domingo, 18 de agosto de 2013

O relógio do cuco

Jamais me esquecerei do relógio do cuco. De hora a hora lá ficava na esperança de o ver sair do buraco com o seu cu-cu característico inconsciente do facto de ele contar a passagem do tempo, a passagem de segundos, minutos, horas, vidas inteiras.
A minha mãe ria-se, por entre mais umas pedaladas na máquina de costura, e alertava-me para ter cuidado, mas eu, por mais longe que estivesse da sala de jantar onde ele cantava saía disparada e, se por azar ou devido à hora, o apanhava já dentro do ninho, sentia uma perda irreparável: como quem perde um tempo que já não volta. Voltava cabisbaixa e a minha mãe, conhecedora das coisas dizia: ”Ele volta, não te preocupes”.
Uma altura avariou. Para mim foi uma tragédia pois ele era, a par dos chapeuzinhos de chocolate e das pinhoadas que, logo pela manhã, a minha mãe me comprava no caminho para a casa das senhoras ricas onde trabalhava, a minha distração. Não havia televisão, nem brinquedos – que me lembre – por isso mesmo a sua perda foi irreparável, fiquei sem alegria, sem o meu amigo cuco que saía mais ou menos vezes do buraco consoante a hora do dia que anunciasse. A geringonça mecânica era um cuco de verdade, só para mim, mas era. Imaginação de criança não permite restrições de natureza física; ele era feito de carne, osso e penas e tinha sentimentos só reconhecidos por mim, talvez fosse apenas a projeção dos meus nele, mas eu reconhecia se estava triste ou alegre pelo tom com que cantava anunciando a passagem irreversível do tempo.  
Acho que fiquei doente; eu era assim, e ainda hoje sou: qualquer coisa me transtorna o espírito e logo me massacra o corpo. Já não queria ir de manhã cedo com a minha mãe: “ O cuco, mãe?” “Ele volta! Agora levanta-te!”. Chegadas ao destino corria para vê-lo, mas o buraco continuava vazio e o peso da sua ausência fazia-se sentir em mim; é que a ausência de um amigo que vai sem se despedir e dizer se volta ou não é aterradora, perdemos um pouco de nós próprios que eles levaram sem disso ter consciência.
Um dia voltou, eu sei que foi por mim pois a dona da casa compadecida da minha dor lá o mandou arranjar se bem que já estivesse decidida a trocá-lo por outro mais moderno. Com ele voltou a alegria e vontade de me levantar pela manhã e correr pelo corredor afora a cada quarto de hora que era o tempo que demorava entre cada aparição. Ainda hoje, quando ouço um, me parece sempre ser um cuco de verdade até porque ao desaparecer no tronco feito relógio, o escuro que se faz lá dentro aguça a imaginação e torna possível tudo aquilo que a realidade por si só impossibilita.

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