Hoje nasceu-te mais uma ruga mãe.
Quase posso jurar tê-la visto nascer, posso assegurar-te que ontem não te
enfeitava o canto da boca quando sorriste. Não a negues nem rejeites, fica-te
bem, aí mesmo, onde decidiu plantar-se indo juntar-se às que já te adornavam a
face. Amo-as, sabes? Amo-as mais do que algum dia amarei as minhas; assim tenha
eu alguém que se compadeça e ame o que o tempo escrever em mim.
Estás velhota e cansada. As tuas
mãos já não criam belas peças com tecidos comuns que te faziam artista na tua
arte: agora a rigidez apoderou-se delas e já só andas apoiada em mim, mas sei
que são os momentos em que te apoio e te toco que te fazem viver, sei também
que anseias que te deite, te levante, te ampare para sentires o meu calor.
Gostas de beijos e abraços e quando, apressada, não tos dou, nas pregas da face
faz-se sentir com mais violência a força da gravidade.
Observo-te agora e vejo como te
amo, muito mais do que em qualquer outro momento, na verdade, aprendi a amar-te
no momento em que abdiquei de julgar as tuas atitudes, o teu afastamento, os
teus silêncios. Porque calas mãe? Porque não te sai um ai, um desejo, um pedido
da boca? Só dizes : «Sonhei contigo.» ou então:« Fiz-te tanto mal, tu és uma boa
menina» e eu aplaco-te a alma dizendo que não, que nada me fizeste de mal. Mas
houve um tempo que também eu acreditava que sim. Que sei eu da existência para te
julgar as ações ? Seria eu capaz de fazer melhor com o que tu tinhas?
Serás feliz, apesar dos dias,
semanas, meses iguais? Ris-te como uma criança na tua demência, ou serei eu que
assim te vejo? Ficas quieta enquanto as mandíbulas vorazes do tempo te consomem
o que te resta de vida. Terás vivido em vão? Terás medo da inexistência ainda
em vida, tal como uma flor que nasce entre as pedras sendo pisada antes de ter
sido observada ( que desperdício!), as tuas lágrimas, terão sido derramadas com
outro propósito que não o de te aliviar a alma? Não sabes responder a estas
questões difíceis e também não parecem incomodar-te, ou serei simplesmente eu
que não o consigo enxergar?
Dás-me todos os dias a
oportunidade, cada vez mais rara, de encarar a degradação do corpo e do
espírito; ah, quão difícil é observar a decadência assim de tão perto, sem os
subterfúgios de salas asséticas onde tudo o que lembra o declínio natural é
removido da vista. Não. Aqui tudo é visto na sua crueza fria e medonha: todos
os cheiros a podridão, todos os descuidos do corpo dependente, toda a tragédia
humana na sua amplitude, a aproximação da morte.
Como somos frágeis! Como nos
esquecemos disso nos anos de autonomia. Como nos faz falta o amor, capaz que é
de nos tornar eternos! Eu amo-te, sabes? Hoje mais do que na tua juventude.
Aprendi a amar-te por te cuidar. Compadeci-me da tua condição por me lembrar da
minha: não serei também eu um simples ser mortal em busca da eternidade? Ao aceitar-te
aceitei-me nas minhas fraquezas, na minha humanidade deveras comovedora. Quão
enternecedor é olhar um ser despojado de todas as vaidades, de todos os
desejos, na mais completa entrega a outrem. Que seria de ti mãe, sem o meu
amor? E que seria de mim afinal se me tivesse sido negado ver, sob o manto da hipocrisia, esse manto de retalhos dos subterfúgios modernos com as suas cores
vivaças e garridas, o manto cintilante e falso que só quer ver refletida a
juventude, a beleza, o esplendor, o quanto precisamos uns dos outros afinal?
Maria João Varela
Maria João Varela
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