “je ne sais
quoi”, uma aura emanando de uma mistura de naftalina e alfazema que impelia a
que se a olhasse. Vi que não era a única que reparava nela pois embora aparentasse
ser já septuagenária chamava a atenção pelo que irradiava; como se tivesse a
força da juventude aprisionada dentro e o aspeto exterior contrariasse a sua firmeza de caráter que se revelava no andar.
Exceto a rede preta que lhe
apanhava os cabelos, ralos e raiados de prata, sem estarem pintados, todo o
resto da sua indumentária era lilás; de todas as tonalidades possíveis. Os
sapatos, esculpidos por mãos hábeis e experientes de algum sapateiro à antiga
cuja perfeição se observa em cada ponto dado, apresentavam, de todo o conjunto,
o lilás mais escuro do espectro: tinham uma mimosa flor que ornamentava o peito
do pé, um pouco deformado pela idade, mas que sustentavam uma figura digna de nota,
digna de ser imortalizada.
O corpo denotava já uma ligeira
corcunda que o tailleur de bom corte permitia disfarçar, também ele lilás, não
tão escuro como os sapatos, nem tão claro como a mala que sendo grande se
encaixava no conjunto criando uma harmonia inesperada. Da extremidade das
mangas sobressaiam umas mãos finas de veias salientes e uma pele branca sem
marcas , contrastando com um pescoço, este sim, traindo a idade sem deixar que se aproximasse nenhum bisturi das artes modernas; plásticas com certeza.
Tinha um sorriso gentil, embora firme, e uns
olhos vivos de uma lucidez encantadora que hipnotizaram quem a atendia na repartição pública pois
reparei na deferência com que foi, subtilmente, passada à frente de quem já lá
se encontrava e, também eu ,enfeitiçada que estava a observar a figura, não me
incomodei com tal desplante que noutra altura qualquer me faria reclamar com indignação:
ninguém se pareceu incomodar, aliás.
Ali fiquei eu, no meu anonimato,
sendo transportada para um qualquer romance do século XIX que uma pincelada de contemporaneidade
tornava inaudito, sendo reduzida à inexistência por quem me lembrou de
imortalizar sem pedir consentimento. Mas é que é digno de registo a observação
de coisas que o apetite voraz do tempo não consegue devorar. Mulheres! Não
temeis, que o tempo pode consumir o corpo, mas não consome o espírito sem
autorização.
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