Uma vez mais tive de me deslocar
à loja do cidadão, consequência de no último ano ter mudado de morada três
vezes. Uma ilação a tirar é que estando já habituada, conhecendo os trâmites da
coisa, a tarefa se tornaria mais fácil; porém, nada mais enganador… este é o
tipo de tarefa cuja dificuldade é inversamente proporcional ao número de vezes
que se pratica. E tudo por causa da “carta” ou melhor das “cartas” que se vão
acumulando em cada ida aos ditos serviços.
Como se não bastasse a longa
espera, devido talvez ao facto de Agosto ir no seu auge e a sala de espera
estar cheia de emigrantes, começo a preocupar-me, o que se nota pelas mãos
transpiradas e coração ligeiramente acelerado: qual é afinal a carta que tenho de apresentar? Bom, a que
recebi agora, via correio, é de certeza, mas a primeira se não me engano também
pois lembro-me perfeitamente de noutra minha ida aos mesmíssimos serviços uma
solícita funcionária me ter vivamente aconselhado a tê-la sempre comigo, ou
será que só é preciso uma? Começo a ficar confusa…
Já conformada com a longa espera,
entretenho-me a observar os que chegam:
passo estugado até confirmarem com desalento que terão de dedicar os tempos
mais próximos de pé, ou sentados se a lotação o permitir, naquilo que é
habitualmente uma pausa indesejada por qualquer cidadão por muito sentido
cívico que tenha. Sozinhos, aos pares ou em bandos familiares heterogéneos
chegam e lá vão como podem passando o tempo restante até ao momento tão
aguardado quando são atendidos. O nervosismo sai-lhes pelos pés que abanam num
frenesim ou pelas palavras menos corteses que lhes sai pela boca para os seus
mais próximos, familiares ou amigos - « Para que estás para aí a ateimar?»; «
Quieta, senão levas já!» e outros impropérios mais ou menos ofensivos.
A juntar à tensão da longa espera
assolam-me agora com maior vigor as dúvidas sobre os códigos ou PIN(s). Jesus
que me acuda que o imbróglio é contumaz. Ao todo, nem sei bem quantos são,
talvez uns cinco ou seis por carta e eu ainda mudei os meus, que se lhes vieram
juntar, aumentando assim a confusão e, pensando bem, será que mudei todos ou só
alguns? Tento-me acalmar:« Que problema é que pode advir daí? Se me enganar,
volto a tentar de novo». O coração dá um coice agora com maior violência. « Se
me enganar o cartão bloqueia! Meu deus, a funcionária da outra vez advertiu-me
com veemência que isso, Jamais, poderia acontecer e pela cara dela pude ver que
era grave se bem que não me informou sobre o que na realidade aconteceria…».
Tiro um lenço de papel da mala e
enxugo o suor que é agora abundante nas palmas das mãos. Vai-se, lentamente,
aproximando a minha vez, mas desejo agora que demore mais até me decidir qual
das cartas vou apresentar e qual dos códigos vou digitar. As caras sorridentes
dos posters na parede contrastam com as dos utentes e funcionários que tentam,
apesar de tudo, tolerarem-se uns aos outros e mais uma vez me assola uma
questão:« deveria ou não ter trazido a primeira carta, a primeiríssima que me
deram quando tratei do cartão de cidadão? Não, essa não porque penso que até já
a poderia ter deitado fora, mas persegue-me a voz grave da funcionária – a carta,
sempre consigo, sempre consigo, sempre consigo…». Lembro-me agora que já tive
de pagar uns euros extra por tê-la guardado tão bem, preocupada com as
indicações da funcionária, que nem eu própria a encontrei dentro de um envelope
onde jaz até hoje, mas penso que pode ir fora; ou será que não?
Chegou finalmente a minha vez.
Atende-me uma solícita funcionária, como todas as outras, aliás, e pede-me a carta
de confirmação. É que até se dão ao trabalho de, sempre que mudamos a morada,
voltarmos lá para confirmar a decisão, não vá o diabo tecê-las e, arrependidos
da mudança, voltarmos com a mobília às costas para o sítio de onde mudámos:
assim evitamos o transtorno que tal arrependimento acarretaria e fica tudo sem efeito. Temos 60 dias para
pensar bem na decisão. « A carta? - Pergunta.» Feliz por a pergunta ter sido feita
no singular, respondi: « Tenho-a aqui, mas mudei os códigos». « Pode digitar.». A medo, como quem corta o
fio de uma bomba sem saber se está a cortar o fio certo, digitei. Alívio,
funcionou! Mais segura de mim digito segunda vez, como me foi pedido, mas agora
mais rapidamente e para ai de todos os meus ais ouço a temível palavra: «bloqueou»,
dita numa voz que me pareceu grave, mas
creio ser devido ao meu pavor pois a cara que exibia, assente num pescoço
lembrando um tronco forte e largo , um pouco por culpa da camisa apertada
demais no colarinho, até ostentava um leve sorriso. Aflita, ponderava qual dos
cinco PIN(s) de que era portadora, numa das duas cartas com que me fazia
acompanhar, deveria então digitar quando a voz salvadora me tirou do devaneio:
« Digite novamente que só inseriu três dígitos, com calma para não bloquear
outra vez.».
Então era só isso? A palavra dita
por esta não tinha associada a gravidade da outra. Se me enganasse e bloqueasse
o cartão digitava outra vez e ficava tudo resolvido? E nem sequer tinha
precisado da primeira carta? Deixei-me de complicações e de incursões
filosóficas sobre a motivação da primeira funcionária que tanto me tinha
traumatizado e pisguei-me dali para fora, não sem antes perguntar: « Esta já
pode ir para o lixo?» Ao que me respondeu: « É melhor não, que às vezes há problemas com as
finanças.» Ora, bolas! Saí, ainda perseguida pela voz poderosa da minha
imaginação « A carta, sempre consigo, sempre consigo, sempre…»
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