quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Cartas, cartões e outras complicações

Uma vez mais tive de me deslocar à loja do cidadão, consequência de no último ano ter mudado de morada três vezes. Uma ilação a tirar é que estando já habituada, conhecendo os trâmites da coisa, a tarefa se tornaria mais fácil; porém, nada mais enganador… este é o tipo de tarefa cuja dificuldade é inversamente proporcional ao número de vezes que se pratica. E tudo por causa da “carta” ou melhor das “cartas” que se vão acumulando em cada ida aos ditos serviços.
Como se não bastasse a longa espera, devido talvez ao facto de Agosto ir no seu auge e a sala de espera estar cheia de emigrantes, começo a preocupar-me, o que se nota pelas mãos transpiradas e coração ligeiramente acelerado: qual é afinal  a carta que tenho de apresentar? Bom, a que recebi agora, via correio, é de certeza, mas a primeira se não me engano também pois lembro-me perfeitamente de noutra minha ida aos mesmíssimos serviços uma solícita funcionária me ter vivamente aconselhado a tê-la sempre comigo, ou será que só é preciso uma? Começo a ficar confusa…
Já conformada com a longa espera, entretenho-me  a observar os que chegam: passo estugado até confirmarem com desalento que terão de dedicar os tempos mais próximos de pé, ou sentados se a lotação o permitir, naquilo que é habitualmente uma pausa indesejada por qualquer cidadão por muito sentido cívico que tenha. Sozinhos, aos pares ou em bandos familiares heterogéneos chegam e lá vão como podem passando o tempo restante até ao momento tão aguardado quando são atendidos. O nervosismo sai-lhes pelos pés que abanam num frenesim ou pelas palavras menos corteses que lhes sai pela boca para os seus mais próximos, familiares ou amigos - « Para que estás para aí a ateimar?»; « Quieta, senão levas já!» e outros impropérios mais ou menos ofensivos.
A juntar à tensão da longa espera assolam-me agora com maior vigor as dúvidas sobre os códigos ou PIN(s). Jesus que me acuda que o imbróglio é contumaz. Ao todo, nem sei bem quantos são, talvez uns cinco ou seis por carta e eu ainda mudei os meus, que se lhes vieram juntar, aumentando assim a confusão e, pensando bem, será que mudei todos ou só alguns? Tento-me acalmar:« Que problema é que pode advir daí? Se me enganar, volto a tentar de novo». O coração dá um coice agora com maior violência. « Se me enganar o cartão bloqueia! Meu deus, a funcionária da outra vez advertiu-me com veemência que isso, Jamais, poderia acontecer e pela cara dela pude ver que era grave se bem que não me informou sobre o que na realidade aconteceria…».
Tiro um lenço de papel da mala e enxugo o suor que é agora abundante nas palmas das mãos. Vai-se, lentamente, aproximando a minha vez, mas desejo agora que demore mais até me decidir qual das cartas vou apresentar e qual dos códigos vou digitar. As caras sorridentes dos posters na parede contrastam com as dos utentes e funcionários que tentam, apesar de tudo, tolerarem-se uns aos outros e mais uma vez me assola uma questão:« deveria ou não ter trazido a primeira carta, a primeiríssima que me deram quando tratei do cartão de cidadão? Não, essa não porque penso que até já a poderia ter deitado fora, mas persegue-me a voz grave da funcionária – a carta, sempre consigo, sempre consigo, sempre consigo…». Lembro-me agora que já tive de pagar uns euros extra por tê-la guardado tão bem, preocupada com as indicações da funcionária, que nem eu própria a encontrei dentro de um envelope onde jaz até hoje, mas penso que pode ir fora; ou será que não?
Chegou finalmente a minha vez. Atende-me uma solícita funcionária, como todas as outras, aliás, e pede-me a carta de confirmação. É que até se dão ao trabalho de, sempre que mudamos a morada, voltarmos lá para confirmar a decisão, não vá o diabo tecê-las e, arrependidos da mudança, voltarmos com a mobília às costas para o sítio de onde mudámos: assim evitamos o transtorno que tal arrependimento acarretaria  e fica tudo sem efeito. Temos 60 dias para pensar bem na decisão. « A carta? -  Pergunta.» Feliz por a pergunta ter sido feita no singular, respondi: « Tenho-a aqui, mas mudei os códigos».  « Pode digitar.». A medo, como quem corta o fio de uma bomba sem saber se está a cortar o fio certo, digitei. Alívio, funcionou! Mais segura de mim digito segunda vez, como me foi pedido, mas agora mais rapidamente e para ai de todos os meus ais ouço a temível palavra: «bloqueou»,  dita numa voz que me pareceu grave, mas creio ser devido ao meu pavor pois a cara que exibia, assente num pescoço lembrando um tronco forte e largo , um pouco por culpa da camisa apertada demais no colarinho, até ostentava um leve sorriso. Aflita, ponderava qual dos cinco PIN(s) de que era portadora, numa das duas cartas com que me fazia acompanhar, deveria então digitar quando a voz salvadora me tirou do devaneio: « Digite novamente que só inseriu três dígitos, com calma para não bloquear outra vez.».

Então era só isso? A palavra dita por esta não tinha associada a gravidade da outra. Se me enganasse e bloqueasse o cartão digitava outra vez e ficava tudo resolvido? E nem sequer tinha precisado da primeira carta? Deixei-me de complicações e de incursões filosóficas sobre a motivação da primeira funcionária que tanto me tinha traumatizado e pisguei-me dali para fora, não sem antes perguntar: « Esta já pode ir para o lixo?» Ao que me respondeu: «  É melhor não, que às vezes há problemas com as finanças.» Ora, bolas! Saí, ainda perseguida pela voz poderosa da minha imaginação « A carta, sempre consigo, sempre consigo, sempre…»

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