Jamais me esquecerei do relógio
do cuco. De hora a hora lá ficava na esperança de o ver sair do buraco com o
seu cu-cu característico inconsciente do facto de ele contar a passagem do
tempo, a passagem de segundos, minutos, horas, vidas inteiras.
A minha mãe ria-se, por entre
mais umas pedaladas na máquina de costura, e alertava-me para ter cuidado, mas
eu, por mais longe que estivesse da sala de jantar onde ele cantava saía
disparada e, se por azar ou devido à hora, o apanhava já dentro do ninho,
sentia uma perda irreparável: como quem perde um tempo que já não volta.
Voltava cabisbaixa e a minha mãe, conhecedora das coisas dizia: ”Ele volta, não
te preocupes”.
Uma altura avariou. Para mim foi
uma tragédia pois ele era, a par dos chapeuzinhos de chocolate e das pinhoadas
que, logo pela manhã, a minha mãe me comprava no caminho para a casa das
senhoras ricas onde trabalhava, a minha distração. Não havia televisão, nem
brinquedos – que me lembre – por isso mesmo a sua perda foi irreparável, fiquei
sem alegria, sem o meu amigo cuco que saía mais ou menos vezes do buraco
consoante a hora do dia que anunciasse. A geringonça mecânica era um cuco de
verdade, só para mim, mas era. Imaginação de criança não permite restrições de
natureza física; ele era feito de carne, osso e penas e tinha sentimentos só
reconhecidos por mim, talvez fosse apenas a projeção dos meus nele, mas eu
reconhecia se estava triste ou alegre pelo tom com que cantava anunciando a
passagem irreversível do tempo.
Acho que fiquei doente; eu era
assim, e ainda hoje sou: qualquer coisa me transtorna o espírito e logo me
massacra o corpo. Já não queria ir de manhã cedo com a minha mãe: “ O cuco,
mãe?” “Ele volta! Agora levanta-te!”. Chegadas ao destino corria para vê-lo,
mas o buraco continuava vazio e o peso da sua ausência fazia-se sentir em mim;
é que a ausência de um amigo que vai sem se despedir e dizer se volta ou não é
aterradora, perdemos um pouco de nós próprios que eles levaram sem disso ter
consciência.
Um dia voltou, eu sei que foi por
mim pois a dona da casa compadecida da minha dor lá o mandou arranjar se bem
que já estivesse decidida a trocá-lo por outro mais moderno. Com ele voltou a
alegria e vontade de me levantar pela manhã e correr pelo corredor afora a cada
quarto de hora que era o tempo que demorava entre cada aparição. Ainda hoje, quando ouço um, me parece sempre ser um cuco de verdade até porque ao
desaparecer no tronco feito relógio, o escuro que se faz lá dentro aguça a
imaginação e torna possível tudo aquilo que a realidade por si só impossibilita.
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